"Você tem que se fragilizar"

Mendel Bydlowski, da ESPN, fala pela primeira vez sobre a morte trágica do filho de cinco anos

Juliana Linhares Colaboração para o UOL, em São Paulo Arquivo pessoal

"Eu não havia me dado conta de que jamais havia amado tanto um ser humano e, decididamente, nunca um menino. (...) Trabalho por pura necessidade pois, fundamentalmente, tudo para mim perdeu o significado. Não tenho mais gosto pela vida (...) O auxílio da razão não me serve.". Esse é um trecho da carta que o psicanalista Sigmund Freud escreveu para amigos quando seu neto favorito, Heinz, de quatro anos e meio, "a criança mais inteligente e amorosa" que ele conheceu, entrou em coma, e posteriormente morreu, em 1923.

Não é necessário o exemplo de ninguém para que compreendamos o desconsolo do coração de um pai que perde o filho, mas quando alguém como Freud, mesmo que na figura de avô, fala tão servilmente sobre essa dor, fica apenas mais claro que cada homem tem uma história muito particular sobre seu luto; e que ela precisa ser ouvida.

O jornalista Mendel Bydlowski, de 38 anos, perdeu seu filho Arthur, de cinco, em janeiro, num episódio dos mais trágicos. A criança brincava com o irmão mais novo, de menos de dois anos, na sala de um apartamento de praia, de quinto andar, onde eles, Mendel e a mãe dos meninos, Juliana, passavam férias. Num determinado momento, sob os olhos de Juliana, Arthur se sentou no chão, próximo a uma janela fechada, apoiou as costinhas no vidro e ele se rompeu.

Essa é a primeira vez que Mendel, há 20 anos trabalhando na ESPN Brasil, com quatro Copas do Mundo e três Olimpíadas no currículo, fala como tem conseguido respirar depois da morte de Arthur. Nesses poucos mais de seis meses, passou o primeiro aniversário do filho e Dia dos Pais sem ele. E também sem a presença tão necessária de muitos dos amigos e familiares, dada a pandemia da covid-19.

Arquivo pessoal

Sempre gostei de contar histórias na minha profissão, e de uma maneira sensível. E muitas delas eram de pessoas que passaram por momentos delicados. De repente, me vejo contando a minha, absurda, mexendo lá dentro

Mendel Bydlowski

"Sinto falta do que eu era com ele"

Arquivo pessoal

"O Mendel que eu conhecia morreu junto com o Arthur"

Você vive o pior luto que existe, o do filho que teve uma morte repentina e de um modo trágico. Não é exagero comparar essa sensação à de loucura —temporária, que seja. Você explica de outra maneira como a morte do Arthur te atinge?

No primeiro momento, é um impacto que te paralisa. Você não sabe o que fazer e nem como viver. Com o tempo, passa por outros processos. Tem uma tristeza profunda, um questionamento e a cabeça fica desorganizada. Hoje em dia, consigo pensar que é como se a nossa família estivesse caminhando e lá na frente visse toda aquela vida planejada. Só que aparece um buraco no meio do caminho e a gente cai dentro dele. A primeira intenção é escalar o buraco e tentar voltar à vida que tinha antes. Mas eu acabo caindo de novo e me machucando. O ponto em que a gente está agora é o que desiste de voltar ao que era antes e cavar um túnel nesse buraco. Eu não sei onde vai dar esse túnel. Só sei que tem um caminho em que é preciso ir bem devagar. Com paciência e muita ajuda.

O que o Arthur levou de você com ele —e que talvez você já esteja até conseguindo recuperar ou construir de outro jeito?

O Mendel que eu conhecia morreu junto com o Arthur. Nos meus pensamentos e nos meus projetos, o Arthur está inserido. Tudo o que eu imaginava pra fazer amanhã, no fim de semana, nas próximas férias, ele estava inserido. Tive que deixar o pai do Arthur lá pra trás. E viver com a memória e a saudade dele, mas tentando construir um novo Mendel devagarzinho. Que tem o Arthur de outra forma. E que tem o Tomaz [o filho caçula], e que tem a Juliana, e que tem o meu trabalho. Eu sinto muita falta do que eu era com ele. Das trocas, do olhar, dos abraços.

Você me contou que doou as coisinhas do Arthur, tirou as fotos dele de casa e pediu que a sua mãe fizesse o mesmo. Hoje, passados sete meses, sente que ainda dói menos olhando menos para a dor?

Machuca muito cada primeira vez. Ver as fotos recentes dele traziam um impacto muito grande. Mas, à medida que você vai olhando e se acostumando com elas, dá para absorver de uma maneira menos dolorida. Você vai experimentando e vendo o que machuca menos. Os objetos que o Arthur era mais ligado nós colocamos numa caixa —que são poucos, porque ele era desprendido —que ainda não dá para abrir. Mas o resto a gente doou porque não conseguia ver.

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"Neste apartamento, tenho um pouco do Arthur em cada cômodo"

Os homens falam menos sobre suas dores do que as mulheres. Estudos mostram que o jeito que eles encontram para lidar com a perda é quase instrumental, como a de resoluções de problemas. Os jovens viúvos, por exemplo, se encaminham para um novo casamento mais rapidamente que as mulheres. Você acha que lida assim com a sua perda?

O homem tem mesmo a tendência de se fechar e tentar ficar forte pra, de alguma maneira, segurar a barra. Mas isso faz muito mal. Eu tive esse primeiro momento de querer "consertar" a situação. Mas claro que não dá. Por causa da pandemia, faz falta um abraço, uma conversa olho no olho com amigos e amigas. Mas tenho falado com os meus colegas da ESPN e me ajuda muito o fato de ter ido fazer terapia logo. Você tem que se fragilizar. Falar do que eu estou sentindo me dá uma clareza de pensamento. Recentemente, fiz uma reportagem sobre times de futebol na Inglaterra que foram montados só com pais que perderam filhos pequenos ou na gestação. Se encontrando para jogar, eles acharam um jeito de conversar sobre o sofrimento.

O escritor Tiago Ferro, que perdeu uma filha de oito anos em 2016, escreveu "O Pai da Menina Morta", em que fala dessa dor. "O pai do Paulo de Tharso só quer morrer. O Gilberto Gil só quer morrer. O Clapton e o Travolta só querem morrer. O Hermann Kafka só quer arrancar da sua cabeça a carta escrita pelo filho, para depois morrer. O Carlos Drummond de Andrade só quer morrer. O Pai da Menina Morta pede todas as noites para morrer. Em vão. Nós devemos ficar entre os nossos". Você também desejou morrer?

Não. Acho que muito por causa do Tomaz. E pela Juliana. Às vezes, não dá coragem de sair da cama, de seguir o dia. Mas ao mesmo tempo que o Tomaz passa a responsabilidade de estarmos aqui, ele também dá força. Ele é pequeno, mas é muito alegre. Ele empurra a gente. Mantém a gente nessa terra. Quando vê algum de nós chorando, sempre reage abraçando e beijando.

Vocês resolveram ficar no apartamento onde moravam com o Arthur. A questão de sair ou não de casa quando alguém da família morre sempre aparece. Será que dói menos se mudar os ares?

Estando aqui, neste apartamento, tenho um pouco do Arthur em cada cômodo. É sofrido. Mas talvez, lá na frente, seja algo que traga ele de volta. E também é difícil pensar em outra pessoa vivendo aqui. Também colocamos o Tomaz na mesma escola em que o Arthur estudava. Vamos ver, depois da pandemia, como vai ser. Tem ainda a escolinha de futebol do Arthur, que fez algo bonito para homenageá-lo. Esse ano, o troféu do campeonato deles vai levar o nome do Arthur. Então, eu penso por que não colocar o Tomaz pra treinar lá, também. A gente vai, devagarzinho, vendo o que machuca, o que não machuca e tomando as decisões no meio do caminho.

"Não posso colocar todos os sentimentos em cima do Tomaz"

A dor do luto pode ser física também. Há que diga que sente dor no peito, no coração. Você sente?

Sim, exatamente essa dor. É um aperto aqui dentro, profundo, muito forte. Você fica paralisado, mas com esse aperto. No começo, ele dura 24 horas. Com o tempo, você consegue conviver com a falta [e evitar] que não chegue no ponto dessa dor.

De alguma forma, você se comunica com o Arthur?

Eu falo com ele, mas, sinceramente, não espero uma resposta. Nesta entrevista ou quando posto algo sobre ele nas redes sociais, estou falando pra ele também. Eu escrevi uma carta pro Arthur, bem grande e que está só comigo. Mas eu não peço nada em troca. Se ele escutar, de alguma forma, já está bom.

Além da sua dor, há também a da sua mulher. Como consegue lidar com o sofrimento que vê nos olhos dela?

É difícil, porque cada um tem um ritmo. A recuperação do luto não é linear. Tem dias que você está bem e no outro cai naquele buraco. No começo, eu queria amenizar a dor dela, tentava consertar. E o que ela precisava era de um espaço maior. Na conversa, a gente foi se entendendo. Recentemente, aconteceu o inverso. Ela estava um pouco melhor e eu que estava muito ruim. Tenho até dias de euforia, em que eu acho que estou conseguindo. E aí, na sequência, o mundo te coloca de novo no seu lugar. O importante foi aprender a observar e respeitar o momento do outro. Porque não tem nada que vá mudar isso.

A relação com seu filho caçula mudou?

Eu me cobro para não sobrecarregar o Tomaz. Não posso colocar todos os sentimentos em cima dele. As brincadeiras que eu fazia com ele era sempre com o Arthur no meio. Era sempre eu, o Tomaz e o Arthur. E de repente sou eu e o Tomaz. Dos dois lados a gente teve que se adaptar. Ele com a idade dele e eu com todos os meus sentimentos e as minhas frustrações. E eu vejo que a relação ficou mais forte.

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"A gente só quer que os dias e o ano acabem logo"

Alguns estudos mostram que ter outro filho logo em seguida à perda de um pode reduzir o luto e melhorar a vida da família. Você tem esse plano?

A gente está avaliando. Mas tudo tem que ser muito pensado, tem que estar claro o sentimento que está na nossa cabeça. O Arthur é insubstituível e o Tomaz é insubstituível.

Depois da morte do Arthur, você já passou por um aniversário dele e, recentemente, pelo Dia dos Pais. Como foram essas datas?

No aniversário dele, a gente não teve força pra fazer nada e ficou bem recluso. O Dia das Mães também foi difícil. Mas o Tomaz ajudou muito. Eu fui acordá-lo e, quando ele levantou, só queria saber da mãe. Quando ela apareceu, ele correu e deu um abraço nela. Foi marcante porque o dia a dia não é assim. No Dia dos Pais, também ficamos só nós três, passando força um pro outro. A gente só quer que os dias e o ano acabem logo.

O Tiago Ferro fala ainda no livro dele: "Eu simplesmente aceito a dor aguda na ausência. No vazio. Nós também somos feitos de espaços em branco". Você também consegue aceitar essa dor ou ainda briga com ela?

Talvez eu ainda esteja brigando com a dor. Mas estou aberto a aprender com esse momento. Eu não sei se estou sofrendo o tanto que eu deveria sofrer ou se o sofrimento mais profundo ainda vai chegar. Quem perde os pais vira órfão, quem perde o marido é viúva, mas não tem nome pra encaixar o pai que perde o filho. É tudo muito fora do normal. Espero que, no futuro, eu tenha uma resposta melhor sobre o meu sofrimento, sobre quem eu sou agora, sobre o que foi tudo isso que aconteceu. Eu só não busco o porquê. Nem no aspecto técnico de um acidente tão surreal, nem no espiritual. Eu vou atrás do que fazer e como fazer daqui pra frente. E sempre com o Arthur dentro de mim.

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