Meu irmão de pele preta

Manoel Maria, o melhor amigo de Pelé, recorda histórias e intimidades do Rei do futebol

em depoimento para Gabriela Brino e Lucas Musetti Do UOL, em Santos (SP) Arte com montagem de fotos do Santos FC

Olha, fazia tempo que eu não chorava desse jeito. Perder meu melhor amigo... Na verdade, um irmão. Foi uma das coisas mais difíceis que eu já passei nessa vida. Mas, por mais que doa falar dele, também é bom. Me ajuda a manter as memórias vivas. E são tantas boas.

Eu não vou mentir, Pelé intimidava muita gente, viu? Onde quer que ele chegasse, as pessoas ficavam mais contidas. Mas durava pouco, porque o Pelezinho era muito brincalhão, quebrava o gelo na primeira oportunidade. Sarrista, gostava de deixar todo mundo à vontade. Quando pediam foto com ele, as pessoas pareciam amedrontadas e ele dizia 'peraí, deixa que eu faço a produção' e dava risada. Era um doce.

Ser o melhor amigo do Pelé foi um dos meus maiores feitos nessa terra. Certa vez perguntei para ele como eu tinha conseguido conquistá-lo. E sabe o que ele respondeu? "Coisa de Deus". E eu nem tive como discordar, nós tínhamos uma conexão linda. Coisa de eu pensar nele e ele me ligar. Teve um dia em que ele estava fora do país e ele me mandou a foto de um iate com meu nome gravado na madeira e me escreveu "achei seu barco, Mamá", que é meu apelido criado por ele. E pegou, me chamam assim até hoje!

Espero que esse relato alcance muita gente. Eu preciso dizer como esse cara foi importante na minha vida. Coisa que não dá para imaginar. E foi por gestos, palavras e por ações, sabe? Eu sinto muita falta. Ainda sonho muitas vezes com ele, aquela risada gostosa. A presença dele era boa pra mim. Faz parte, é a vida. Um dia nós vamos nos encontrar, eu tenho certeza. Oro todos os dias para que a luz que ele teve aqui, que tenha também lá no céu.

Por mais que doa falar dele, também é bom. Me ajuda a manter as memórias vivas. E são tantas boas. Espero que esse relato alcance muita gente, pois preciso dizer como esse cara foi importante na minha vida"

Manoel Maria, melhor amigo de Pelé

Manoel Maria recorda histórias memoráveis com Pelé, seu melhor amigo

Ao UOL, ex-jogador se emociona ao falar sobre como Pelé era diferenciado. Eles atuaram juntos no Santos

De lagartixa a Mamá

Pelé era rodeado de pessoas. Todos os dias apareciam fãs, admiradores e curiosos do mundo todo. E ele me escolheu! Logo eu, menino simples de Santarém, lá do Norte. É, lá pelos meus 10 anos eu vendi jornal, trabalhei na feira, vendi bananas na rua, eu me virei!

E quase, por muito pouco, eu não conheci o Pelezinho. Quando mais novo, com meus 15 anos, eu prometi pra mim mesmo que tentaria ser jogador de futebol até meus 20 anos. Se não desse, paciência, tomaria meu rumo. Mas lá pelos 17 eu já estava cansado.

Ah, como pode? Nos testes que eu tentava nos clubes, os profissionais que avaliavam a meninada ficavam todos de costas. Não davam a mínima atenção. E aí eu não queria mais.

Mas um dia, um amigo me convidou para fazer teste no Remo, de Belém. Eu dei de ombros, sabia que ia ser a mesma história... Só que ele soube me convencer, sabe por que? O Santos de Pelé ia jogar no Pará e, se eu passasse, poderia assistir ao jogo de dentro do gramado, de graça. Acabei indo para o teste e passei fora da minha posição, na ponta-esquerda. No dia seguinte eu vi o Pelé ao vivo e a cores pela primeira vez. Meu ídolo! ídolo do Pará! Fiquei encantado. Dalí nasceu um respeito.

E eu continuei investindo na minha carreira. Fui para a seleção brasileira de amadores, chamei atenção, porque eu vivi uma fase realmente excelente, até que o Santos me contratou! Eu tinha 20 anos. Ainda jogava pelos juniores. E, um dia, acabando um torneio na Alemanha, eu viajaria para incorporar o time profissional na Suíça. Que frio na barriga! Era tradição, as apresentações sempre aconteciam no jantar com o elenco e a comissão, à noite. O clima era descontraído, e imagine eu, uma figura super magra? Me apelidaram de lagartixa logo de cara. O Pelé não. Ele passou a me chamar de Mamá! Daí que nasceu meu apelido.

Gabriela Brino/UOL Gabriela Brino/UOL

Jogando com meu melhor amigo

Quando comecei a jogar, eu olhava para ele, olhava as jogadas dele e eu dava risada sozinho. Quer dizer, meu Deus, que coisa maravilhosa ter a oportunidade de estar em campo com Pelé. A gente sempre se deu muito bem. Eu vivi um sonho.

E era engraçado, porque o Pelé queria ser igual a todo mundo, mas não conseguia. Não era igual. O raciocínio dele era muito à frente. Uma velocidade, ele tinha tudo! Dominava todos os fundamentos. Se você parar pra pensar, hoje nós vemos gols impressionantes, lindos. Aí, há 60 anos, o Pelé fez um igual. E na época, nós não tínhamos manias de comparação. Garrincha, Zico. Não tinha. Porque todos os bons jogadores se comparavam a ele.

O Pelé era vaidoso. Foi até o seu último momento de vida. Se cuidava muito. Corpo, alimentação... eu ficava doido quando ele me convidava pra passar no quarto dele. A gente compartilhava enquanto estávamos concentrados, antes dos jogos, e tinha umas frutas maravilhosas. A gente conversava, dava risada e comia. Eu às vezes volto no tempo, aqui dentro da minha cabeça, só pra ter certeza de que não esquecerei dessas coisas. Da risada, da voz. Ele falava alto, gritando. Tempo bom. O quarto dele sempre tinha coisas diferentes.

Sabe um negócio que deixava ele invocado? Quando o volante, o meio-campista mais defensivo, ia perto dos zagueiros e pegava a bola, mas ao invés de sair para o jogo, ir pra cima, recuava a bola para o outro zagueiro. E eu dizia 'mas no mundo todo estão fazendo assim!' e ele retrucava: 'mas o Clodoaldo não fazia isso! O Zito não fazia isso!'. Era maravilhoso, fui muito feliz. Sonhei em jogar futebol, joguei no maior time do mundo, ao lado do melhor jogador do mundo, que não vai existir outro, e fui amigo dele. É o título mais importante que tenho na vida.

Era engraçado porque o Pelé queria ser igual a todo mundo, mas não conseguia. Não era igual. O raciocínio dele era muito à frente. Uma velocidade, ele tinha tudo! Dominava todos os fundamentos"

Manoel Maria, sobre a qualidade de Pelé em campo

Arquivo

Meu irmão de pele preta

Eu não sei dizer quando começamos a nos ver fora de campo. Foi natural, quando me dei conta, estava na casa dele todo o final de semana. E o Pelé era um cara muito restrito, gostava muito da intimidade e não cedia isso a muitos. Fui um privilegiado.

Tinha café? Eu estava. Almoço de domingo? Eu estava. Até mesmo em aniversários, onde tinham apenas os familiares e eu. Pois é, Pelé não gostava de festas de aniversário. Sempre foi muito simples, era um bolinho entre as pessoas mais chegadas dele e só.

Aliás, lembrei agora de quando tentaram fazer uma festa surpresa para ele... Isso faz uns 10 anos. Pelé ficou uma fera! Já te adianto que ele descobriu e cancelou tudo. Ia ser em São Paulo, no Villa Country. Ele veio todo bravo me perguntando: 'Você sabia disso? Você que estava organizando?'. E eu comprei roupa, estava todo bonitão! Foi difícil, mas consegui convencer ele de que fui apenas convidado pra hora da surpresa. E não teve festa nenhuma.

Mas foi em um desses aniversários reservados, na casa da mãe dele, que aconteceu uma das coisas mais lindas que já vi. Tenho marcado no meu coração. No meio da festinha, conversando e lembrando de histórias que passamos, ele se aproximou da dona Celeste e disse:

"Dona Celestinha, eu quero que você me explique por quê eu tenho um irmão claro?"

Aquilo ali me pegou de surpresa. E somos dois chorões. Até nisso combinamos. A gente não podia se juntar para assistir TV aos finais de semana. Sabe aqueles programas que reúnem famílias distantes? Era um chororô só. Era também muito noveleiro, assistir aos telejornais. E futebol, lógico. O que tivesse, da série A, B, C, até juvenil.

Junta todos não dá Pelé

No futebol, Pelé dominava todos os fundamentos. Sobrava em campo. Tem jogador que domina um ou dois fundamentos. Às vezes velocidade, raciocínio rápido. Mas o Pelé... ele era o próprio fundamento. Dominava tudo. Até marcar. Se precisasse bater? Entrar forte? ele batia!

Teve um dia, quando ele ainda atuava pelo Cosmos, na Itália. Um tal de Gentili estava me infernizando. O Pelé veio até mim e falou 'Mamá, vem pra cá. Deixa eu ficar aí'. Ele pegou a bola, adiantou e deu no cara. Ele caiu, o árbitro deu falta dele. Pelé era forte, viu? Quando ia cumprimentar, apertava a mão com força.

Ele sempre se cuidou muito, tanto na alimentação quanto na parte física. E treinava forte. Tinha técnica suficiente para ser menos esforçado do que os outros, mas mesmo assim se esforçava mais do que os outros. Queria ser o melhor. E foi. Seu Maneco, guardião da Vila, contou um dia e é verdade. Pelé nunca entrou nos bons bares que ainda têm aqui em volta do estádio. Não colocava uma gota de álcool na boca. Não fumava. Ele só queria voltar pra casa, dormir cedo para que no dia seguinte continuasse construindo seu legado.

Inclusive lembrei de um jogo em que fui bem. Rapaz, eu desencantei. A torcida começou a gritar meu nome pelos quatro cantos do estádio. 'Mané! Mané'. Pois o Pelé chegou até mim e disse 'Mané, você está vendo essa torcida gritando seu nome? Você não ligue pra isso, acabou o jogo. Não se deslumbre com isso'. A arrogância não fazia parte dele. E ele não queria isso pra mim. Sempre me acolheu e me aconselhou.

Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images

Mil gols? só Pelé

Minha carreira, embora curta, foi muito marcante. Joguei no Santos e não é qualquer time que para duas guerras. Uma na Nigéria e outra no Congo. Lembro pouco disso, já faz 50 anos. Mas uma coisa que eu não esqueço foi o ensaio para o milésimo gol do Pelé. A expectativa que isso envolvia e o debate sobre onde iria ser. Em que estádio? Em que país?

O gol de número 999 foi na Paraíba. Foram três gols, dois feitos por mim e um pênalti, que o Pelé converteu e deixou todo mundo tenso. Ele na frente era fatal, certamente poderia fazer outro. Aí rolou um mal-estar com o goleiro reserva e o titular se machucou. Qual o único jogador do nosso time que sabia jogar no gol? Isso mesmo, Pelé. Os paraibanos ficaram invocados... Queriam muito que o gol fosse lá.

No próximo jogo fomos para a Bahia. Pelé fez uma jogada linda! Pegou a bola, arrancou, quando ia entrando o zagueiro fez o trabalho dele e tirou. Acredita que vaiaram o cara? Me disseram até que o presidente mandou ele embora. Queriam que o milésimo gol fosse lá!

Mas foi no Maracanã, o maior palco de futebol mundial na época. De pênalti, para que todos pudessem admirar. O Pelé se ajeitou para bater e o time foi todinho para o meio-campo esperar. Daqui a pouco, após o gol, ele volta e diz 'poxa, vocês me abandonaram, e se eu perdesse o pênalti? Eu estava nervoso'. Dei risada e disse pra ele que estávamos tranquilos, confiávamos nele. A gente já estava até esperando o reinício da partida

Bondade infinita

Eu não chamava o Pelé de Pelé. Nem de Edson. Para mim, era Rei. Pelo que fez no futebol, lógico, mas principalmente pela transformação na minha vida.

Esse cara tinha um coração muito bom. Você não tem ideia de quantas pessoas ele formou, quantas casas ele bancou e na fé que ele depositava nas crianças. Custeava faculdades sem pensar duas vezes.

Por mim? Não sei se você conhece o Campus Pelé. Era uma escola de futebol que virou um clube, o Litoral. Aquilo, aquele núcleo, existiu por minha causa. O Rei criou para que eu, minha falecida esposa e meus dois filhos pudéssemos trabalhar. Então, uma pessoa dessas, era de uma bondade, de um coração...

Ele foi Rei em tudo aquilo que fez. No tratamento com as pessoas, nas preocupações e bem-estar dos mais jovens. Ele investiu em um projeto de campeonato nas favelas, tinha muito desejo de ver essas pessoas mais humildes prosperarem. De lá saíram nomes importantes. Ele queria abraçar essas pessoas, colocá-las no topo.

Tem uma música que ele fez chamada "Pelé agradece", que diz assim: "tudo pronto para a partida, partindo só vou levar o que de bom aqui deixar". E é pensando nisso que eu tenho certeza de que ele está bem, com muita luz. Ele cumpriu muito bem sua missão por aqui.

Gabriela Brino Gabriela Brino

O descanso da majestade

Tem sido difícil conviver com a ausência dele. Engoli o choro algumas vezes enquanto relembrava tudo isso. Foi uma honra. As pessoas precisam saber como esse cara era bom, porque dentro dos gramados era óbvio. Mas pensavam que a realeza poderia subir à cabeça e não. Pelo contrário.

Dezembro de 2022 ficará marcado pelo vazio. Foram tempos realmente difíceis. As idas ao hospital eram desgastantes, não queria ter a sensação de que eu estava perdendo meu irmão. E ele tratava isso com uma leveza! Apesar de chorão, não se abateu um momento sequer por causa da doença. A energia era lá em cima. Brincava e dizia 'vou sair daqui pra andar no teu McLaren!'.

Eu às vezes acho que ainda não caiu a ficha. Tem dias em que acordo e quero ligar. Acontece uma coisa boa, quero contar. Nossa amizade envolveu muito amor, respeito e companheirismo. Eu serei grato a minha vida toda, por tudo que ele fez por mim e pela minha família. Que Deus o abençoe muito.

E que ele tenha muita luz. Você vai ser eterno pra mim, você está no meu coração.

Eu nunca vou te esquecer, cara. Obrigado.

As pessoas precisam saber como esse cara era bom, porque dentro dos gramados era óbvio. Mas pensavam que a realeza poderia subir à cabeça e não. Pelo contrário"

Manoel Maria, abrindo o coração sobre Pelé

Pictorial Parade/Getty Images Pictorial Parade/Getty Images
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