"Mano, vou jogar a final"

Michael admite que imagina duelo contra o Palmeiras e revela como superou a depressão: vendo vídeos da várzea

Leo Burlá Do UOL, no Rio de Janeiro Alexandre Vidal/Flamengo

Seja pela imprevisibilidade de suas jogadas ou pelo rabo de cavalo esquisito que passou a carregar, Michael é um cara diferente. Mas não só por isso. Às vésperas da final da Libertadores, o atacante do Flamengo fugiu à regra dos discursos bem ensaiados. Ao UOL Esporte, falou sem amarras sobre depressão, reafirmou ser alguém apegado às raízes e não negou que viveu dias difíceis com Domènec Torrent no clube —o espanhol comandou o clube entre Jorge Jesus e Rogério Ceni.

A confiança está em alta desde a chegada de Renato Gaúcho —são 12 gols desde a chegada do treino. E ele não esconde que se pega pensando no jogo contra o Palmeiras, no próximo sábado, às 17 horas, em Montevidéu, na final da Copa Libertadores.

"Fico pensando assim: 'mano, vou jogar a final da Libertadores. Aí eu penso na minha história. Eu falo sempre da minha história. Se eu não lembrar de onde saí e de quem eu sou, um dia eu posso me corromper. Chegar nessa final foi o luxo de um sonho de quem não desistiu. Sonho realizado é um luxo de quem não desiste. Estou tendo o privilégio de realizar um sonho meu", disse o camisa 19.

De peito aberto, o rubro-negro chega ao Uruguai como uma das esperanças pelo tricampeonato. Sem medo de ser feliz, ele abriu o coração. Afinal, o "Robôzinho" do Flamengo é, acima de tudo, humano.

Alexandre Vidal/Flamengo

"Às vezes, faço coisas que nem sei que fiz"

Expectativa x Realidade

Revelação do Brasileiro de 2019, Michael chegou ao Flamengo com a bênção de Jorge Jesus. Contratado por cerca de R$ 34 milhões, desembarcou em um elenco que havia acabado de assombrar o mundo do futebol com campanhas avassaladoras na Libertadores e no Brasileiro.

No novo clube, encontrou um grupo recheado de craques e viu que a vida não seria nada fácil. Após receber chances com Jesus, foi para o fim da fila com Domènec Torrent e teve dificuldades para se adaptar a cada mudança no comando.

"Assim que eu cheguei aqui, o Flamengo havia ganho o Brasileiro e a Libertadores de uma forma espetacular. Buscar o espaço com tanta qualidade é muito difícil. Fazer 100 jogos com essa camisa e esse elenco não é fácil, tem muita gente de qualidade", disse ele.

Alexandre Vidal/Flamengo

O Jorge Jesus brincava comigo e dizia assim: 'Baixinho, com bola tu é um jogador do c... Mas sem a bola, f.., tu é ruim pra c...' Era uma brincadeira, mas não era pra me desmerecer, ele queria me ensinar. Porque no Goiás, era um estilo de jogo. E no Flamengo, outro. E eu tinha de me adaptar".
Michael, lembrando do antigo técnico.

Fernando Moreno/AGIF

Inferno na pandemia

Não bastasse a luta pela adaptação, Michael teve pela frente um inimigo até então desconhecido. Ele já tinha um quadro depressivo e o cenário se agravou com a pandemia da covid-19. Quando o confinamento foi decretado, com treinos proibidos e indicações de não sair de casa, ele caiu.

"Eu já tinha tido alguns indícios de depressão, mas não sabia. Soube depois pelo tratamento. A coisa do 'fica em casa', e estava tudo fechado, foi uma dificuldade. Na pandemia, não tinha nada [aberto]. Tive ajuda do meu psiquiatra e da minha psicóloga, e também do Márcio Tannure (médico do Fla), dos jogadores e de alguns membros da antiga comissão técnica (de Domènec)", relatou ele.

"Eu sou um cara hiperativo. Queria sair, brincar, conhecer os lugares. E não conseguia. Aí passei o que passei. Encontrei dificuldades, mas as pessoas me ajudaram e me tranquilizaram, me deram um abraço e uma expectativa diferente."

Alexandre Vidal/Flamengo

Na luta contra a doença, Michael encontrou uma barreira para impor seu estilo de jogo. Ele diz que o silêncio dos estádios sem público interferiu na sua forma de atuar. Conhecido pelo jeito insinuante, Michael teve de lidar com jogos decisivos sem plateia.

"O torcedor no estádio te instiga a correr mais sem você perceber. Futebol é igual um show. Imagina um show sem público? Não tem graça. O cantor vai cantar, ele quer o amor, o carinho, a energia do público. O jogador é igual. O torcedor instiga você a correr mais, a gente sente aquela energia, aquele calor", afirmou.

"Sou grato ao clube, a esse elenco, a força que eles me deram é muito maior que eu podia imaginar. Aqui não é cada um por si, nunca fui menosprezado por ninguém. Isso me ajudou a sair do quadro em que eu me encontrava."

Reprodução
Tatuagem em homenagem a sua cidade natal, Poxoréu, no Mato Grosso

Saudades do terrão

Outro ponto que contribuiu para a doença foi a mudança de casa. Após um início de adolescência conturbado, ele encontrou o futebol quando morava em Goiânia. Era lá que estava sua rede de apoio.

"Lá eu saia, tinha meus amigos, o meu terrão. Quando eu estava no momento de dificuldade, naquele momento de jogo, jogo, jogo, o que eu fazia? Eu ia até o terrão. Ia ver minha essência. De onde eu saí e porque eu estava ali, no Goiás. Ajudava. Ver os lugares de onde eu saí me ajudava a me reencontrar".

Sem isso, ele teve de buscar alternativas. Encontrou um canal de vídeos dedicado às peladas nos campos de terra de Goiás e virou um apoiador. "É um canal do Youtube chamado 'Hora da várzea'. Só falam de futebol amador, não falam de mais nada. E eles precisavam de ajuda. Falei que não ia dar dinheiro, mas disse que poderia arrumar um estúdio, por exemplo. Tiro minha segunda e minha quinta só pra assistir. Tem dia que eu choro, passa um filme. Outro dia eu estava lá no terrão e agora vou jogar a Libertadores", contou ele.

Por isso que eu ajudo muito campeonato amador em Goiânia. Vendo aquilo ali, eu começo a me tranquilizar. E ali é o ponto de partida para me reencontrar. E na pandemia não tinha nada disso."

"Com Dome, não teve diálogo. Com Mister e Renato, foi diferente"

Confiança: palavra-chave

Um dos artilheiros do Campeonato Brasileiro, Michael só passou a dar resultado quando acreditou que poderia repetir o que sempre fez com a camisa do Goiás. "Confiança. Antes de eu chegar no Flamengo, eu fazia tudo que eu fazia. Fazia gols, deixava dois, três no chão", afirmou.

"Não fui revelação em 2019 à toa, fiz um grande ano. Quando eu cheguei aqui, não tinha uma confiança dentro de mim, eu precisava disso. Confiança vem com jogo, com decisões acertadas em campo. Nunca fui de gol, sempre fui de passe. O carinho que depositaram em mim fez com que eu desenvolvesse meu melhor e inventasse coisas novas."

Alexandre Vidal/Flamengo

"Cheguei com o Mister. Ele foi um cara que perguntou algumas coisas para mim, ele queria me ensinar. Eu tinha um estilo do jogo no Goiás, precisava me readaptar ao time no Flamengo. Eu quis aprender."

DUDU MACEDO/FOTOARENA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

"Mas quando vêm comissões técnicas diferentes, tive que tentar me readaptar também. Com o Dome, não tive muito diálogo, não era um cara de dialogar comigo. Não era que não conversava, mas não tinha o que conversar também. Era mais ele na dele e eu na minha."

Alexandre Vidal / Flamengo

"Com o Rogério eu conversava. Com o Mister e com o Renato, eles me perguntavam mais e me cobravam mais as coisas. Me davam conselhos, brincavam e eram mais resenha. Não quero criticar ninguém, mas também não quero elogiar também. Todo mundo foi fundamental."

Guilherme Drovas/AGIF

Do terrão ao Centenário

Os dias de pelada na várzea ficaram para trás e Michael se prepara para o jogo de sua vida no próximo sábado. Quando entrar no campo do Centenário para encarar o Palmeiras, ele diz que será uma espécie de cereja do bolo no filme de sua vida.

"Imagino o jogo lá, coloco na minha cabeça que vou jogar uma final. Imagino um jogo duro, um jogo em que duas equipes vão tentar ganhar, vão em busca da vitória. Tem coisas que você precisa sentir, tem coisas que você precisa ver", disse o rubro-negro.

"Se eu não lembrar de onde saí e de quem eu sou, um dia eu posso me corromper. Gosto de me manter na linha de humildade e alegria, mas sabendo me valorizar. Não para ficar perdido. Tenho um centro.

"Tive ajuda do meu psquiatra e da minha psicóloga"

Alexandre Vidal/Flamengo

Tá feio? Esquece

Passei momentos aqui em que o entregador do lanche que ia lá em casa teria colocado chumbinho se soubesse que era eu. Ver o carinho que eles têm por mim agora é surreal. Espero fazer mais por eles para que eles possam ficar mais contentes. O carinho que a Nação está tendo por mim não tem como explicar, só tenho a agradecer. Corro, me esforço, faço de tudo. O carinho que eles estão depositando me faz ver que estou fazendo a coisa certa".

Mas como Michael é do tipo de pessoa que faz graça consigo mesmo, existe o meme que tomou conta da internet. Correndo o risco de explicar o que não deveria ser explicado, esse meme diz que o rendimento do jogador aumenta quando ele está "feio". O jogador diz que a piada foi uma criação própria. "Tá feio, esquece", Michael?

"Tem a música do Gabi do 'Quando eu to loiro, esquece'. Aí os meninos começaram a inventar umas versões para eles. Aí pensei: 'sou feio, o que que eu vou inventar? Tá feio, esquece'."

Apesar da brincadeira, Michael nunca foi tão bonito para a torcida do Flamengo.

Jorge Rodrigues/Jorge Rodrigues/AGIF Jorge Rodrigues/Jorge Rodrigues/AGIF

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