Milton sem Lenice

A história de amor por Lenice e o luto infinito de Milton Neves, que perdeu a esposa em 2020

Talyta Vespa e Vinicius Mesquita Do UOL, em São Paulo UOL

A japona vermelha da menina ofuscava os olhos inquietos de Miltinho. Eram dez da manhã, os alunos do colégio estadual Professor Salatiel De Almeida se aglomeravam afoitos pelo centro de Muzambinho, Minas Gerais. Em minutos, o sino badalaria e os pés apressados se direcionariam de volta à escola.

Miltinho fitava a japona vermelha de sua namoradinha, que vinha de família tradicional da pequena cidade. Ela o encarava de volta e os dois andavam até um banco da praça, onde sentavam lado a lado e conversavam. Ainda era namorico de adolescente, mas Miltinho gostava dela e achava que seria a mulher de sua vida.

Um dia, naquele ritual que se repetia, Milton percebeu que a menina tinha o semblante triste. Perguntou o que havia acontecido. Ela, chateada, disse que não poderia mais namorá-lo: "Meu pai mandou acabar com nosso namoro porque você não tem futuro".

Miltinho ficou triste pra burro e achou que não se recuperaria daquele amor negado. Mas os olhos curiosos encontraram outro olhar. Um dia, durante o footing na praça da cidade, em que os garotos andavam em um sentido e as garotas, no outro, ele percebeu que uma mocinha o olhou com carinho.

Milton se sentiu afagado. Apertou o passo para, na próxima volta, reencontrar a moça. Na segunda vez em que a viu, ela o olhou da mesma forma: com carinho. Miltinho não sabia ainda, mas aquela, e não a menina da japona vermelha, era a mulher de sua vida.

Hoje, 56 anos depois, Milton Neves tem certeza: aquela menina do olhar carinhoso se tornou o Pelé das mulheres. Seu nome era Lenice.

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Lenice, a Pelé das mulheres

Comparação essa que Milton Neves se orgulha de ter inventado. Ele recebeu o UOL em sua mansão, em Alphaville, na grande São Paulo, de onde aproveita para alfinetar os que se apropriam de seu bordão sem dar o crédito. Ainda nos anos 1980, quando Pelé já era chamado de Rei e encantava com suas habilidades nunca antes vistas, o jornalista o disse pela primeira vez. "A melhor pessoa de qualquer profissão é o Pelé daquela profissão".

A amizade com Pelé foi tão grandiosa e verdadeira que Milton Neves foi um dos poucos a dividir uma campanha publicitária com o Rei. "Ele não gostava de aparecer com ninguém em publicidade, porque se a pessoa fizesse alguma besteira, ele achava que também iria se queimar". O convite veio de uma imobiliária que lançaria um empreendimento de cinco torres na Baixada Santista, e a propaganda fez Milton e Pelé correrem pela praia. Juntou, ao redor, milhares de pessoas.

A perda de Pelé, para Milton Neves, foi doída ao demasiado — mais ainda pelo momento emocional que já vivia: Milton lutava com um luto diário há dois anos, desde que Lenice, sua Pelé das mulheres, partiu. Ela morreu, em decorrência de um câncer de pâncreas, em agosto de 2020, aos 65 anos.

Desde então, a dor da perda já lhe rendeu receitas para medicações antidepressivas e incontáveis consultas com (bons, como ele ressalta) psicólogos que de nada adiantam. A ausência de Nice ainda é parte densa dos dias do jornalista. Os filhos insistem que ele cesse as lágrimas: "Pai, a mãe tá chateada com essa choradeira toda". Mas Milton, que quando no ar navega por histórias diversas do rádio e do futebol, parece monotemático quando o assunto é sua vida.

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Lenice era neta do homem mais rico de Muzambinho. Quando ela e Miltinho se conheceram, avô e pai da moça não aceitaram o namoro de imediato. O jovem casal se encontrava às escondidas no centro espírita de dona Hilda e seu Antônio Lima, a quem Milton Neves é grato pela cupidez. "Eu estava enganado. A mulher da minha vida era a Lenice".

Quando o namoro veio à tona, o ponto de encontro virou o Bar Pinguim, do pai de Lenice, "de fronte ao Bar do Mirto e da farmácia Sarvadô", sorri o jornalista. Toda vez que passa por esse ponto de Muzambinho, sente a presença da amada. "Na verdade, sinto ela aqui nessa casa todos os dias. Não quero vender porque sei que ela está aqui comigo".

Pela mansão em Alphaville, Milton Neves recebeu uma proposta de venda por R$ 70 milhões de um então jogador do São Paulo. Recusou. O apartamento em Miami, xodó de Lenice, também não será vendido. "Nunca", enfatiza.

As vacas gordas, entretanto, nem sempre pastaram no gramado de Milton Neves. Se não fosse a tia Antônia ter parcelado em vinte vezes um rádio capa de couro "que hoje eu calculo valer uns R$ 300", talvez ele não tivesse se apaixonado por futebol. Nem pelo Santos de Pelé. Muito menos pelo jornalismo.

Assim que a grana começou a entrar, Milton mobiliou a casa da tia, e ainda ouviu dela que eles "precisavam acertar" a compra dos móveis. "Madrinha, se eu for acertar com a senhora, vou ter de trabalhar por um milhão de anos". Os filhos o consolam relembrando de tudo que conquistou, saindo de um lugar cujas condições eram precárias e acumulando uma fortuna impensável. Mas até a fortuna vira um peso pela ausência de Lenice.

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"Milton Neves é o único jornalista que sai de casa domingo de manhã para trabalhar e volta sábado à noite." A frase que estampou uma grande reportagem sobre Milton Neves na revista Veja ecoa na mente do jornalista todos os dias. Quando leu o trecho, se regozijou. Na Record, seu camarim virou um quartinho com cama e frigobar. Milton Neves, de fato, passava as noites no trabalho — e se orgulhava da alcunha de workaholic.

"Hoje, só penso que tinha de estar aqui com ela, nesse casarão de sete andares, pelo menos metade do meu tempo. Me dediquei 90% ao microfone e às suas adjacências — faturamento, publicidade. Me arrependo muito, muito, disso."

Milton e Lenice viveram 53 anos juntos. A lua-de-mel, em 1978, foi em Foz do Iguaçu, e a união gerou três meninos.

O trabalho, talvez a principal distração, já não é extenuante como antes. "Nunca trabalhei tão pouco". Um dos cômodos da mansão virou estúdio. Milton faz tudo de dentro de casa; só saía para trabalhar aos domingos, para apresentar o Terceiro Tempo, na Band. Hoje, esse programa deu lugar a outro esportivo, apresentado pelo Craque Neto. Antes mesmo do fim de seu programa, a rotina invertida já preocupava os filhos. Eles levaram o pai à consulta com um psiquiatra do Sírio Libanês. Em vão, ele diz. Foi medicado, mas a saudade não cessa. "Até meu último segundo de vida vou lembrar dela".

O corpo, antes robusto, hoje é magro. O olhar perdido só volta pro prumo quando a pauta é Lenice. Mesmo quando a pauta não é Lenice, vira Lenice. "Sou muito repetitivo", assume. "Ela era minha vida. Não é o único amor assim no mundo, mas com certeza é um amor raro. Não quero namorar. Se eu me casar, o que duvido, vou sentir que estou traindo a Lenice".

Uma das histórias que ele conta, e que ilustra bem o estado de espírito do jornalista, é que ele fala as palavras Nice, Lenice ou o nome completo, Lenice Chame Magnoni Neves, pelo menos oitenta vezes por dia. "Fico conversando com ela", explica.

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A primeira vez que Milton e Lenice se separaram foi em 1971, quando ele deixou Muzambinho para morar em Curitiba, no Paraná. A tia-madrinha fazendo milagre, como de praxe, o ajudou quando conseguiu seu primeiro emprego em rádio. A distância da amada, junto de fome e do frio, completaram o combo de um período triste na vida de Milton Neves.

Lenice e ele trocavam quatro ou cinco cartas toda semana. O ritual era diário: Milton debruçava na janela do apartamento em que morava, no primeiro andar da rua Duque de Caxias. À tardezinha, o carteiro passava, e adiantava as notícias. "Hoje não tem". Ele se chateava. "Hoje tem duas". Ele se deleitava.

Nos papéis, detalhes sobre o dia a dia, declarações de saudade, planos futuros. Milton e Lenice guardaram essas cartas por tempos, até que se perderam entre os tantos itens de valor que vieram a conquistar juntos. "Daria um bilhão de reais para reaver essas cartas", ele diz. "Falávamos, principalmente, de amor. Nosso namoro aconteceu por três motivos: amor, amor e amor."

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Curitiba foi só o primeiro destino de um desbravamento incansável de Milton Neves pelo Brasil e pelo mundo. Além da mansão em Alphaville, o jornalista coleciona apartamentos pelos Estados Unidos, mas lugar algum é mais importante para ele que Muzambinho.

Os bancos de concreto que Milton menciona no começo deste texto, no centro da cidadezinha, agora levam o nome de sua família: Milton e Lenice Neves. "E para Muzambinho eu vou voltar para sempre. Dirigindo ou com as mãos na barriga". Quando visita a cidade, se pega fitando os lugares pelos quais andava ao lado de Lenice.

Sem querer, procuro uma mulher parecida com ela. Como se ela fosse aparecer por ali, que nem antes. Observo as moças passando, e sinto que uma delas vai ser a Nice. É uma obsessão. Ninguém gosta mais de uma mulher como eu gosto da Lenice. Ela é minha Pelé das mulheres."

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