Chave de ouro

O esporte me mostrou que às vezes é preciso tirar o pé do acelerador para poder andar mais rápido

Cesar Cielo, em depoimento a Beatriz Cesarini e Paulo Favero Do UOL, em São Paulo Reprodução/Instagram

A temporada de 2008 foi muito dura pra mim. Os números não apareciam. Eu ia treinar e os tempos não saíam legais. Eu ia levantar peso e estava estagnado, não ficava mais forte. Em competições preparatórias, ficava fora do pódio. Estava muito difícil.

Cheguei nas Olimpíadas de Pequim e me perguntava: "O que estou fazendo aqui?". Só ficava recluso, na área de massagem, piscina de aquecimento? A energia era péssima, entrei numa pilha meio triste até que o meu técnico na época, o Brett Hawke, notou.

Estava extremamente regrado: dormia bem, comia direito, não saía para me divertir. O Brett, então, falou: "Cara, talvez o nosso problema seja muita intensidade. Você está precisando relaxar. Vamos lá comer um Big Mac?". Vocês já devem conseguir imaginar a minha reação na hora: "Como assim, Brett?". Ele argumentou, disse que eu precisava deixar aquele ciclo de exigência, porque não era um robô. Fui convencido.

A questão não era ir lá e curtir um lanche, mas sim destravar as neuras da minha cabeça. Chegando lá na lanchonete, eu vejo bem na minha frente - na fila pra pedir - um dos meus adversários. Logo ao meu lado, um bicampeão olímpico. Olhei para o Brett e dei risada: "Geral está mal, bora comer".

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"Esse cara não sou eu"

Aquela ida ao McDonald's me fez entender que, às vezes, é necessário tirar o pé do acelerador para poder andar mais rápido. Eu não estava bem, fui engolido por uma enxurrada de pensamentos ruins: não sei nadar mais, estou passando vergonha.

Embora tenha conseguido dar uma respirada com a escapada para comer um lanche, fui para o revezamento 4x100m livre dois dias depois, nadei mal e voltei a me massacrar. Nas eliminatórias dos 100m livre, fui pior ainda.

Sabe aquele ditado: "pior que está, não fica"? Não funcionou. Na semifinal, cheguei em quinto lugar. Eu posso falar com toda a certeza para vocês, aquele resultado foi o momento mais baixo da minha vida, da minha carreira. Foi uma das poucas vezes que eu olhei para o placar e falei: "esse cara não sou eu, não representa a minha dedicação e todo o meu entorno".

Satiro Sodré/SSPress/CBDA Satiro Sodré/SSPress/CBDA

Os 47 segundos

Fui dormir completamente desacreditado. Quando acordei, é até engraçado relembrar, minha cabeça deu um basta em todos os pensamentos ruins: "Você não é esse nadador ruim. Já deu". Eu vi sentido no debate interno da minha mente e, então, decidi mudar tudo, já que o que eu estava fazendo antes não funcionava mais.

Mudei meu aquecimento, conferi a minha série antecipadamente e comecei a medir meus adversários - eu nunca fazia esse tipo de coisa. Eu só não queria chegar em último. Quando conferi os atletas que estariam comigo na piscina, me deparei com vários que já havia superado em outras competições. Eu me recusava sair em oitavo e chegar em oitavo: "Ah, pelas minhas contas, eu chego em quarto", pensava.

Tudo isso clareou meu pensamento. Eu estava tão fissurado na medalha, que eu esqueci que tinha que nadar. Só que ter sido o cara mais fraco de tempo a entrar naquela final, acabou me dando uma tranquilidade. Eis que veio o bronze após 47s67.

A minha vida mudou nestes 47 segundos. Aquele dia eu era uma pessoa e saí outro homem da piscina. Era a mesma piscina, a mesma água, mas a minha atitude era outra. Tudo isso me levou aos 21s30 nos 50m e ao ouro, com direito a recorde olímpico.

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A origem dos tapões

Tem uma característica minha que muita gente conhece bem (outros até se incomodam). Sim, são os tapões que costumava dar no meu próprio corpo antes de pular na água. Eu comecei isso depois que fui num campeonato sul-americano em 2006, lá na Colômbia. Em um dia livre, fui dar uma volta pelas áreas de competições e me deparei com o levantamento de peso olímpico.

Eu vi os meninos se aquecendo e o treinador sentando a porrada num atleta. Eram uns tapões nas costas. Eu fui perguntar o que estava acontecendo: "Estão maltratando o cara?". Me explicaram que quanto mais forte o tapa, mais peso o cara conseguiria levantar, tem a ver com a ativação do corpo.

Fiz essa matemática na minha cabeça? Eu não sou muito fã das manhãs, não gosto de competir de manhã. Comecei a me dar uns tapas para acordar. Com um tempo, fui refinando esse hábito e também usava sempre que um pensamento negativo pairava pela minha cabeça.

Certa vez, lá em 2007, o Brett me contou que alguns nadadores estavam se sentindo prejudicados na hora do balizamento por causa dos tapões. Olhei para ele, que já entendeu o que eu estava pensando: "Agora que eu vou me bater como nunca. Não estou quebrando nenhuma regra. Vão escutar o que é tapa de verdade".

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O método EUA que falta no Brasil

O ambiente é extremamente importante para a construção de um atleta campeão. Eu falo com todas as letras e não tenho vergonha, se eu não tivesse ido para os Estados Unidos, minha carreira não teria dado certo. Se todo o brasileiro pudesse ter essa oportunidade?

Eu era desafiado a todo o momento. Logo que cheguei, meu técnico apontou para o dono do recorde mundial dos 50m livre: "Quando você vai ganhar dele?". Eu pensei que o treinador era louco, não tinha nem conquistado o Troféu Brasil naquela época. Bom, deu três anos e pá: eu fui recordista mundial.

Você pensa que depois acabou? Não. Eu voltei para a universidade e o técnico apontou para os atletas: "Tá vendo todo mundo da equipe? Eles querem pegar seu recorde. Você vai deixar?". Os caras não me davam descanso. Esse ambiente com nível de exigência extremo me dava aquele gás.

Ricardo Bufolin/Getty Images Ricardo Bufolin/Getty Images

Hall da fama e transição da carreira

A transição para a aposentadoria foi mais difícil do que eu esperava. Você faz uma coisa por tanto tempo, vira especialista e, de repente, você não vai poder mais exercer aquela profissão. Muitos atletas já aposentados falaram para mim que eu saberia a hora. Eu não senti esse clique até hoje, sinceramente, mas eu também entendi que não estava mais disposto a pagar o preço dos treinos.

Eu sempre prezei por treinos intensos, nível de exigência alto. Só que não estava mais a fim. Quando tive esse sentimento, compreendi que estaria traindo minha própria essência. Então, fiz a última temporada em 2018, com um volume de atividades bem menor.

A entrada no Hall da Fama me ajudou a dar esse ponto final. Eu fui um dos selecionados para entrar na classe de 2023 com um time cheio de caras importantes, contando ninguém menos do que Michael Phelps. Seriam cinco selecionados, mas já sabia que estava concorrendo por quatro vagas.

Quando eu recebi a notícia, não acreditei, e o Brett falou: "Você está louco? Você é recordista mundial até hoje". Essa foi a chave de ouro da minha transição e tranquilidade mental, a certeza de que poderia me aposentar em paz e abraçar novos projetos, claro que sempre com a natação inclusa.

Norm Hall/Getty Images

Nos Jogos Olímpicos, Cesar Cielo comenta as provas de natação e também apresenta o "Volta Olímpica", ao lado do Alex Escobar, Felipe Andreoli e Fernando Fernandes. O programa repassa, durante os intervalos de eventos, na programação da TV Globo, os destaques que aconteceram naquele dia em Paris.

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