Quando o esporte não faz bem

O ambiente do basquete sugou minha energia, me deprimiu e me afastou das quadras por dois anos

Depoimento de Clarissa dos Santos a Demétrio Vecchioli Divulgação LBF/Corinthians

Com alguma frequência sai a notícia que um grande atleta tirou um "ano sabático". Estava saturado da rotina de treinar, viajar, competir, e resolveu se afastar um pouco do esporte. Tirar férias, ficar com a família, de pernas para o ar, lendo um livro ou tomando um drink no Caribe.

Eu também tive meu ano sabático, mas ele se estendeu por mais de dois anos, sem nenhum glamour.

Hoje entendo que o que me afastou das quadras entre 2021 e 2023, e ainda não me devolveu integralmente o antigo tesão de jogar basquete: foi um quadro de depressão.

O extra quadra, as picuinhas, a briga de egos, minaram minha energia. Sabe esse episódio da semana passada, em que um membro da comissão técnica da seleção disse o que as mulheres devem fazer com seus corpos? É assim que os profissionais veem as mulheres, que a gente é tratada pela maioria das pessoas do basquete feminino (tem exceções).

Da última vez que fui chamada à seleção de quadra, eu não estava 100% fisicamente. Alinhar a apresentação com a comissão técnica foi um estresse, me apresentei mesmo assim, e o clima estava pesadíssimo. No fim, sequer fui testada. Voltei para casa e fiquei uma semana na cama. Faltava vontade de levantar, de sair, de fazer qualquer coisa.

Trabalhar com algumas pessoas do basquete sugou minha energia. Distante dele, perdi o rumo.

Minha voz

Se minha história fosse contada como sendo de outra pessoa, eu iria admirá-la. Nunca fui de valorizar as minhas conquistas: MVP, títulos, prêmios - e isso é algo que estou resolvendo na terapia.

Jogar basquete profissionalmente não era um sonho, foi algo que aconteceu. Quando criança, eu queria jogar vôlei, mas me convidaram para fazer atletismo no Miécimo da Silva. Eu topei, e fiquei oito ou nove anos. Aos 15, veio o convite: quer brincar de basquete? Bora brincar. Só fiquei treinando porque era legal. Minha meta sempre foi ser feliz.

Jogar basquete não foi algo que eu construí e sonhei. A oportunidade surgia e eu me preparava para ela. Jogar no Grajaú, no Fluminense, na Mangueira? Bora. Americana? Bora também. WNBA? Bora. Turquia, França? Bora. Seleção brasileira? Bora.

Só que nesse processo de treinar, jogar, treinar, jogar, você não tem tempo para pensar. Só se passou a falar de saúde mental no esporte recentemente, após a Simone Biles não competir porque não estava bem. Sempre aconteceu de atleta que do nada surta, mas a gente não falava nada. Você só segue em frente.

No basquete feminino, você joga duas temporadas em um ano, para fazer renda, e não tem tempo para pensar. Você não dá importância para as coisas. Entra relacionamento, termina, você nem chora, não dá tempo de ficar chorando. Tenho problema em casa, mas tenho jogo amanhã. Isso ajuda para um acúmulo de emoções mal resolvidas.

Por muito tempo eu me alimentei da fantasia de que estava todo mundo junto por um negócio maior. Eu sempre criei minha vida em volta da rotina da Clarissa atleta, todos meus planos extras eram baseados na minha vida esportiva. Tipo: poderia ter voltado para a faculdade, mas eu precisava treinar. Isso vai acumulando.

Desilusão

Teve uma vez, em 2016, que eu fui demitida por jogar pela seleção. Eu jogava na WNBA e no Brasil, e a convocação foi durante a LBF, mas alguns clubes estavam em movimento que eu entendia ser de defesa do basquete, segurando as atletas convocadas.

Só que, para mim, o sonho de todo atleta sempre deve ser jogar pela seleção brasileira. Além do mais, era evento-teste para as Olimpíadas. Fui, e quando voltei estava lá minha carta de demissão por faltar ao trabalho. Risos.

Eu era muito para cima, pensamento positivo, e deixava passar. Eu digo que a ignorância é uma dádiva. Eu adorava quando eu não queria saber, só ia treinar e acabou. Só que isso não dura para sempre. Você guarda, guarda, guarda... E uma hora explode.

Saúde mental

O desgaste maior começou no fim de 2019. Eu jogava na França, tive uma lesão, e queria tratar no Brasil. Pedi ao médico da seleção enviar uma carta para o meu clube, pedindo a minha liberação. Só que rolava um medo deles de se comprometer.

Eu dizia que se eu perdesse o contrato, tudo bem, era minha responsabilidade, mas não consegui a carta que o clube, disposto a me liberar, precisava. Uma norte-americana na mesma situação foi liberada, se tratou nos EUA, e voltou. Quando aconteceu o Pré-Olímpico, também na França, eu não pude jogar. Fui me juntar à seleção, mas de muleta. Perdemos e ficamos fora das Olimpíadas.

Aí teve pandemia, eu me recuperei, voltei a jogar na Turquia, na França, Euroliga, mas tive uma sobrecarga no joelho. E de novo a briga de egos, vários confrontos que não seriam necessários se a gente trabalhasse de forma mais unificada, pelo basquetebol brasileiro.

Se fosse só tratar e voltar, em três meses eu estaria na quadra de novo. Mas o ambiente externo não me permitia ficar bem.

Ambiente hostil

As histórias que conto aqui estão sem nome. Não é questão de preservar as pessoas, mas de considerar que foram elas, mas poderiam ter sido outras. É sistêmico! O basquete brasileiro hoje é briga de quem quer mandar mais e quem conquista mais território. Vale para clubes, dirigentes e comissões técnicas.

Teve um episódio bizarro. Uma reunião em que começaram a contestar postagens sobre racismo. Um monte de gente branca falando que você não pode falar de racismo, e quando eu questiono a postura deles é como se alguém tivesse colocado coisas na minha cabeça. Eu não posso formar pensamento, não tenho capacidade intelectual para formar meus pensamentos. Oi?

Uma coisa que disseram foi: 'Você quer abraçar o mundo, mas tem que primeiro cuidar da sua casa.' Na minha casa tem racismo, tem gente sendo morta. Na sua casa não tem, mas a gente não mora na mesma casa.

Em outra ocasião, vi uma postagem da CBB falando dos feitos do masculino, e nada das brasileiras que tinham acabado de ser MVP na Europa. Mandei uma mensagem perguntando para a pessoa se tinha visto as meninas. Recebi uma resposta grosseira, que depois foi apagada. Beleza. De noite, uma dirigente me ligou para me dar esporro porque eu questionei um funcionário.

Isso foi quando eu estava machucada, após o Pré-Olímpico, e ninguém da CBB havia me ligado para perguntar se eu estava bem, se eu estava treinando, se eu estava viva. Mas ligou para questionar por que eu estava reclamando. Para os homens, a doceria inteira, justo. Mas, para as mulheres, só uma bala? A gente não deveria precisar pedir migalha, se temos resultados recentes muito melhores. E nem se não tivesse.

A seleção era para ser um lugar alegre (ainda que de muita responsabilidade) mas se tornou um lugar tenso. A impressão é que você já chega lá devendo alguma coisa. Todo mundo com quem converso fala isso. A gente ia para seleção e era um lugar que você perde, ganha, mas tem prazer de ir. Hoje a maioria é: 'Se pudesse eu não iria'. Não é pra ser assim, não é para ser horroroso, hostil. É pra você engolir sapos, mas não é o brejo inteiro.

A depressão

O meu quadro depressivo, meu afastamento do basquete, não teve UM motivo. Foi uma soma de coisas que me deixaram de saco cheio. É essa a palavra: de saco cheio.

Fui perdendo a vontade de voltar. Para estar em quadra de novo eu precisaria treinar, me cuidar, me alimentar bem. Só que eu simplesmente não estava com energia para encarar os embates.

Parei para tentar entender o que o basquete era para mim. "Por que eu jogo basquete? É divertido, mas tem outro motivo?" Não era algo que eu queria no começo... Começou do nada, parou do nada, está tudo certo. Vou fazer qualquer outra coisa, está tudo bem. Não tem esse apego.

Sem fazer nada, eu também não ganhava nada. Fiquei parada, sem receber um puto, e minhas contas continuavam chegando. Mas nem a ideia de ficar sem dinheiro era suficiente para eu treinar. 'Por que vou treinar por dinheiro, se nunca foi sobre isso?' Tentei usar o ranço para transformar em força, mas nem isso eu conseguia.

Entender o que estava acontecendo levou um tempo, tive que dar um reset. Só na metade do ano passado, após quase dois anos parada, eu decidi tentar voltar. Não seria pelos outros, seria por mim.

Pegando no tranco

Quando voltei da França, fiquei morando em São Paulo. É aquela coisa: trânsito para ir na fisioterapia, trânsito para ir ao ginásio, tudo para desmotivar ainda mais. Então fui para Americana (SP), onde joguei por anos, e tenho um apartamento. Lá, tive o apoio essencial de um dos que fortalecem o meu corre: o preparador físico Vita Haddad - a fisioterapeuta Milena Perrone, de São Paulo, é outra que não pode ficar de fora.

Um tempo depois, veio o convite para jogar por Campinas no Paulista. Não estava querendo muito contato com pessoas, mas acabei aceitando. Foi duro, porque fiquei um mês e meio na fisioterapia, não conseguia entrar em forma, estava voltando aos poucos. Eles tiveram paciência e me ajudaram a voltar a jogar.

Após o Paulista, estava ainda no mesmo modo "consigo ou não consigo?", alguns clubes me procuraram, inclusive o Corinthians, que ia montar um time, com o Cris de técnico. Dele sim eu gosto muito, e resolvi embarcar.

Acho que fiz uma boa temporada regular. Quinze jogos, 13 pontos por jogo, 10 rebotes, décima jogadora mais eficiente da liga. De forma geral, estou feliz com meu dia a dia no basquete, animada e motivada sem pensar no geralzão, nos problemas estruturais. Estou pegando no tranco.

Sigo no Corinthians para a Copa São Paulo, mas não sei o que vou fazer nos próximos meses. Preciso estar bem fisicamente, mas estou trocando a roda com o carro andando. Talvez seja a hora de parar e cuidar com calma do meu corpo.

O que me deu um gás, este ano, foi jogar pela seleção de 3x3, pela primeira vez. Faz tempo que a Rafa, técnica da equipe, me chama, e agora eu estava em condições físicas um pouco melhores. Não conquistamos a vaga olímpica, mas foi uma experiência muito legal.

Fui fazer um story lá no Pré-Olímpico e comecei a querer chorar de emoção. Até parei. Eu vou dar defeito no story? Não, né? Mas mostra que eu ainda gosto disso daqui e quero aproveitar a parte boa de ser uma jogadora de basquete.

Minha História

Os Jogos Olímpicos de Paris estão se aproximando e, para marcar essa contagem regressiva, o projeto Minha História, do UOL Esporte, em que grandes nomes do esporte nacional contam, em suas palavras, o que viveram para chegar ao topo, vai levar até você relatos dos grandes nomes do esporte brasileiro.

Muita história boa foi contada neste projeto, revelações foram feitas e vem muito mais pela frente. A ideia é unir as experiências das pessoas no esporte com temas de interesse geral da sociedade, abrindo a porta para o debate e para a reflexão. Embarque com a gente nesta viagem para Paris. Au revoir.

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