Nunca mais

Por anos minha carreira esportiva foi prejudicada pelo machismo. Hoje ele segue presente, tentando me boicotar

Flávia Maria de Lima, em depoimento a Demétrio Vecchioli Do UOL, em São Paulo

Eu sou a Flávia Maria de Lima, tenho 31 anos, sou uma atleta de alto rendimento de atletismo e estou classificada às Olimpíadas. Só tem um problema. Os Jogos serão em Paris e não tem como disputá-los sem ir pessoalmente à França.

Por causa disso, eu posso perder a guarda da minha filha de 6 anos. Mas nem precisava ir tão longe, literalmente.

Cada viagem que fiz para buscar a vaga olímpica, mesmo dentro do Brasil, foi informada à Justiça pelo genitor da minha filha como argumento para tentar demonstrar a absurda ideia de que estou abandonando-a.

Ao longo da história dos Jogos Olímpicos, sabe-se lá quantas dezenas de milhares de atletas homens competiram. Eles sempre foram maioria, afinal. Imagine quantos eram pais.

Mas nenhum nunca foi acusado de abandonar os filhos por trabalhar como atleta para o sustento deles. Eu sou, e só porque sou mãe, logo, mulher.

Por anos minha carreira esportiva foi prejudicada pelo machismo. Hoje ele segue presente, tentando me boicotar. Mas agora eu digo: "nunca mais".

Terrorismo judiciário

O atletismo tem dois caminhos para a classificação olímpica. Um é o tradicional índice. Na minha prova, os 800m, exigia-se o tempo de 1min59s30, jamais feito em uma competição brasileira.

O outro é um ranking de pontos, que considera cinco resultados por atleta e dá mais valor aos torneios de área (Brasileiro, Sul-Americano) e ao circuito de meetings da Europa.

Faço essa introdução para explicar que simplesmente não tem como ir às Olimpíadas correndo só no Paraná. Viajar faz parte da minha profissão, das etapas que eu preciso percorrer para obter meu sustento, com bolsas e patrocínio, e alcançar meus objetivos profissionais.

Isso deveria ser o óbvio, mas essas viagens têm servido de terrorismo judiciário em uma tentativa de me atingir a partir das duas coisas que mais prezo no mundo: minha filha e minha carreira.

Dupla jornada

Minha filha nasceu em 2018, dois anos depois de eu fazer minha estreia olímpica na Rio-2016.

Eu tinha 25 anos e queria muito ser mãe. Não foi uma gravidez planejada, mas eu senti que era momento. Quando contei para meu então companheiro, ele disse que não queria ser pai, demorou a acreditar que teríamos uma filha.

Voltei a treinar quatro meses após o parto, e já estava preparada para todo o preconceito com uma atleta mãe. Fiquei quase um ano sem clube, sem patrocínio, só me mantive no esporte graças ao governo federal, que continuou pagando minha Bolsa Atleta olímpica, a qual tinha direito por ter disputado as Olimpíadas anteriores.

O que eu não estava preparada é para a rotina de mãe, atleta e dona de casa sem nenhuma ajuda. O que me cansava era o trabalho doméstico: lavar, cozinhar, passar enquanto o bebê dormia. Era a exaustão extrema.

Eu lavava a roupa em um tanquinho feito para uma pessoa de 1,50m, mas eu tenho 1,76m. Passava o dia esfregando roupa, por quase um ano e meio. Deitava na cama e não conseguia me mexer, de tanta dor nas costas.

Eu só segui atleta graças ao apoio de uma amiga que, fizesse sol ou chuva, ia todos os dias em casa para cuidar da minha filha para que eu pudesse treinar. A tal sororidade feminina.

Dívidas

Como não conseguia treinar com a intensidade que precisava, só conseguia fazer volume, mudei de prova, para os 3.000m com obstáculos, sem o mesmo sucesso.

Não aceitava que minha carreira terminasse daquele jeito, e em 2021 deixei minha filha dois meses com a minha mãe, para treinar em São Paulo e buscar a vaga nas Olimpíadas, que não veio por muito pouco. O ranking classificava 48 atletas e eu fiquei em 51º lugar.

Isso me fez cair de categoria no Bolsa Atleta, o que foi um baque grande financeiramente. Como meu então companheiro dizia que estávamos sempre endividados, passei a fazer crochê para vender, uma atividade a mais na rotina de mãe, atleta e dona de casa.

Só que se eu não conseguisse fazer o almoço para terminar uma encomenda e pedisse para ele comprar uma marmita, ele reclamava. Disse com todas as letras que era minha obrigação ele chegar em casa e estar com a comida feita, a roupa lavada, servir ele em todos os sentidos.

Tudo que eu ganhava ficava na mão dele, inclusive do crochê, que era ele quem vendia. Hoje, prefiro seguir acreditando na versão de que vivíamos endividados, porque minha decepção seria maior. Tem certas verdades que é melhor a gente não saber.

Lesão

Em 2022 eu quase não competi por causa de uma lesão na panturrilha.

Minha filha ficava em uma escola de contraturno, em uma brinquedoteca, e morávamos em uma subida. Então todos os dias eu pegava ela na hora do almoço e subia com ela em um braço, o guarda-chuva no outro e duas mochilas nas costas.

Almoçávamos e fazíamos o mesmo percurso, descendo. Depois, no fim da tarde, subindo. Eram 6 quilômetros por dia com ela no colo, sem tempo para massagem, fisioterapia, nada que uma atleta de alto rendimento precisa.

Eu saía de casa e chorava de dor, doía o tempo todo. Até que uma hora veio a lesão, um rompimento de grau 2 na panturrilha. Não conseguia mais andar, muito menos treinar, e só aí ele comprou uma bicicleta com cadeirinha.

'Chorava todo dia'

A pista de Campo Mourão passou por reforma no ano passado e nem na rua eu conseguia treinar, porque chovia muito. Precisei passar cinco meses treinando em São Paulo e, neste período, minha filha ficou com o pai, ainda meu marido na época.

Depois de tantos anos juntos, eu nunca havia precisado profissionalmente tanto do apoio dele, mas foi exatamente quando eu percebi que ele não se doaria da forma como eu me doava por ele, ou como um companheiro deve se doar pela sua companheira.

Pelo contrário, passou a impedir o meu contato com a minha filha. Eu voltava a Campo Mourão esporadicamente, durante esses cinco meses, e em uma das oportunidades ele a pegou e foi passar 10 dias na casa da minha mãe, sem nenhuma explicação, só para que eu não pudesse vê-la.

Eu queria voltar para casa, resolver os problemas, chorava todo dia, mas precisava focar na minha carreira. O que me acalmou foi o conforto espiritual. Comecei a me conectar com Deus, e sentia que precisava seguir no esporte.

Quando retornei a Campo Mourão, ela relatou situações vivenciadas com ele que me convenceram de que eu precisava ir embora. Pedi o divórcio em agosto, ele saiu de casa, e permaneci na cidade até o fim do ano letivo.

Para não deixá-la sozinha com ele, não fui aos Jogos Pan-Americanos, mesmo depois de ter sido semifinalista do Mundial, correndo duas vezes para 2min00s.

Briga na Justiça

Eu sempre soube que, a partir do momento em que eu me separasse, eu teria de sustentar a minha filha sozinha e que seria difícil lidar com ele no judiciário. Era: "Ou eu corro, faço resultado e garanto bolsas, ou perco a guarda da minha filha".

Eu quero dar o melhor para minha filha, quero dar o mundo que eu não tive: as melhores condições, as melhores oportunidades, todo o carinho. Preciso estar em evidência para poder proporcionar isso.

Tenho que remar contra uma correnteza que é o genitor tentando de tudo para atrapalhar a minha carreira e os meus resultados. Temos a guarda compartilhada, ele pode visitá-la na casa da minha mãe em Campo Tenente (PR), onde agora moramos, mas nunca veio. Só a viu em março, porque a levei a Campo Mourão.

Mas, a cada vez que sai uma convocação minha, ela é peticionada no processo, na tentativa de convencer a Justiça de que estou abandonando minha filha. Foi assim no Campeonato Sul-Americano Indoor, na Bolívia, e no Mundial Indoor, para o qual fui convocada no dia da viagem, e que aconteceu na Inglaterra.

Quando esse terrorismo judiciário começou, eu passei a entrar em pânico de competir. Estava com passagem comprada e hotel reservado pelo clube para competir a Copa Brasil de Meio-Fundo, mas entrei em pânico e não consegui sair de casa. Depois, isso se repetiu em uma competição estadual.

Quando discuti isso na terapia, ergui a bandeira e falei: não vou deixar ele ganhar, não vou deixar ele me desestabilizar. Foi ali que eu disse que ele não tem mais poder sobre mim, e que eu iria aos Jogos Olímpicos.

Resistência

Campo Tenente não tem pista de atletismo, então faço minha preparação correndo na rua e frequentando uma academia local que me dá apoio. Levantei patrocínio para ir à Europa e ajudar com as despesas de um camping, que eram minha última oportunidade.

Venci as duas edições do Troféu Brasil na corrida olímpica e também o Sul-Americano. Mas só vou às Olimpíadas porque conquistei pontos importantes competindo na Europa, em junho.

Rezei muito antes de entrar no avião. Orei todos os dias, pedindo a Deus proteção, mas viajei com o coração na mão. Fiquei mais de um mês fora, mas não sei se dessa vez isso foi protocolado ao processo. Pedi à minha advogada para só me informar em caso de urgência, para não tirar meu foco.

O que me move é mostrar às mulheres que isso é uma coisa que acontece dentro do sistema judiciário. Os homens usam isso, o próprio sistema, para tentar nos desequilibrar.

Eles não gostam que a gente evolua sem eles, não gostam de ver a gente crescer, precisam nos diminuir ou nos desestabilizar.

Ir para os Jogos Olímpicos é uma forma de resistência. É uma forma de dizer para minha filha que ela é dona das escolhas dela, da vida dela, que ninguém pode dizer o que ela pode ou não fazer.

Minha História

Os Jogos Olímpicos de Paris estão se aproximando e, para marcar essa contagem regressiva, o projeto Minha História, do UOL Esporte, em que grandes nomes do esporte nacional contam, em suas palavras, o que viveram para chegar ao topo, vai levar até você relatos dos grandes nomes do esporte brasileiro.

Muita história boa foi contada neste projeto, revelações foram feitas e vem muito mais pela frente. A ideia é unir as experiências das pessoas no esporte com temas de interesse geral da sociedade, abrindo a porta para o debate e para a reflexão. Embarque com a gente nesta viagem para Paris. Au revoir.

+ Minha História

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