O mito do herói

Minha História: ídolo do atletismo, Joaquim Cruz conta por que está pronto para voltar ao Brasil após 30 anos

Joaquim Cruz Em depoimento para Demétrio Vecchioli, do UOL Apu Gomes/UOL

Há 61 anos, uma mulher juntou seus poucos pertences, cinco filhos, e subiu em um pau de arara para cruzar pela primeira vez na vida a fronteira do seu mundo: o município de Corrente, no Piauí. O destino era a recém-inaugurada Brasília, mas alguns quilômetros adiante um dos passageiros foi encontrado morto e o caminhão deu meia volta com o finado.

Para aquela mulher que aprendeu a ler sozinha para ser capaz de decifrar a Bíblia, teria sido mais fácil concluir que as pedras no caminho eram um sinal divino. Mas Dona Lídia voltou ao pau de arara e, 12 dias depois, chegou a Brasília, surpreendendo seu marido, meu pai, o primeiro Joaquim Cruz, que havia migrado antes. Aquela aventura ficou no meu DNA. O gene do desbravamento.

Eu ainda era bem pequeno e a família voltou para Corrente. Ali, pela segunda vez, minha mãe determinou o meu destino. Quando meu pai optou por viver sua fase playboy, ela armou uma rede para ele, preparou farofa com carne seca, pegou os seis filhos, subiu no pau de arara e voltou sozinha para Brasília. Ele foi atrás um tempo depois.

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Graças a ela, fui mais bem alimentado na infância do que meus irmãos e cresci esguio em uma casa humilde, mas com fácil acesso a diversas práticas esportivas. Não fosse ela, eu não seria Joaquim Cruz, campeão olímpico.

Quando revivo minha história, me vem à mente um dos meus escritores preferidos, o mitologista Joseph Cambell. Foi ele quem propôs a teoria da jornada do herói arquetípico, que nasce em um ambiente humilde, cresce no ambiente ordinário, recebe e abraça o desafio, encara um mundo desconhecido e depois retorna ao ponto de partida trazendo uma mensagem. Corredor de 800 metros, fui um pouco além e já completei duas voltas na teoria de Campbell. Uma como atleta, que exploro nesse texto, outra como treinador. Estou pronto, cada vez mais, para voltar ao meu lugar de origem com minha mensagem. Moro há quase 30 anos nos EUA, mas me sinto cada vez mais próximo dos meus.

O chamado à aventura

Devo minha carreira no atletismo, também, a uma brincadeira de mau gosto do Wandeco, apelido do Carlos Wanderley, um companheiro de aventuras em Taguatinga, cidade satélite de Brasília. A minha casa não tinha eletricidade, logo, não tinha televisão. Entretenimento era subir em árvore, nadar em poça de água, caçar passarinho.

Comecei a jogar futebol aos sete anos. A dois minutos de casa tinha um campinho, que nós mesmos construímos. Mas isso me fazia escapar da aula de educação física no Sesi Taguatinga. Acabei obrigado a marcar presença depois que o Wandeco me pregou uma peça dizendo ao treinador que eu queria entrar para o time de basquete. Ele repetiria a dose poucos anos depois. Eu já me destacava no basquete e, muito tímido, usava o esporte para me exibir. Era a forma de me apresentar, me comunicar, mostrar que eu existia para o mundo.

Jogava pelo Sesi, mas já estudava em outra escola. Lá, o professor de educação física precisava completar a equipe de atletismo. Sabendo que eu não ia gostar da ideia, porque não estava pronto para o stress de ser atleta de uma modalidade individual, o Wandeco me sacaneou de novo. "Coloca o Joaquim, que ele gosta de correr".

No dia seguinte, para completar a sacanagem, espalhou a novidade para o nosso técnico de basquete, Luiz Alberto de Oliveira. Eu não sabia, mas aquele seria o meu chamado à aventura.

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O mentor

Quando soube que eu estava inscrito na equipe de atletismo da escola, o Luiz Alberto quis fazer um teste na pista de carvão. A contragosto, corri 1.500 metros e o cronômetro marcou 4min47s, que ele descobriria ser um ótimo tempo. Para mim, tanto fazia. Estava convicto em recusar o chamado. Para não dizer isso na cara dele, sumi por uns dias.

Se você fosse meu filho, ia entrar aqui apanhando."

Foi o que o Luiz disse ao me encontrar, antes de baixar o tom e mentir, afirmando que conhecia vários exemplos de atletas que faziam duas modalidades ao mesmo tempo.

Encarei o desafio até quando, já me destacando no basquete, participei de uma clínica com um americano que me deu um par de tênis All Star e prometeu uma bolsa de estudos nos EUA. Larguei o atletismo por alguns meses, até ser desafiado pelo Luiz: eu correria um campeonato nacional para juvenis, depois o Sul-Americano, e, se não me empolgasse, poderia largar o atletismo. Com três ouros no peito, decidi ficar.

Meu sucesso foi rápido e meus sonhos eram enormes. Aos 17, eu já era campeão mundial escolar e assisti pela TV ao Agberto Guimarães chorar, lamentando ter ficado em quarto lugar nos 800m em Moscou. Registrei no meu diário que, quando eu fosse à minha primeira Olimpíada, seria medalhista.

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O primeiro portal

O Luiz havia me convencido que o caminho mais fácil para os EUA seria o atletismo. Dito e feito. Dali a poucos meses, fui recrutado pela Brigham Young University. Eu já era patrocinado pela Coca-Cola e, na véspera de assinar a inscrição na BYU, corri o Troféu Brasil em 1min44s3, novo recorde mundial júnior e sul-americano adulto. Tempo de campeão olímpico em Moscou.

Fiquei três meses na BYU e logo me transferi para a Universidade de Oregon, no quintal da Nike, que passou a me patrocinar e fez para mim um tênis com o solado do pé direito mais alto. É que a minha perna direita é 2 centímetros mais curta que a esquerda.

No ano seguinte, precisei operar o pé. Estava me recuperando quando o Luiz Alberto veio à minha casa dizer que queria voltar para o Brasil, por questões familiares. Respondi na lata: "Você volta. Eu nem comecei a fazer o que eu vim fazer aqui". Minha passagem era só de ida. Como minha mãe, eu apostei no desconhecido. Eu já conhecia meu mundo ordinário em Taguatinga. Eu havia cruzado o primeiro portal e nada iria me segurar.

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A provação

Como Jonas foi engolido pela baleia, eu fui engolido por minha ansiedade no meu primeiro Mundial. Aos 20 anos, pelo que havia feito no circuito europeu, já era favorito ao título da primeira edição do torneio, na Finlândia. Mas ainda não havia descoberto como relaxar antes da prova.

Passei a noite anterior à final competindo, correndo, visualizando como iria transcorrer a prova. E imaginei só um jeito de correr. Mas a prova de 800m exige um leque de estratégias. Fui ultrapassado antes do fim da primeira volta, perdi minha concentração, meu prumo, e terminei em terceiro, frustrado. No fim daquele ano de 1983, em uma entrevista, disse sem medo: vou ganhar a Olimpíada de Los Angeles.

Antes, conheceria a mulher que mudaria minha vida. Me exibir para a Mary, então minha namorada, hoje minha esposa e mãe dos meus filhos, virou uma faísca a mais para ganhar o ouro olímpico. Ter uma musa me fez bem. Em Los Angeles, ao invés de ficar pensando e repensando na prova no dia seguinte, eu simplesmente fantasiava com a Mary. Se eu acordasse no meio da noite, era só voltar à fantasia e dormir o sono dos apaixonados. Qual era a fantasia? Não conto.

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Enfim, o Olimpo

Pensando na Mary, foi mais fácil controlar meus dragões, minha ansiedade, e um adversário banal do herói moderno: o enorme engarrafamento no ônibus da vila olímpica até o Coliseu. Atrasei, mas cheguei a tempo de aquecer em uma pista quase vazia. Já dentro do estádio olímpico, evitei olhar para cima, ter contato visual com os torcedores e cair na armadilha da intimidação. Seria ouro, independentemente da estratégia que a prova exigisse.

No início, minha preocupação foi fugir do caixote. A partir dos 200 metros, ficar atrás do queniano Edwin Koech, que transformei em coelho. Meu adversário pelo ouro era o britânico Sebastian Coe. Eu sabia que não poderia sair na hora errada. Aquela seria a minha provação.

Em um dia comum, eu ergueria a cabeça e aceleraria faltando 300 metros para o final. Naquele dia, exerci minha paciência. Só na entrada da reta é que disse o "agora eu vou". Foram centésimos de segundo memoráveis. Arrepiado, olhei para a arquibancada e já não vi mais ninguém. Era como se o povo todo tivesse se derramado na pista. O Coe e o queniano ficaram para trás. O ouro e o recorde olímpico eram meus.

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Recusa à recompensa

Aquela foi a primeira vez que o Brasil viu, ao vivo, um brasileiro ser campeão olímpico. Minha mãe já morava em um apartamento alugado, que foi tomado por jornalistas.

Após a conquista, por telefone, ela me contou que a Fundação Roberto Marinho me oferecia uma casa. Sem saber que estava ao vivo na TV, respondi que dessem a quem precisa, uma vez que muitos no Brasil não tinham (e não têm) onde morar. Tínhamos onde morar e podíamos trabalhar para conquistar uma casa maior.

Não quero homenagens, que construam pistas."

Não retiro uma vírgula do que disse naquele dia, pego de surpresa após o ouro olímpico. Também não voltei ao Brasil nos meses seguintes. Não desfilei em carro de bombeiro, nem permiti que dirigentes e políticos que nada faziam pelo esporte brasileiro, por mim e por outros garotos que sonhavam em vencer na vida pelo esporte, se aproveitassem do meu resultado.

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O fim da primeira volta

Não demorou para que eu comprasse a tão sonhada casa própria para minha mãe, com os prêmios e bônus que conquistei pelo meu trabalho. Também comprei dois carros, um para mim e outro para o Luiz Alberto, que seria meu treinador até o fim da minha carreira e um segundo pai para sempre.

Motorizado, passei a andar menos a pé. Talvez por isso, passei a lidar com diversos problemas físicos, principalmente no tendão de Aquiles. Fui submetido, ao longo da carreira, a oito cirurgias, que abreviaram meu período no topo.

Ainda assim, atingi outros feitos notáveis como, como a prata em Seul-1988, novamente nos 800m, e dois ouros em Jogos Pan-Americanos. Até hoje detenho a quinta melhor marca da história nos 800m — por muitos anos, foi a segunda. Não fui à Olimpíada de Barcelona, por lesão, e, antes de me aposentar em Atlanta realizei o sonho de ser porta-bandeiras.

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O caminho de volta

Talvez na Grécia dos grandes mitos a minha jornada do herói se completasse logo após a aposentadoria das pistas. No Brasil, as coisas são mais complicadas. De fato, eu retornei para casa assim que encerrei meu desafio como atleta. Convidado pelo governo paranaense para pensar um grande projeto esportivo no estado, trabalhei dois anos em Curitiba.

O projeto seria patrocinado pelo banco HSBC. Estava tudo pronto, faltava só o lançamento, quando o então secretário de esportes sofreu um acidente de carro e morreu. Dias depois, o patrocinador saiu do projeto, que acabou. Simples assim.

Impossibilitado de completar essa jornada, iniciei outra, como treinador. Precisava trabalhar para sustentar minha família e os Estados Unidos me deram essa oportunidade. Contratado há 16 anos pelo comitê norte-americano, fui como técnico de atletas olímpicos e paraolímpicos a Pequim-2008 e a Londres-2012. Hoje moro pertinho do CT de San Diego.

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A mensagem

Cresci numa localidade humilde do Centro-Oeste brasileiro, onde tive a sorte de ter meu talento identificado por um treinador tão faminto por descobertas quanto eu, e criei meus filhos dentro de uma comunidade absolutamente organizada esportivamente. Sou muito frustrado por ter aprendido tanto e tão de perto sobre o modelo americano e ser incapaz de replicá-lo no Brasil, onde a mistura racial é uma coisa fora de série e a temperatura é perfeita para a prática esportiva.

Falta mudarmos a mentalidade de pirata do brasileiro. Ele quer chegar à taça, às medalhas olímpicas, está no oceano, mas sai sem direção. É um sistema pirata. Cada um fazendo o que quer, quando quer, na direção que acha que pode levar à vitória. Não temos o modelo nacional que liga a base ao alto rendimento.

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Por mais de 12 anos liderei projetos esportivos com foco social nos arredores de Brasília. O objetivo do Instituto Joaquim Cruz era dar oportunidade, inserção social à garotada. Teve uma época que estávamos muito bem de grana, com projetos incentivados e a Rio-2016 no radar das empresas. Tínhamos vários núcleos do Clube dos DescalSOS, patrocinado por 12 anos pela Caixa, mais o Rumo ao Pódio Olímpico, voltado a formar atletas.

Foi muito triste quando o Ricardo Vidal finalizou as papeladas para fechar o instituto, mas não teve jeito. Uma frustração profunda, porque, de algum jeito, eu estava fazendo algo pelo meu país. Eu queria ajudar, mas o meu país não se ajudou.

Recentemente, as circunstâncias me reaproximaram do Brasil. Com a pandemia, o tempo livre e as pessoas a um toque no celular, estou me envolvendo cada vez mais com o esporte brasileiro. Apoiei publicamente a chapa que acabou derrotada na eleição do COB, tenho ligado para presidentes de federação para discutir o atletismo, participo das reuniões da comissão de atletas da CBAt. É como se a mosquinha azul tivesse me picado.

Estou muito bem empregado no comitê dos EUA, não estou procurando emprego, mas não posso negar que no verão passado se encerrou minha missão mais recente: posso dizer que meus filhos estão criados. Talvez seja a hora de iniciar minha próxima missão e retornar ao meu ponto de partida com uma mensagem. Estou pronto.

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Minha História

Os Jogos Olímpicos de Tóquio, originalmente marcados para agosto de 2020, foram adiados para 2021. Com todo o mundo impedido de sair de casa, os atletas tiveram de parar, pensar e traçar planos para recomeçar. Para marcar essa etapa, o projeto Minha História, do UOL Esporte, em que grandes nomes do esporte nacional contam, em suas palavras, o que viveram para chegar ao topo, publica relatos dos grandes nomes do esporte brasileiro que devem brilhar no Japão.

A primeira edição teve o campeão olímpico do salto com vara de 2016 Thiago Braz, que fez um relato sincero sobre relacionamentos, como o que está reconstruindo com seus pais, e amizades, como as com o saltador Augusto Dutra, o treinador Elson Miranda e o fisioterapeuta Damiano Viscusi, que morreu em 2017.

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