Você já levou um nocaute?

Em 2021, tomei o pior golpe da vida e conto como boxe me ajudou a levantar

Keno Marley, em depoimento a Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo

Eu já sofri alguns nocautes durante as lutas. Mas nada se compara aos que a vida te dá. A pancada te surpreende no momento em que menos se espera. Não é fácil levantar, mas o boxe me ensinou como reagir, clarear a mente e seguir em frente em busca dos meus objetivos e da felicidade.

Quando falo de felicidade, eu penso, principalmente, em como o esporte traz sorriso no rosto de minha mãe e minha tia. É isso que faz tudo valer a pena. Fui campeão dos Jogos Olímpicos da Juventude em 2018, tenho duas medalhas de ouro no Continental de Boxe e três pratas importantes: Pan de Lima-2019, Santiago-2023 e Mundial de Belgrado em 2021.

Existe um paradoxo na minha história, porque ao mesmo tempo que o ano 2021 foi terrível, também foi o ano em que mais evoluí no esporte. Conquistas importantes vieram e é isso que eu, Keno Marley, quero continuar fazendo, principalmente agora, cada dia mais perto de Paris.

O boxe e todas as amizades que construí graças a ele me ensinaram a levantar e partir para a próxima luta, não importa a força da pancada. Claro que existem nocautes que te marcam para o resto da vida, transformam a trajetória que você traçava. Mas eles ajudam a amadurecer.

Fãs de luta

Sou de uma cidade pequena do Recôncavo Baiano, Conceição do Almeida. Eu sempre fui muito tímido, tinha poucos amigos e contato com outras pessoas que não fossem da minha família. Todo o lugar que eu ia, era porque estava com o meu irmão. Todos os amigos que eu tinha eram amigos dele. Então eu vivia ali na aba do Jeremias.

Foi o Jeremias, inclusive, que me apresentou ao boxe. Nós costumávamos assistir a muitos filmes sobre luta e acompanhar tudo o que era relacionado ao esporte. Então, ele começou a praticar em 2011 e eu o acompanhava nos treinos até que um dia também passei a lutar.

Já no primeiro treino, me apaixonei pelo boxe e não perdia um dia. Estudava pela manhã e, depois, partia para o ringue. A Bahia tem uma certa tradição na modalidade, e a equipe formada na minha cidade nasceu graças a um projeto social. A estrutura era muito precária, carente, mas foi assim que comecei e acabei marcando o lugar onde nasci no mapa do estado do boxe.

Nessa época, o boxe era só um hobby. Os treinos eram mais tranquilos e leves. Não passava pela minha cabeça que poderia se tornar uma profissão.

A ida para São Paulo

Aos poucos, comecei a participar de alguns eventos em academias pequenas até que, em 2013, viajamos a São Paulo para disputar o Galo de Ouro, uma competição bem tradicional de boxe. Fui campeão e a equipe Tony Boxe propôs que eu fosse morar na capital paulista.

Conversei com a minha mãe. Afinal, eu era bem novo e seria algo atípico sair de casa tão cedo. Tinha só 13 anos e minha família sempre viveu na Bahia. Quando tinham competições assim, eu viajava sozinho, porque o Jeremias havia parado de treinar para trabalhar.

Cheguei em São Paulo e acabei formando uma família aqui com a equipe do Tony Boxe, que era o treinador principal e um pai para todos nós. Logo eu, que sempre fui fechado, consegui me abrir e fazer as minhas próprias amizades graças ao esporte. Não foi só isso. Participei de eventos maiores e conquistei títulos importantes, estaduais e nacionais.

A primeira convocação para a seleção

Em 2017, o Mateus Alves — head coach da seleção brasileira — me convidou para o projeto que estava montando para os Jogos Olímpicos da Juventude no ano seguinte, em Buenos Aires. Foi minha primeira convocação para representar o país.

Fui desenvolvendo e aprendendo com os atletas mais velhos. Aos 17 anos, eu era o único juvenil convivendo com a equipe olímpica permanente de adultos e foi uma experiência inesquecível. Todos me abraçaram, me motivaram muito e também se tornaram uma família na ausência da minha.

Neste momento, eu tive a certeza de que o boxe seria a minha vida. Antes da virada do ano, fui para um campeonato continental nos Estados Unidos — o primeiro grande evento — e consegui a classificação para os Jogos da Juventude após fazer final e vencer um atleta local.

Campeão olímpico da juventude

Apesar da bagagem com a medalha de ouro internacional, eu ainda era realmente bem jovem quando fui para Buenos Aires disputar as Olimpíadas da Juventude. Com o apoio da seleção — que compartilhou toda a experiência comigo — cheguei ao topo novamente e conquistei mais um título: olímpico.

Pouco depois de deixar o juvenil, defendi o Brasil no Pan de Lima, em 2019, e fui vice-campeão aos 19 anos de idade. Esse passo me fez entender que eu teria chance de me classificar para as Olimpíadas, em Tóquio, programadas para 2020. A pandemia veio, foi algo diferente, mas continuei treinando firme.

O auge e o nocaute

Em 2021, com os Jogos confirmados, me apresentei à seleção olímpica em janeiro, de olho em competições preparatórias fora do Brasil. No dia 9 de janeiro, eu conversei com o Jeremias por telefone, como sempre fazíamos — ele estava trabalhando naquela hora. O meu irmão era a pessoa mais próxima que tinha em minha vida, contava tudo para ele.

Cansado do treino, fui dormir cedo até que o toque do celular me acordou. Achei até que tinha perdido o horário, mas não era o despertador. Era um amigo me comunicando sobre o assassinato de Jeremias. Foi um choque terrível, eu não sabia o que fazer. Parecia um trote, uma brincadeira sem graça, não conseguia acreditar que era verdade.

Vesti uma roupa e fui para o aeroporto sem pensar muito. Comprei a primeira passagem para Bahia e avisei o Mateus. Toda a equipe me apoiou e deu suporte para que eu pudesse ajudar a minha família naquele momento. Chegando lá, me deparei com a minha mãe, com 60 anos na época, sem condições de fazer qualquer coisa, inclusive de reconhecer o corpo do próprio filho. Então, eu fui o responsável por cuidar de todos os trâmites burocráticos, aos 21 anos.

Estava fazendo tudo no automático, como se fosse uma situação normal, mas não era. Na verdade, foi uma tentativa de fazer as coisas voltarem ao que era antes. Eu perdi a noção do tempo, questionei a minha vida, não sabia mais o que fazia sentido. Era com meu irmão que assistia ao boxe, foi por ele. Até hoje o caso não foi solucionado e os assassinos não foram presos. Eu me perguntava muito: "Será que se eu estivesse lá isso iria acontecer?". Me sentia culpado por não estar lá naquele momento.

Mas foi graças ao esporte que consegui me reerguer. Tive apoio da seleção assim que retornei a São Paulo, com psicólogos e psiquiatras, além do Mateus, os colegas de treino e toda a comissão técnica. Precisei de remédios controlados, porque fui diagnosticado com transtorno pós-traumático.

Viajei à Bulgária com a equipe permanente, mas não pude competir, justamente por causa dos remédios para a cabeça. Não era seguro levar pancadas nessa situação, mas fui para seguir treinando com a seleção. Quando não conseguia acordar, o pessoal me ajudava. Nossa, lembro muito do Herbert Conceição, o Abner, o Bolinha me forçando a sair da cama para tomar café da manhã, estava sem forças.

Já apto a lutar, fomos para a Alemanha. Era uma competição importante e foi a primeira vez que senti outro baque: não poderia mais enviar a tradicional mensagem ao Jeremias antes das lutas. Foi difícil, mas ainda fui campeão.

Nas Olimpíadas, eu fiquei muito próximo da medalha. Uma luta que questionaram até o resultado. Falaram que a derrota nas quartas de final foi polêmica. E eu fiquei muito triste, é normal. A gente se alegra nas vitórias, e se entristece nas derrotas.

Eu lembro que depois que perdi a luta, tirei um minuto. Sabia dos erros que tinha cometido e pensei: "Preciso tentar melhorar. Daqui a alguns meses, eu tenho um Campeonato Mundial pela frente".

Mais uma porrada daquelas

Antes de viajar para Belgrado, na Sérvia, e competir no Mundial, a gente foi treinar no Rio de Janeiro. Lá, eu recebi uma ligação de uma amiga. "Keno, você falou com sua tia? Mário falou com você?"

Senti que algo estranho tinha acontecido. Um acidente de carro, não sei. "Não. Eu vi que ele tinha ido a uma festa, mas não conversei com meu primo recentemente."

A ligação durou cinco segundos e essa amiga não falou mais nada. Pouco depois, meu telefone tocou novamente e era um familiar me comunicando sobre o suicídio de Mário, meu primo.

Mais um trauma terrível. Me deparei com minha tia naquela situação. Ela era como a minha mãe. Parecia que estava voltando no tempo e revivendo a morte do Jeremias. De novo, conversei com o Mateus e todo o pessoal da seleção. Viajei para a Suíça para dar apoio a minha tia.

Alguns dias passaram e o Mateus me ligou: "Falta pouco para o Mundial. Eu confio muito no seu potencial, sei que a gente não vai chegar 100% fisicamente. É um tempo curto, mas capacidade técnica e tática, eu sei que você tem".

Eu acreditei, né? Acreditei. Mais uma superação. A gente foi treinando e fomos para o Mundial da Sérvia. Aí veio a medalha de prata. Eu consegui fazer a final lá, uma luta muito emocionante, o ginásio lotado.

Caminhando

Às vezes, quando eu vou para casa depois do treino, eu falo: "E agora, o que eu faço?". Acontece muito isso, porque eu sinto falta do meu irmão. Eu saio na rua andando sem rumo, sem saber o que fazer.

Mas hoje, ainda bem, eu tenho meus amigos do boxe e saímos juntos por aqui em São Paulo, é natural. Também gosto de música e de aprender coisas novas. E assim vou me distraindo nos momentos fora do esporte.

No ringue, eu estou me concentrando ao máximo, tentando obter tudo o que é possível durante esse tempo. Falta pouco para as Olimpíadas. É o maior evento esportivo do mundo. E é algo que eu sempre quis. Antes era um sonho, hoje é objetivo. Quero conquistar essa medalha olímpica.

Se não fosse o boxe, não sei se teria levantado

O boxe foi a minha melhor escola e vai ser sempre aquele suporte familiar que eu vou ter. Em 2021, isso ficou mais do que provado. Recebi muito carinho e suporte de toda a seleção e também da equipe Tony Boxe, que foi minha porta de entrada.

A minha família de sangue, da Bahia, levou um nocaute pesado e foi o boxe que trouxe felicidade novamente para minha mãe, para minha tia, para todos que sofreram muito com o que aconteceu. O boxe é o que tem sentido pra mim hoje na vida.

Eu saí de casa com 13 anos para viver em um estado diferente, com pessoas diferentes. Foi difícil, mas foi o boxe que me deu um trabalho, uma profissão e me auxiliou em tudo.

Minha História

Os Jogos Olímpicos de Paris estão se aproximando e, para marcar essa contagem regressiva, o projeto Minha História, do UOL Esporte, em que grandes nomes do esporte nacional contam, em suas palavras, o que viveram para chegar ao topo, vai levar até você relatos dos grandes nomes do esporte brasileiro.

Muita história boa foi contada neste projeto, revelações foram feitas e vem muito mais pela frente. A ideia é unir as experiências das pessoas no esporte com temas de interesse geral da sociedade, abrindo a porta para o debate e para a reflexão. Embarque com a gente nesta viagem para Paris. Au revoir.

+ Minha História

Anderson Neves/CBJ

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