Lição de vida

Fui atropelada, quase morri, mas consegui enxergar o lado positivo disso tudo

Luisa Baptista, em depoimento a Beatriz Cesarini e Paulo Favero Do UOL, em São Paulo Getty Images

É claro que tive meus momentos de raiva e descontentamento. Fui atropelada, apaguei como triatleta de alto rendimento e, quando acordei, tive de reaprender a fazer coisas básicas como falar, andar e me vestir. Aos poucos, eu entendi que a revolta não me ajudaria em nada, por isso passei a manter a positividade e focar nos "para quês" e não nos "por quês".

Hoje, eu tenho certeza que o meu acidente aconteceu para inspirar muitas pessoas, para gerar mudanças na legislação a favor dos ciclistas e cicloviajantes, unir a família e até melhorar a minha própria autoestima. Nunca imaginei que poderia receber uma quantidade tão grande de carinho e amor.

Os profissionais que cuidaram de mim acreditam que a minha recuperação foi um milagre. É claro que o meu corpo de atleta fez grande diferença, mas tenho certeza que a positividade também. Eu sempre acreditei e comemorei cada conquista ao lado dos entes queridos.

Você deve estar se perguntando: "Luisa, você vai voltar a ser atleta de alto rendimento?" Eu penso nesse futuro, mas não sei o que vai acontecer. A certeza é que eu vou fazer o máximo para isso. Se eu venci até a morte, posso vencer muitos desafios. A curto prazo, vou focar na reabilitação e na torcida por meus amigos que irão representar o Brasil nas Olimpíadas de Paris.

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Dois meses em coma

Minha última lembrança antes do acidente foi um jantar com o meu ex-técnico Eduardo. Estava focada nos treinos para as Olimpíadas e nós fomos em um restaurante japonês. Só isso que me vem à cabeça. O corpo humano tem um mecanismo que apaga da memória traumas graves. Seria muito sofrimento lembrar, eu estava com muita dor.

Quando acordei do coma dois meses após o acidente em dezembro, me contaram o que aconteceu: estava pedalando em São Carlos um dia antes da véspera de Natal quando Nayn José Sales - um motociclista sem habilitação e na contramão - me acertou em cheio, de frente. Ele havia ido numa festa, com bebida alcoólica à vontade, na noite anterior.

Dei entrada no hospital da região com choque hemorrágico grave, pulmão perfurado, diversas fraturas e traumatismo craniano. Meu coração ficou parado por oito minutos. Não sabiam se eu iria sobreviver. Ressuscitei.

Foram 167 dias de internação, dois hospitais diferentes, inúmeros tratamentos e medicações, sete cirurgias, pulmão artificial (ECMO), muitos profissionais envolvidos. Todos lutando pela minha vida juntos comigo. Consegui voltar para casa no dia 8 de junho.

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Corpo de atleta

A vida no esporte, com certeza, ajudou muito na recuperação. E não falo só da parte física, a psicológica também está envolvida. Eu já passei por situações muito difíceis como atleta e essa foi mais uma que vivenciei. Talvez a mais difícil de todas? Sim, mas sem dúvida o que o esporte me ensinou foi essencial para que eu conseguisse me recuperar.

Foi graças ao esporte, também, que pude sair do hospital e voltar para casa antes do previsto. Um dos objetivos, por exemplo, era ganhar músculo para colocar a prótese no quadril e foi super rápido o processo até a operação, porque a memória muscular do meu organismo ajudou. O médico estipulou três meses para conseguir colocar a prótese e eu coloquei em dois.

Momentos de raiva e aprendizado

Eu tive meus momentos de descontentamento. Por muitas vezes, eu me perguntava por que isso aconteceu comigo. Até que entendi que a pergunta tinha que mudar um pouco: não "por que?", é um "pra quê?". Eu posso inspirar, posso mudar o mundo.

Também não tenho dúvidas de que esse acidente aconteceu para unir mais ainda a minha família: pais, irmão, tios, tias. E eles fizeram toda a diferença.

E tem mais: eu era uma pessoa extremamente perfeccionista e querer que as coisas sejam perfeitas agora não vai adiantar. Eu não posso acelerar o processo. Muitas vezes eu tive lesões e, por causa dessa característica, eu apressava tudo e acabava piorando a situação.

Sabe de outra coisa que melhorou por aqui também? Eu era uma pessoa extremamente mão de vaca e esse meu lado sumiu. A gente brinca com isso, mas agora eu estou querendo aproveitar para viver realmente. Não tem preço que pague momentos felizes.

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Carinho de todos os lados

Eu não tinha noção do quanto eu sou amada e compreendi isso durante todos esses meses. Não é só no mundinho do esporte, são as pessoas do Brasil. Eu não tinha noção de que tanta gente gostava de mim. Minha autoestima era bem baixa, na verdade, e isso vai mudar bastante.

A proporção de carinho que eu estou recebendo é um negócio absurdo. Existem mais pessoas boas do que más neste mundo.

Recentemente, recebi uma ligação de uma pessoa que eu sou realmente fã: Ana Marcela Cunha. Puxa, eu fiquei muito feliz e inspirada. Contei para ela que a acompanhei nos Jogos de Tóquio. Estava assistindo pela televisão e comemorei muito quando ela ganhou a medalha de ouro. A Ana falou que tinha certeza da minha recuperação e foi muito legal escutar isso dela.

Sobre reaprender

Durante a recuperação, eu precisei reaprender a fazer coisas que eu não me lembrava mais, até trocar de roupa. Para isso, contei com uma equipe multidisciplinar, com fisioterapeutas, médicos especialistas, fonoaudiólogos e psicólogos.

Teve muita gente envolvida para que eu conseguisse voltar 100%, sem sequelas. No começo, tinha muita dificuldade para falar e agora já consigo papear numa boa. Com a colocação na prótese do quadril estou praticando a caminhada, passo a passo. Aos poucos, tudo está voltando.

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Quem vê a foto, não viu o filme

A parte neural foi afetada no acidente por causa do traumatismo craniano. Os médicos falavam que eu corria sérios riscos de perder a memória e não iria mais conseguir falar, ler e um monte de outras coisas.

E estou aqui, falando com vocês. Acho que o próprio sistema nervoso vai se organizando. Lógico que é a longo prazo, mas já está muito melhor do que antes. Minha mãe, inclusive, encontrou um médico que falou que eu não voltaria a andar e mostrou um vídeo comigo caminhando na fisio.

Ele ficou desacreditado e eu falei: "Desafie o atleta, para você ver?". Muitos só viram a foto, mas não assistiram ao filme completo da vida inteira que eu construí e de tudo o que já passei.

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Justiça

Naqueles momentos de raiva que mencionei, eu fui buscar as redes sociais do homem que me atropelou. Lá, eu vi um vídeo do próprio Nayn dirigindo em alta velocidade, gravando e também tirando racha com sua companheira na mesma estrada que me atropelou. Eu fiquei abismada. Ele nem tinha habilitação, como que estava fazendo isso? Não é possível. Pelo jeito, é hábito dele andar na contramão, fazer racha, infringir regras.

Diferente do Nayn, eu sempre prezei por fazer tudo certinho. É uma questão de segurança. Sempre pedalei na mão certa, com a sinalização correta.

Ele está respondendo por lesão corporal culposa. Nós - eu, família e advogados - estamos lutando para que ele seja julgado por tentativa de homicídio com dolo eventual. Ele não tinha intenção de matar, mas sabia muito bem dos crimes que estava cometendo. Quero mudar isso para que mais pessoas tenham segurança na vida e que os culpados tenham mais punições severas.

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Futuro

De todas as especialidades como triatleta, a que mais sinto falta hoje é a corrida. Não sei se vou voltar ao alto rendimento ainda. É muito cedo para falar nisso. Como disse, não dá para apressar as coisas. Só que eu tenho certeza de que vou dar o meu máximo para isso. E aí, quando falamos de futuro, a gente brinca né? Um amigo meu falou: 'Luisa, você já venceu até a morte'.

Inclusive, todos os patrocinadores continuam comigo. Esse ano eu não vou competir, e, provavelmente, no ano que vem também não. Mas todos se mantiveram firmes, e eu quero mostrar a eles que farei o que puder, então podem me chamar para palestras motivacionais, ações.

Logo mais, as Olimpíadas começam e eu estou conversando com os atletas que conheço. Vou acompanhar o máximo de esportes que puder e enviar minha positividade aos brasileiros.

Minha História

Os Jogos Olímpicos de Paris estão se aproximando e, para marcar essa contagem regressiva, o projeto Minha História, do UOL Esporte, em que grandes nomes do esporte nacional contam, em suas palavras, o que viveram para chegar ao topo, vai levar até você relatos dos grandes nomes do esporte brasileiro.

Muita história boa foi contada neste projeto, revelações foram feitas e vem muito mais pela frente. A ideia é unir as experiências das pessoas no esporte com temas de interesse geral da sociedade, abrindo a porta para o debate e para a reflexão. Embarque com a gente nesta viagem para Paris. Au revoir.

+ Minha História

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