Amor construído

Nem todo amor de mãe vem desde a barriga. O meu foi construído após eu adotar o próprio sobrinho

Natasha Ferreira, em depoimento a Demétrio Vecchioli Do UOL, em São Paulo Anderson Neves/CBJ

Natasha Ferreira, judoca da seleção brasileira na categoria até 48kg, é mãe de Enzo, 8 anos. Ela adotou o garoto quando ele tinha um ano. A mãe biológica é dependente química e irmã de Natasha.

Neste texto, a judoca fala sobre como descobriu a maternidade e como Enzo a ajuda na busca pelo sonho olímpico. Hoje, ela é a melhor brasileira no ranking de sua categoria e estaria classificada para as Olimpíadas de Paris-2024. Mas ela precisa competir bem no Mundial de Abu Dhabi, que será realizado neste fim de semana, para confirmar a vaga.

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Ser tia é muito legal. Madrinha, então, mais divertido ainda.

Você leva a criança para brincar, para comer besteira, deixa se sujar. Dá amor, dá carinho, e, no fim do dia, ela volta para casa dela. Não é sua responsabilidade acordar com ela no outro dia, se preocupar com a alimentação correta, com a educação.

Sair do papel de tia e entrar no de mãe, aos 18 anos, com uma carreira no esporte pela frente, foi o maior desafio da minha vida. Maior até do que o meu atual: me classificar às Olimpíadas.

É por esse sonho que passei o Dia das Mães no Cazaquistão, voltando do Tadjiquistão (já ouviu falar?). Estava distante, mas carregava comigo a maior força que pode existir, o maior amor do mundo, o amor de uma mãe por um filho, e o de um filho por uma mãe.

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Eu estaria mentindo se dissesse que me tornei mãe no dia em que o Enzo chegou em casa, com 1 ano e meio de vida.

Meu então companheiro e eu não tínhamos qualquer estabilidade. Eu estava no primeiro ano de faculdade e morávamos com meus sogros. O Enzo tinha um chiqueirinho, que de noite servia como cama. Apertamos nossas roupas para que sobrasse um espaço para as roupinhas dele.

Ele chorava muito, e eu não sabia como lidar direito com uma criança praticamente 24 horas por dia. Eu também chorava muito, porque na minha cabeça aquilo não era justo, sabe? Eu sempre me cuidei exatamente para não ter um filho.

Foram seis meses para eu realmente me colocar naquela posição de mãe. Isso não surge de um dia para o outro, é uma construção, cheia de dificuldades.

Para o Enzo foi muito mais fácil. Em três meses, ele já me chamava de mãe, e chamava o Rafael de pai, sem que ninguém tivesse ensinado isso a ele.

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Quando eu era criança, minha irmã era minha inspiração. Foi para acompanhar ela que eu comecei no judô, ainda na escola.

Aos 15 anos, mais ou menos, ela começou a usar drogas em festas. Quando engravidou do Enzo, já era dependente química.

Por causa do bebê, chegou a ficar um ano limpa, mas a recaída sempre foi um risco. Em um jantar, o Rafael chegou a comentar com ela: "Você sabe que se você surtar de novo, a gente que vai ter que criar o Enzo, né?"

Dois meses depois, a gente teve mesmo que tomar essa decisão.

Minha irmã voltou a usar drogas, de uma forma bem agressiva, e quem sofria era o Enzo. Esquecia-o na escola, colocava-o em contato com drogas, com os vários parceiros sexuais que ela tinha... Do jeito que estava, logo ele seria mandado para adoção ou para o Conselho Tutelar.

Minha mãe já tinha criado três filhos, meu irmão mais novo tinha 15 anos, e ela não queria a responsabilidade de criar mais um. Eu era a madrinha, já tinha uma relação próxima, e não tive outra saída.

Hoje o Enzo tem duas mães. Vive comigo, e visita minha irmã de vez em quando, na casa da minha mãe, quando ela consegue passar uns dias limpa. A maior parte do tempo, porém, ela vive na rua.

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Se eu faria tudo de novo? Claro que eu faria. Não me arrependo de nada. Daria minha vida pelo Enzo.

Mas não foi fácil.

Uns meses antes da adoção, eu havia batido o martelo. Entre o sonho de ser judoca e o de entrar em Medicina, iria pelo primeiro, já que as duas coisas, ao mesmo tempo, no Brasil, são quase impossíveis. Decidi cursar psicologia, enquanto treinava.

Meu sonho é chegar às Olimpíadas e até abriria mão de qualquer coisa por ele. Menos de ficar longe do meu filho. Por isso, nunca saí de Curitiba, onde defendo a Sociedade Morgenau - todo o resto da seleção que vai para Paris está nos grandes clubes do país: Flamengo, Sogipa, Pinheiros, Minas.

Tive propostas de outros lugares, cheguei a pensar quando eu tinha meus 18 anos, mas aí veio o Enzo. Se eu sair do Paraná eu não poderia levar ele comigo, por não ter rede de apoio, nem condições financeiras. Além disso, o Enzo é muito apegado ao pai.

Quando estou em Curitiba, tento passar o máximo de tempo com ele, porque viajo muito e não posso levá-lo. Quando a competição é no Brasil, quase sempre tento levar, mas ele já tem 8 anos, está sendo alfabetizado, não pode ficar faltando na escola.

Na noite anterior aos campeonatos, a gente fala por telefone, e ele gosta de acender uma velinha para pedir para Deus para dar tudo certo. Depois da competição, tem sempre foto dele torcendo por mim, me assistindo, e isso é minha maior inspiração.

O Enzo, desde pequenininho, sempre amou a cidade de Paris, antes mesmo de saber que os Jogos Olímpicos seriam lá. Meu maior sonho é que ele consiga me assistir competindo em Paris.

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Eu sempre quis ter um filho da minha barriga. Hoje eu ainda quero ter mais um filho, mas eu penso seriamente em adotar.

Até o Enzo, eu nunca tinha pensado em adotar. Mas depois que fiz isso, acho que é um processo muito lindo. Ele fala com tanto orgulho que é adotado...

Acho que foi uma construção, que o Rafael e eu conseguimos criar de uma forma muito leve para ele. Várias vezes acontece de ele falar para outra criança que é adotado, e ela não acredita em um primeiro momento. Aí ele vem até um de nós e fala: 'Mãe, conta para ele que eu sou adotado'" Ele leva isso de uma forma muito leve.

A adoção te permite proporcionar uma vida melhor para uma criança. Fico pensando: 'Em que situação ele estaria hoje se não fosse pela adoção?'

Hoje ele é o único neto da família inteira, todo mundo o mim. Foi uma construção muito bonita, que nunca tinha passado pela minha cabeça e que eu acho que eu quero poder proporcionar para uma outra criança.

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Ter o Enzo na minha vida me fez ser uma judoca melhor. O começo foi difícil, mas a partir do momento em que ele entrou na minha rotina, e eu na dele, tudo fluiu.

Ele me deixou muito disciplinada, porque como eu tinha que ter uma rotina muito certinha, isso me fez ser mais disciplinada - e o Rafael me ajudou muito nisso, ficando com o Enzo para eu treinar e estudar.

Outra coisa que o Enzo mudou em mim: ter mais empatia. Sempre fui, e ainda sou um pouco fria, mais distante dos outros, e ele me fez ter esse afeto, essa empatia que eu nunca havia tido por alguém.

Mas ele me transforma todos os dias, de todas as maneiras diferentes. Ele é a única pessoa por quem eu daria minha vida, né?

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Os Jogos Olímpicos de Paris estão se aproximando e, para marcar essa contagem regressiva, o projeto Minha História, do UOL Esporte, em que grandes nomes do esporte nacional contam, em suas palavras, o que viveram para chegar ao topo, vai levar até você relatos dos grandes nomes do esporte brasileiro.

Muita história boa foi contada neste projeto, revelações foram feitas e vem muito mais pela frente. A ideia é unir as experiências das pessoas no esporte com temas de interesse geral da sociedade, abrindo a porta para o debate e para a reflexão. Embarque com a gente nesta viagem para Paris. Au revoir.

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