Qual o próximo passo?

Raquel Kochhann descobriu que tinha câncer depois da última Olimpíada. Curada, será porta-bandeira em Paris

Raquel Kochhann em depoimento a Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo Fotojump/Brasil Rugby

Raquel Kochhann descobriu que tinha câncer de mama e um tumor no osso do peito. Operou, enfrentou o tratamento e, curada, voltou à seleção brasileira de rugby. Hoje (22), ela foi anunciada como porta-bandeira da delegação nas Olimpíadas de Paris.

Agora, ela conta, em suas palavras, como enfrentou o momento mais difícil de sua vida e superou a doença.

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Quando descobri o câncer e, consequentemente, recebi a notícia de que teria de me afastar dos treinos pesados, reuni todo o time para explicar a situação. A primeira reação de todo mundo foi abaixar a cabeça, ficou aquele clima pesado. Mas só por uns minutos. Instantaneamente, eu falei: "Não quero ver ninguém com cara de tristeza. Façam piada e se divirtam com esse momento".

A Isadora, um pouco tímida, foi levantando o olhar e soltou: "Certeza que você vai correr mais rápido sem os peitos". Aos poucos, todos caíram na risada. Agora sim, esse era o clima que eu queria. Foi desta maneira que lidei com todo o tratamento. Só queria saber quando e como eu poderia voltar a jogar o rúgbi em alto rendimento.

"Qual o próximo passo?": essa era a pergunta que eu mais fazia. Fizemos algumas adaptações, mas não abandonei os treinos e o ambiente da seleção. Me disciplinei ao máximo para facilitar todo o processo de tratamento: alimentação extremamente regrada, bochechos de bicarbonato, exercícios mais leves. Tudo o que os profissionais — tanto os médicos como toda equipe — recomendaram, eu segui.

O único momento em que senti medo foi quando a incerteza sobre o retorno pairou. Afinal, era um câncer raro, no osso esterno. Precisava ser liberada pelos ortopedistas para voltar a me arriscar no rúgbi, um esporte de alto contato, e muitos médicos ficaram receosos. Eu me aposentaria se realmente não tivesse mais jeito. Mas teve. Consegui voltar para a seleção e agora, aos 31 anos, estou me preparando para a minha terceira participação em Olimpíadas. Meu nome é Raquel Kochhann e essa é a minha história.

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Primeiro sinal veio antes de Tóquio

O que era só uma lesão no ligamento cruzado anterior do joelho, daquelas típicas que todo o atleta sofre, acabou se tornando um longo tratamento contra o câncer de mama no osso esterno.

Vou explicar. Eu encontrei um caroço no seio antes das Olimpíadas de Tóquio, fiz exames e, em um primeiro momento, o nódulo não apresentou riscos. Então, deixamos ele lá quietinho e segui treinando. Um ano se passou e, em maio de 2022, sofri a lesão no LCA do joelho direito. Desta vez, a operação seria inevitável, por isso aproveitei para resolver dois problemas: o joelho e o tal caroço que estava com o dobro do tamanho e visível na pele, inclusive.

A biópsia foi feita e encontraram células cancerígenas encapsuladas no nódulo. O alerta era maior, porque embora eu tivesse retirado toda aquela peça, descobri que tinha uma predisposição genética para ter câncer de mama. Após uma conversa com o mastologista, fiz a cirurgia de mastectomia bilateral e não quis colocar próteses no lugar. Depois, fui encaminhada à oncologia.

Mais uma bateria de exames e mais uma descoberta: o câncer no osso esterno, aquele que fica no nosso tórax. O curioso é que era exatamente o mesmo tipo de células que encontramos na mama e, segundo o médico, era um caso extremamente raro.

Não tem como saber, mas, na minha concepção, o câncer se desenvolveu no osso e alguma célula conseguiu escapar, migrando para a mama, e foi assim que eu descobri o câncer.

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A mãe Vera e a energia contagiante

Quando eu tinha uns 15 anos, minha mãe teve câncer de mama e passou pelo processo sozinha, lá no Sul. Eu morava longe, em Caxias do Sul, porque estava treinando em uma equipe de futsal, perseguindo meu sonho de virar atleta e vestir a camisa da seleção brasileira. Minha irmã era bem novinha e acabou amadurecendo demais nesse processo.

Eu sei que todo mundo fala que o câncer é uma doença muito séria. Mas eu sempre pensei assim: "Se a minha mãe teve a capacidade de passar por isso e virou um exemplo lá na nossa cidade, todas as pessoas têm essa capacidade, inclusive eu".

Eu acredito muito no poder da nossa mente em relação ao nosso corpo. Então, tudo que a gente acredita e projeta, pode se transformar fisicamente. E eu sempre tentei levar isso com a melhor energia possível, assim como a minha mãe. A positividade dela é ainda maior que a minha.

Quando descobri o câncer, minha mãe decidiu viajar de Pinhalzinho, em Santa Catarina, a São Paulo para ficar comigo. Ela não queria que passasse pelo tratamento sozinha. É claro que o astral dela me deu muita força. Para você ter uma ideia, sentiram a maior falta na escola onde ela trabalha como faxineira.

"Tá bom, já chega da Vera ficar lá contigo, né? Tu já pode devolver ela. Tá faltando a energia boa dela aqui da escola", disseram as amigas da minha mãe.

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Não sou obrigada a mudar para agradar

Desde que fiz a mastectomia bilateral, o médico passou uns três meses tentando me convencer a colocar próteses. Não queria e essa era uma escolha minha. Primeiro porque quando minha mãe teve o câncer de mama, ela colocou prótese e teve rejeição. Não queria correr esse risco e, ainda por cima, aumentar o tempo de recuperação da cirurgia.

Ainda existe a possibilidade de eu colocar silicone no futuro. Então, se algum dia passar pela minha cabeça "pô, tô chateada, quero colocar uns peitão", posso colocar. Só que eu não sou obrigada a mudar para agradar aos outros. Já tive peitão por muitos anos e até me atrapalhava no esporte.

Essa é uma pressão social que as mulheres sofrem. Eu sempre fui muito bem resolvida comigo mesma, sou feliz comigo. Coloco qualquer camiseta e cai bem. Eu sou mulher, eu gosto de ser mulher, eu me sinto muito mulher, e não preciso seguir os padrões que julgam como bonito e feminino. Os outros não carregam o meu corpo e não sentem o que eu estou sentindo.

Eu me acho linda assim, eu adoro meu cabelo moicano, inclusive. Tenho meu próprio estilo, é uma mistura com estilo da roça. Não estou nem aí se as pessoas vão ficar me olhando. Eu gosto de me vestir assim, eu vou sair assim. Se tu não está confortável do meu lado, desculpa, cara.

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O apoio do time

Eu vivo com as meninas da seleção aqui em São Paulo. Somos em oito na mesma casa, às vezes nove, mas o que importa é que somos realmente uma família. Quando compartilhei a notícia do câncer, elas sofreram um baque, mas logo subimos a energia para fazer brincadeiras e levar da melhor maneira possível.

Todo o time me ajudou durante o processo de quase dois anos. Quando ia para as sessões de quimioterapia, tinha a companhia delas, que não queriam me deixar dirigir. Se precisava fazer algum exame ou qualquer outra coisa, sempre tinha alguém das meninas no apoio, me dando suporte para tudo.

A comissão técnica, nutricionistas, preparadores físicos, fisioterapeutas. Todos estavam sempre ao meu lado. O rúgbi é assim, uma família.

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Treino e disciplina fizeram parte do tratamento

O processo de recuperação da cirurgia no joelho foi de oito meses. O tratamento do câncer entrou aí no meio, mas assim que fui liberada pelos ortopedistas que cuidaram do LCA para voltar aos treinos em março de 2023, começaram as sessões de quimio e radioterapia.

Tive de seguir afastada das competições e atividades mais pesadas, mas não deixei de ir ao Centro de Treinamento. Tirei todas as minhas dúvidas com a oncologista e decidi seguir tudo o que pudesse me ajudar a passar pelo processo da melhor forma possível.

Eu poderia seguir me exercitando, só que de maneira leve e, então, o preparador físico da seleção foi estudar sobre isso para montar algo especial. Manter meu corpo em movimento também era importante para o tratamento, mas a ideia era fazer treino que não baixasse minha imunidade. Era chato diminuir toda a intensidade e caminhar por apenas cinco minutos na esteira? Sim. Mas eu fiz.

Mudei completamente minha alimentação. Descobri que o açúcar é o maior alimento para o câncer. Por isso, tirei todo o açúcar da minha rotina. Zero. Alimentos inflamatórios também não eram bons: gordura, leite, derivados. Tirei tudo isso também e não abri exceções. Fui completamente regrada e, ao contrário de outros pacientes com câncer, mantive o peso estável e até ganhei massa muscular.

O que muitos relatam de fraqueza, tontura, indisposição. Não tive nada disso. Eu sentia mais fadiga do que antes, claro. Mas quando cansava, eu parava, respirava e voltava aos treinos.

A oncologista também recomendou bochechos com bicarbonato diariamente após todas as refeições para evitar mucosite. É horrível. O gosto é ruim. Várias vezes eu não queria fazer. Mas eu precisava para que eu pudesse voltar melhor. Funcionou. Não tive uma ferida sequer.

Então eu segui 100% na disciplina. Não falhei um dia. Terminei o tratamento de quimio e radio sem nenhum efeito colateral.

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Só tive medo uma vez

Quando tudo terminou, no início de agosto, a primeira pergunta que eu fiz para a oncologista foi: "A partir de quanto tempo eu posso voltar com força total?". Ela pediu para eu respeitar um período de 21 dias e me liberou.

Voltei a correr. Voltei a fazer academia. Voltei a fazer exercícios de peitoral. Era uma liberdade de novo. A única coisa é que ainda não tinha a liberação para treinar contato. E aí que começou a minha maior briga com os médicos ortopedistas e senti medo pela primeira vez.

Um dos primeiros médicos que passei, me assustou bastante. Ele atendia pessoas mais velhas. Ele falou que o câncer fragiliza muito o osso, então teria que cuidar ao máximo para não ter nenhum tipo de impacto. Segundo ele, uma pessoa que tem câncer no osso do braço, pode quebrar o braço ao pegar uma xícara.

Se o braço, que é um osso muito forte, pode quebrar com uma xícara, imagina um osso que está protegendo meus órgãos vitais? Se tomar um contato aqui, o que vai acontecer com ele?

Fui conversar com o João Paulo Pedroso, médico da seleção, e ele começou a buscar profissionais que me dessem um caminho para a liberação. Nenhum me liberou. Não tem um exame que pode ser feito para saber o quanto o esterno estava prejudicado. Eu falava para ele: "Se eu não puder jogar mais, me fala logo, porque começo a buscar outras coisas para fazer. Só não posso ser iludida". Eu respeitaria a decisão, afinal não poderia colocar órgãos vitais, como o coração, em risco.

Descobri que a incidência de fraturas do esterno eram extremamente raras, é um osso muito forte, denso. Então, comecei a pesquisar maneiras de proteger a região do tórax e argumentei com o médico: "Deixa eu tentar".

Falei com a minha dentista e fizemos uma plaquinha do mesmo material do protetor bucal. Depois de pronta, partimos para os testes e adivinhem? Não sentia a pancada. Conversei com o Pedroso e ele me liberou para o "contato", desde que eu avisasse se sentisse qualquer dorzinha.

Cara, esse foi o dia mais feliz da minha vida. Foi em outubro. Eu saí pulando por aí, fazendo dancinha da alegria, tudo o que tinha direito. Estava com todos os elementos para reconquistar minha vaga na seleção.

Em dezembro, eu voltei a jogar com meu clube. Os médicos foram assistir. Foi incrível. Teve um momento que levei um tranco, caí no chão, ainda um pouco tensa, senti o meu corpo e percebi que estava tudo sob controle. "Tô viva, vambora!" A proteção realmente funcionava. Não senti nada.

Eis que chega o último fim de semana de janeiro e o Will me chamou para o Circuito Mundial. Fiquei doidona. Ele explicou que começaria com menos tempo em campo, porque estava voltando. Então, aos poucos, fui evoluindo e retomei meu lugar com o apoio de toda a equipe.

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O sonho de vestir a amarelinha

Desde pequenininha, eu falava para a minha mãe que um dia eu vestiria a "amarelinha".

Nasci em Saudade, uma cidade com 10 mil habitantes, e vivi em Pinhalzinho, que também é pequena. Eu cresci na roça, a gente trabalhava com plantação, colheita. Mesmo assim, minha mãe nunca destruiu meu sonho. Pelo contrário. Sempre tive o incentivo na prática de esportes.

Na escola, participava de todas as competições esportivas que podia. Quando fiz 15 anos, fui a uma seletiva do time de futsal de Caxias do Sul e passei. Cheguei a ser convocada para a seleção sub-17, mas uma entorse no tornozelo levou ao meu corte. Depois de um tempo, o time feminino fechou.

Bom, se eu não representar o Brasil como atleta, ainda posso trabalhar nos bastidores. Decidi fazer faculdade de educação física e entrei na UCS (Universidade de Caxias do Sul) com uma bolsa de 100% pelo Prouni. Foi nessa época, aos 19 anos, que conheci o rúgbi.

Disputei o campeonato gaúcho com o Serra e fui convidada para jogar no Charrua, o melhor time da região, até que apareceu a chance de um teste na seleção brasileira. As meninas do Serra fizeram uma vaquinha para me ajudar na viagem a São Paulo. Deu certo.

Fui chamada para os treinos em 2012 e, após dois anos, me mudei de vez para a sede da seleção, aqui em São Paulo. Isso me ajudou muito, porque com a participação na rotina de treinos, consegui minha vaga na seleção que disputou as Olimpíadas do Rio, em 2016. Foi essa motivação pelo esporte que me ajudou a passar por cima do câncer e me trouxe à terceira participação olímpica.

Minha História

Os Jogos Olímpicos de Paris estão se aproximando e, para marcar essa contagem regressiva, o projeto Minha História, do UOL Esporte, em que grandes nomes do esporte nacional contam, em suas palavras, o que viveram para chegar ao topo, vai levar até você relatos dos grandes nomes do esporte brasileiro.

Muita história boa foi contada neste projeto, revelações foram feitas e vem muito mais pela frente. A ideia é unir as experiências das pessoas no esporte com temas de interesse geral da sociedade, abrindo a porta para o debate e para a reflexão. Embarque com a gente nesta viagem para Paris. Au revoir.

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Anderson Neves/CBJ

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