O Pelé pai

Filho caçula fala da relação com o Rei do futebol, que em casa era só Edson

Adriano WIlkson e Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo Milton M. Flores/Folhapress

"Ele dizia que Pelé era para os outros. Para nós, é Edson". Essa frase é de Joshua Nascimento, o mais novo entre os sete filhos do Rei do Futebol. A missão era difícil, mas Pelé sempre quis passar a mensagem de que era um pai como qualquer outro: brincava e cozinhava o prato preferido das crianças, mas também era rígido com os estudos e sentia no coração quando precisava aplicar castigos.

Joshua tem 26 anos e até hoje ainda não se acostumou com a ideia de que é filho do maior jogador da história do futebol. Ele lembra que entre as inúmeras viagens e incontáveis 'compromissos reais', o pai Edson sempre fez questão de passar um tempo exclusivamente com os filhos.

Nestes momentos, Joshua e Edson faziam coisas corriqueiras de pai e filho mesmo: jogavam bola - com Edson sempre no gol -, assistiam a jogos do Santos na Vila Belmiro, andavam de bicicleta na praia e curtiam churrascos. O garoto era arteiro e destemido, mas tremia na base quando aprontava travessuras e recebia aquele olhar intimidante.

Quando os amigos faziam rodinhas em volta dele para perguntar sobre o pai. Quando ficava impossível assistir ao segundo tempo de um jogo do Santos na Vila. Quando escolhiam horários estranhos para entrarem em um restaurante. Era só assim que Joshua ia se dando conta que Edson é Pelé.

Rogerio Fernandes/UOL

"De todas as pessoas do mundo, como eu fui ser filho desse cara?"

Joshua nasceu em 28 de setembro de 1996. Claro que Pelé já era Pelé. Na cabeça do garoto, a ficha foi caindo aos poucos. Até hoje, ele ainda não se deu conta e, em determinados momentos impactantes, quando tudo se clareia, ele reflete sobre o quanto é honrado em ter nascido na família do Rei.

"Cada vez que eu vou para um lugar e escuto alguém falar algo ou vejo algo novo saindo sobre a carreira dele, sempre me surpreendo. Isso me faz pensar: 'De todas as pessoas no mundo, como eu fui ser filho desse cara?'. Mas eu comecei a entender mais por volta dos meus 10 anos. Entendi quem ele era, o que tinha feito. Até então, ele era meu pai", disse Joshua.

"Ir para outro país e ver a dimensão que ele tem é uma coisa que abre os olhos. A primeira viagem que fizemos só nós dois foi para a Colômbia em 2008. Ele me levou para um jogo beneficente em que ele deu o pontapé inicial. A partir do momento em que pousamos, tinha um monte de gente esperando. Pensei: 'Não é possível que está todo mundo aqui só para ver meu pai'. No hotel, as pessoas queriam entrar para falar com ele. No dia do jogo, o estádio estava lotado, com 50 mil pessoas gritando o nome dele. Isso me marcou muito. Ali que eu vi o quão grande ele era para o futebol".

Até hoje eu não entendo. Ele se referia ao Pelé na terceira pessoa. Em casa, por exemplo, a gente está assistindo TV e passa um comercial com ele, ele diz: "Olha o Pelé". Quando eu era pequeno eu não entendia. Ele dizia que era o Pelé para os outros, e para nós era o Edson

Joshua, filho de Pelé

Folhapress Pelé, a então mulher Rose e os filhos Kelly Cristina e Edinho, em 1972

Pelé, a então mulher Rose e os filhos Kelly Cristina e Edinho, em 1972

Os sete filhos do Rei

O Pelé que não conhecemos com tanto afinco gostava de ser chamado de Edson. Ele era pai de sete filhos: Jennifer, Kelly e Edinho, frutos do casamento com Rosemeri dos Reis. Os gêmeos Celeste e Joshua nasceram a partir do matrimônio com Assíria Nascimento.

Mas nem tudo eram flores. Em um documentário da Netflix, Pelé chegou a admitir que se relacionou com tantas mulheres que não tinha conhecimento da quantidade de filhos que poderia ter no mundo. O Rei também teve duas filhas nascidas a partir de relações extraconjugais: Sandra Machado e Flávia Kurtz. Elas só conseguiram o reconhecimento do pai por meio da Justiça.

Rogerio Fernandes/UOL Rogerio Fernandes/UOL

"Coisas de pais normais"

Será que tem alguma coisa diferente em ser filho de Pelé? Segundo Joshua, não. Ele conta que os dois gostavam de fazer coisas corriqueiras, apesar de muitas delas só serem possíveis quando a família vivia nos Estados Unidos, longe dos holofotes. No Brasil, o pai Edson adorava se esconder no mato para pescar.

"Ele gostava de coisas de pais normais. A gente saía bastante para andar de bicicleta. Moravamos em uma casa de praia em East Hampton, Nova Iorque, ficava a uns 20 minutos da praia. A gente ia até lá de bike, jogava bola e ele curtia muito ver o pôr do sol", relembrou Joshua.

"Me lembro dele fazendo coisas normais: indo ao supermercado, fazendo compras. Meu pai também gostava muito de pescar. A gente tinha um sítio longe de São Paulo e ele gostava muito de ficar lá pescando. E é lógico que eu cresci jogando futebol com ele e nunca entendi por que ele não queria jogar na linha. Ele mandava eu ficar chutando e ia no gol. Às vezes, eu pedia para ir no gol, para ele chutar. Eu queria ver ele chutar, mas pouquíssimas vezes eu me lembro de isso ocorrer".

Satish Bate/Hindustan Times via Getty Images Satish Bate/Hindustan Times via Getty Images

Pelé era rígido. Só o olhar já dava tremor

O pai Edson era bom no churrasquinho e quando o filho pedia, ele cozinhava um risoto como ninguém. Bom, mas e quando o assunto ficava sério? Aí o Rei do Futebol fazia o tempo fechar só com uma cara feia. Se a travessura fosse grande ou se os estudos não fossem levados a sério, ele colocava as crianças até de castigo nos respectivos quartos.

"Era muito raro ele dar bronca, mas eu sempre tive muito medo do meu pai. Ele nunca me bateu. Não precisava. Ele tinha um negócio de falar e a gente não rebater. Não tinha discussão. Uma vez fiz algo muito errado e meu pai me trancou no quarto. Ele fez isso poucas vezes. Nesse dia eu fiquei lá, chorando. Deu uns dez minutos, ele abriu a porta, sentou na cama e começou a chorar. Acho que ele se sentiu mal, porque pediu desculpas."

Reprodução/Instagram
Edinho, Pelé e Joshua

Relação com outros irmãos

Joshua nasceu em São Paulo, mas vive há 10 anos nos Estados Unidos. Ele cresceu com a gêmea Celeste, mas nunca morou com os outros irmãos e, por isso, não tem uma relação tão próxima. Outra coisa que acabou dificultando, segundo Josh, é a diferença de idade.

"Eu brinco que meu irmão [Edinho] tem idade para ser meu pai e meu pai tem idade para ser meu avô. Não fez muita diferença, mas meus outros irmãos já têm filhos, as prioridades são diferentes. Eu estava na adolescência e eles já eram casados, criando filhos. Cada um tem sua família, a própria vida", apontou.

"Quando a gente morava no Brasil, a gente se via muito nos fins de semana, meu pai fazia almoço e eles iam à nossa casa. Eu cresci passando bastante tempo com o Edinho - que vivia em Santos, na época - e a Flávia - que morava em São Paulo. Kelly e a Jennifer a gente sempre via no fim de ano ou em alguma viagem delas ao Brasil. Já estamos nos EUA há 10 anos, e a gente se vê mais em fim de ano mesmo. Mas a relação é ótima", acrescentou.

Rogerio Fernandes/UOL Rogerio Fernandes/UOL

Briga por pensão + cuidado com carreira

Um momento complicado na relação entre Joshua e o pai Edson foi quando a família precisou entrar na Justiça para cobrar o pagamento de pensão alimentícia. Assíria e o Rei do Futebol se divorciaram em 2008 e, portanto, o ídolo tinha a obrigação de enviar a quantia necessária aos familiares viverem dignamente.

Não aconteceu e em 2020 a cantora entrou com uma ação para cobrar atrasos na pensão dela e de Celeste e Joshua. O valor era de R$375 mil. Joshua não culpa Pelé por isso, mas sim aqueles que administravam a carreira e as finanças do Rei.

"Foi um momento difícil. Com a separação e o divórcio, o marido tem que pagar a pensão e isso é lei. Teve momentos em que ele não cumpriu com isso. Na época, eu estava terminando a faculdade, não tinha um trabalho, minha mãe também não, então esse era o dinheiro que vinha para a gente comer", relembrou.

"Óbvio que meu pai não ia deixar alguma coisa acontecer com a gente, mas errou na forma com que pensou que estava administrando o dinheiro. Uma coisa é ele prometer e outra é quem cuida do dinheiro realmente entregar. Acho que o problema não foi nem com meu pai, mas nessa administração, com advogado. Meu pai nunca quis saber muito dessas coisas, quanto tinha. Acho que foi uma falha dele. Ele sempre dava um jeito e ficou tudo bem. Hoje não recebemos mais a pensão, porque ficou estabelecido um período, normal. Mas naquela época, eu queria terminar minha faculdade, poder pagar o que precisava para começar a vida. E acho que todo pai tem que fazer isso, sendo Pelé ou não", pontuou.

Rogerio Fernandes/UOL Rogerio Fernandes/UOL

"Te amo" era raro, mas acontecia

Como a maioria dos pais da geração de Pelé, Edson também tinha dificuldades de expressar os sentimentos aos filhos. Uma das memórias mais lindas que Joshua tem é de quando o pai o ajudou a superar o término de um relacionamento, mas o conselho nem foi a parte mais importante.

"Ele sempre estava ali quando eu precisava. Meu pai sempre foi muito fechado, não demonstrava muito amor e emoção. Mas uma vez, quando eu terminei um relacionamento - e era um período muito conturbado, eu estava um pouco afastado da família por conta desse namoro -, meu pai estava fazendo churrasco, virou para mim e falou: 'Eu te amo' e me abraçou", relembrou.

"Poucas vezes eu lembro de ele ter feito isso. Foi algo que me marcou. O pessoal do churrasco tinha ido embora, eu tinha ficado conversando com ele e ele falou isso, disse que estava feliz por eu estar lá, por estar comigo aquele dia".

Pele morreu às 15h27 desta quinta-feira (29), no hospital Albert Einstein, em São Paulo, aos 82 anos.

+ Especiais

Ricardo Chicarelli

Edinho, filho de Pelé, busca a paz que perdeu na prisão

Ler mais
Divulgação/Santos FC

As histórias da infância de Pelé, que quase se afogou por não saber nadar

Ler mais
Arquivo/Agência O Globo

O gol 1000: zagueiro parou o Rei na Bahia, virou vilão e adiou a festa do Santos

Ler mais
Reprodução/Instagram

Quando entrevistei Pelé: sorrisos, palavrões e um mito de 'carne e osso'

Ler mais
Topo