Às margens

Morre Vadão, 63, técnico que, do futebol caipira à seleção feminina, construiu seu legado com discrição

Do UOL, em São Paulo Marcio Machado/Getty Images

Como é possível um treinador com um grande currículo, que tem São Paulo e Corinthians, ser mais lembrado por suas passagens pelo interior, no início de sua carreira? É fácil entender quando se fala de Vadão, que morreu ontem (25), aos 63 anos. Ele não foi marcado pelos títulos que venceu, mas foi daqueles que prova que, no esporte, ainda assim é possível deixar o chamado "legado", que tantos perseguem e nem sempre conquistam.

Vadão construiu sua reputação às margens dos grandes centros. No futebol paulista, ganhou destaque no interior marcando época no Mogi Mirim. Conciliou a paixão de torcedores de Guarani e Ponte Preta. Ele chegou à capital há 20 anos para dirigir Corinthians e São Paulo, mas, depois, gradativamente, foi se afastando dos hofolotes mais intensos. Até que, nos últimos anos de carreira, topou a empreitada de comandar a seleção feminina, que —ainda— vive à sombra dos astros consagrados do masculino.

Entre os atletas, é lembrado pelas oportunidades oferecidas quando a grama não era verdinha nos campos pelo Brasil afora. Vadão foi responsável por lançar dois jogadores eleitos melhores do mundo: Rivaldo e Kaká. Nos bastidores, o que fica é uma lembrança de simplicidade e idoneidade.

Quem poderia imaginar um ex-técnico ir à apresentação de sua substituta? Lá estava Vadão para ver a chegada da sueca Pia Sundhage à seleção, mesmo depois de tantas críticas que recebeu após a queda nas oitavas de final do Mundial feminino no ano passado. O técnico era discreto, calmo e profissional em todas as atitudes. Até o final.

Faleceu aos 63 anos, vítimas de um câncer no fígado, contra o qual lutava desde o final de 2019, mas que só foi revelado à mídia há cinco dias. O UOL Esporte recupera sua história.

Marcio Machado/Getty Images
Arquivo pessoal

Menon: Carrossel Caipira foi a revolução em meio ao estilo humilde de Vadão 

Colunista relembra o Mogi Mirim que marcou época nos anos 90

O Carrossel Caipira não revolucionou o futebol brasileiro nos anos 90. É que "revolução" não é uma palavra que se encaixe bem no estilo conciliador e humilde de Vadão, responsável por implantar a tática no Mogi Mirim em 1991. Durou até 93.

A melhor definição é a do seu inventor. "Foi um marco no futebol brasileiro", disse Vadão em um documentário sobre o Carrossel Caipira. Esse marco é, de fato, baseado em uma revolução. O 3-5-2 era apenas um detalhe no esquema. O importante era a movimentação, a rotatividade, marcas da revolução —aí sim— da seleção da Holanda de 1974.

O 3-5-2 era muito criticado no Brasil, por causa da seleção de 90, comandada por Lazzaroni. Com Vadão, passou a ser amado. Em entrevista ao blog do Menon em 2014, ele explicou o sistema: "Eu tinha Polaco e Ademílson, dois laterais que avançavam por fora e por dentro. Tinha o Capone, um zagueiro que jogava na sobra e tinha sido volante. E tinha o Fernandinho, que era meia, jogando como volante. Então era só avançar o Capone e o Fernandinho que o 3-5-2 virava 4-4-2. O Rivaldo, que era o centroavante, virava um meia e permitia o avanço do Válber, que era o cérebro do time. Era um 3-5-2 influenciado por aquela movimentação da Holanda de 1974".

O Carrossel ganhou poucos títulos. Em 1992, ganhou a Copa Federação Paulista 90 anos, torneio que contava com clubes do interior. No mesmo ano, venceu o Grupo Amarelo do Campeonato Paulista. Em 93, venceu o Torneio Ricardo Teixeira, uma espécie de Rio-São Paulo, com oito times de segunda linha. Com o título, pode participar do torneio João Havelange, contra Palmeiras, Corinthians e Vasco. Foi vice do Vasco. Perdeu o primeiro jogo da decisão por 4 x 0. Ganhou o segundo por 4 x 0 e perdeu nos pênaltis. Ganhou jogos importantes contra times grandes.

Também em 93 o Corinthians contratou Válber, Leto, Admílson e Rivaldo. E assim, por falta de peças, o Carrossel acabou. É um período curto se olharmos a história, dois anos. Um período mínimo. Mas foi brilhante. Um raio na escuridão. Um marco nos anos 90.

O Vadão foi o mentor da minha carreira no esquema do Carrossel Caipira. Eu era um dos líderes da equipe, ele era um paizão dos jogadores. A bronca dele era produtiva, nunca chegou dando esporro. Passou um monte de jogador na mão dele e todos tiveram sucesso. Veio o Rivaldo, Leto, Válber, passou Fernando. Ele foi um mito, ele é um mito do Mogi Mirim. O 'Carrossel Caipira' ninguém vai esquecer

Capone, zagueiro do Mogi Mirim com Vadão

A gente veio do Santa Cruz. Eu, o Leto e o Rivaldo, depois de uma Copa São Paulo de juniores. Era um negócio que ninguém fazia, ninguém tinha esse pensamento de buscar atleta lá do Nordeste. Ele foi um dos pioneiros e a gente abriu as portas para muitos. Em 1992, era muito difícil pra você ir a São Paulo e jogar. Dificilmente ia alguém no Nordeste contratar atletas, e o Vadão abriu essa porta.

Válber, um dos craques do Carrossel vindos do Nordeste

Pra mim foi um pai. Ele foi tudo pra mim no Mogi Mirim. Era uma equipe, mas ele foi 'o cabeça', ele que montou. Eu vim de Recife pra cá e eu convivi muito com ele. Fico sem palavras do que o Vadão fez pra mim. Tudo o que o Vadão fazia na época era marcante, fazia passagem, dois toques e ultrapassagem e ele sempre pegava no nosso pé com isso aí de fazer a equipe não ficar parada, fazer passagem.

Leto, atacante do Mogi

Francio de Hollanda/Folhapress Francio de Hollanda/Folhapress

A rota do interior

Vadão fez história no interior ao armar o Carrossel Caipira do Mogi Mirim. Mas também foi protagonista de dois clubes de maior peso no interior, os rivais campineiros Guarani e Ponte Preta. Sua figura foi por muito tempo associada a times de menor poderio financeiro que estavam prontos para desafiar os grandes. Demorou um pouco, até que ele recebeu sua chance de dirigir esses gigantes.

De 2000 a 2007, Oswaldo Fumeiro Alvarez dirigiu Corinthians, São Paulo, Athletico-PR e Bahia. Ele ganhou um Rio-São Paulo pelo Tricolor —título talvez mais lembrado por ser o primeiro da carreira profissional de Kaká— e também ergueu taças pelo Furacão. Mas foram, em geral, passagens rápidas por clubes de massa. Suas campanhas mais memoráveis acabaram realmente concentradas em regiões fora do eixo. Como quando, durante esse período, chegou a deixar a Ponte à frente de elencos milionários como os de Corinthians —eventual campeão— e Internacional no Brasileirão 2005.

"Tive várias oportunidades de trabalhar com ele, várias passagens pela Ponte, e a mais marcante foi em 2005. Um time do interior, com poucos recursos, conseguir terminar o primeiro turno no primeiro lugar, junto ao Santos. Ele, merecidamente, recebeu uma proposta para o Japão [Tokyo Verdy], que foi muito bacana, a gente ficou muito feliz", comentou o ex-goleiro Lauro, sem deixar de lembrar a fama de rei de dérbis do treinador.

Trabalhei com vários treinadores de time grande, de seleção, e a leitura do jogo do Vadão era impressionante. O que ele dizia dentro da palestra, durante a semana, acontecia."

Juca Varella/Folhapress Juca Varella/Folhapress
Richard Sellers/PA Images via Getty Images

Seleção feminina: respeito de jogadoras e críticas de fora

Conhecido no futebol masculino, Vadão se deparou com o desafio de treinar a seleção feminina rumo aos Jogos Olímpicos de 2016 buscando uma medalha no Rio de Janeiro. Terminou em quarto lugar, mas deixou seu nome gravado na modalidade como com os dois títulos de Copa América e a medalha de ouro no Pan de 2015.

Das veteranas às mais jovens, muitas jogadoras têm o que agradecer a Vadão e foram surpreendidas com a morte. Até mesmo uma das maiores atletas da história: Marta. Abalada, ela escreveu em seu Instagram uma mensagem carinhosa: "Vá em paz, professor. Sua missão nessa terra você cumpriu e com muito êxito. Desconheço qualquer ser humano igual. Você soube viver a vida de maneira digna e honestamente. Orgulho demais de ter vivido momentos maravilhosos ao seu lado e ter tido a oportunidade de aprender muito. Obrigada por tudo".

"Aprendi muito com ele. Só sei que dele vou guardar muitas coisas boas. Ele me deu muitas oportunidades na seleção e me deu a chance também de realizar meus sonho que era jogar uma Copa do Mundo", lamentou Ludmila em conversa com a reportagem.

A segunda passagem terminou de forma irregular com derrotas, críticas e a eliminação nas oitavas de final da Copa do Mundo de 2019. A cobrança era por um time mais organizado, enquanto ele teve de se virar para montar uma defesa renovada, devido a uma extensa quantidade de desfalques. Para Vadão, tudo aquilo era algo natural do futebol. Seu jeito de encarar a pressão em um torneio com visibilidade emergente dizia muito sobre sua carreira. O respeito entre todos e todas sempre esteve acima dos resultados.

Marco Aurélio Cunha, coordenador de futebol feminino da CBF, sublinha a personalidade "romântica" do treinador e lamenta as palavras mais duras que o técnico ouviu ao final de sua segunda passagem pela seleção. "Ele em cara que discutia futebol ainda com um tom romântico, mas ao mesmo tempo era permeável às novidades. Conservava características do futebol que ele próprio jogou e conseguia passar mensagens muito boas. Era um líder sereno, passava uma calma", disse.

"Na seleção feminina, era criticado de forma muito injusta. Vale lembrar que ele foi campeão da Copa América invicto, classificou Brasil para a Olimpíada, classificou para a França (Copa do Mundo de 2019), e lá, com lesões e com dificuldades, disputou um Mundial muito bem disputado", ressaltou.

O presidente da CBF, Rogério Caboclo, reforçou o discurso de Marco Aurélio. "Vadão era uma pessoa excepcional. Um homem raro, capaz de reunir virtudes como idoneidade absoluta, lealdade ímpar e enorme competência. Deixa um legado marcante para o nosso futebol e uma saudade grande em todos nós, que convivemos com ele", disse.

Ele era sensacional. Que treinador vai na apresentação da treinadora que o sucede [a sueca Pia Sundhage]? Quem trabalhou com o Vadão vai chorar muito, inclusive eu. A figura humana dele, o caráter dele, o companheirismo, a vontade de fazer bem feito. Ele era um cara assim. Apanhava, nunca foi grosseiro com ninguém.

Marco Aurélio Cunha

Stuart Franklin - FIFA/FIFA via Getty Images Stuart Franklin - FIFA/FIFA via Getty Images

Adriana se despede vendo a convocação

A atacante Adriana, 23 anos, ligou o vídeo de sua convocação para a Copa do Mundo de 2019 para ver Vadão dizer o seu nome. Não era a primeira vez que ela fazia isso, mas dessa vez teve um motivo especial. Não foi para relembrar um feito próprio, mas para se despedir de Vadão, a quem ela chama de "Paizão".

"Eu vi o vídeo dele me anunciando na Copa do Mundo, eu não pude estar. Vi fotos dele, estava me despedindo. É um cara de coração enorme", comentou a jogadora do Corinthians.

Adriana não foi para o Mundial por causa de uma lesão. Assim como com os craques do futebol masculino que o treinador revelou, foi graças ao chamado de Vadão, que a atacante chegou à seleção pela primeira vez.

"Eu tive a oportunidade de conviver com ele durante dois anos e meio. Cheguei no final de 2017 e tive minha primeira convocação com ele para um campeonato na China, com 20 anos. Sempre muito profissional, me deixou super à vontade na primeira convocação. Ele falava para eu não ficar nervosa, que eu era grande jogadora. Ele foi um paizão, nos acolheu muito. Ele me proporcionou muita coisa", contou Adriana.

Os "causos de Vadão" também ganham espaço na memória da atacante. "Sempre depois do treino ele conversava na rodinha, contando histórias da época que era técnico do Guarani, São Paulo, tinha bastante história, das dificuldades que teve".

Almeida Rocha/Folhapress Almeida Rocha/Folhapress

"Mister Dérbi"

No futebol é difícil imaginar como é possível alguém ser amado por dois times rivais, especialmente quando falamos de uma rivalidade como a de Guarani e Ponte Preta. Mas, em Campinas (SP), Vadão pode dizer que é rei. Afinal, acreditem: o treinador nunca perdeu um dérbi, independentemente do lado que estivesse. Por isso, em sua carreira, as propostas campineiras foram recorrentes. Foram cinco passagens pelo Guarani e quatro pela Ponte.

No total, foram nove dérbis em sua conta, com quatro vitórias pelo Guarani e uma pela Ponte, além de quatro empates. Isso não é para qualquer um. "Dificilmente um cara é tão querido em dois clubes tão rivais. É um cara que, realmente, deixou legado. O que a gente tem que aprender com o Vadão é isso: deixar legado. Por onde passar, deixar amigos, porta aberta... Às vezes o trabalho dá certo, às vezes não, mas aprendi com o Vadão todos os dias", disse o veterano centroavante Roger.

O treinador teve um papel fundamental para que o jogador firmasse sua carreira que incluiria São Paulo, Corinthians, Fluminense, Botafogo e Internacional em seu currículo. Hoje está de volta à Ponte. "O Abel [Braga] me deu a primeira chance no profissional, mas quem me botou mesmo pra jogar foi o Vadão. Foi ele que brigou por mim, que me colocou pra jogar naquela sequência em 2005, quando eu subi. Em 2001, ele me levou para o profissional e depois ele me deu essa chance de ter uma sequência de jogos em 2005", completou.

Para o ex-goleiro Lauro, Vadão era um amuleto de clássicos. "Quando ele estava do nosso lado (Ponte Preta), já tínhamos uma garantia de que as coisas iram correr bem [risos]. Tanto é que os números dele: cinco vitórias, quatro empates, dentro de um jogo tão difícil que é o dérbi. Ainda bem que fiz parte desse ciclo! De todos os dérbis que tive a oportunidade de jogar, nunca perdi. Então, mais um agradecimento aí ao Pai Vadão".

Ricardo Lima/Folhapress Ricardo Lima/Folhapress

De Kaká a Rivaldo: Vadão era caçador de atletas e craques 

Todos os atletas entrevistados para esse material agradeceram Vadão pelas oportunidades dadas pelo treinador. A lista de revelações do técnico tem dois jogadores que viriam a ser eleitos melhores do mundo: Kaká e Rivaldo. Além de campeões como o meia Jadson, o volante Fernandinho, entre outros.

Vadão deu a primeira chance a Kaká, quando ele ainda era Cacá. E foi numa "fria". O garoto entrou contra o Botafogo na segunda partida da final do Rio-São Paulo. O time perdia em casa para a equipe carioca, quando Vadão chamou o garoto desconhecido da base do São Paulo, que virou e decidiu o jogo.

Kaká virou destaque na conquista, e o resto da história você bem sabe. "Minha eterna gratidão por você ter aberto as portas pra um garoto que ninguém conhecia e poucos acreditavam. Mas você acreditou, me ensinou, me deu oportunidades pra que eu pudesse voar. Hoje o dia é de muita tristeza, mas as lembranças que guardo no meu coração são de muitas alegrias! Descanse em paz, meu amigo", escreveu Kaká em seu Instagram.

O "radar" de Vadão para estrelas já havia brilhado com Rivaldo, como já contamos acima, num movimento sagaz de mercado do Mogi Mirim. "Homem que me ajudou muito no início da minha carreira. Eu aprendi bastante com ele", disse Rivaldo ao lamentar a morte do treinador.

Róger, Leto, Válber, Capone, Kaká, Rivaldo, Jadson, Fernandinho, Gléguer, Ludmila, Adriana. A lista é grande. Todos eles agradecem Vadão pela oportunidade no futebol.

Eu ficava numa guerra entre os dois primeiros goleiros, o Iran e o Pitarelli. Eu era o terceiro. O Hiran teve um problema de disciplina, foi afastado, e o Pitarelli começou a jogar. E nessa escapada aí [de 97], nós tínhamos quatro jogos e não podíamos perder e nem empatar. O Pitarelli acabou se machucando. Ficou aquele negócio: 'Vai voltar o Hiran? Tira ele do castigo? Porque o Gléguer ainda é um menino'. Eu entrei no banheiro do aeroporto de Porto Alegre, depois do jogo, e a hora que olho pra trás entra o Vadão e o Beto Zini, que era o presidente na época. O Vadão virou pra mim e disse: 'Tá na hora de deixar de ser promessa e virar uma realidade, né? É você que vai jogar esses próximos dois jogos. Eu acredito em você, confio em você'.

Gléguer, ex-goleiro lançado por Vadão no Guarani

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