Diante do bloqueio

A história de sete mulheres trans que se encontraram no vôlei e lutam por um lugar em uma sociedade hostil

Demétrio Vecchioli Colunista do UOL Esporte Marcus Steinmeyer/UOL

Se tivesse para onde correr, Duda teria corrido. As mais velhas a ensinaram a usar sempre tamanco exatamente para ocasiões assim. O calçado ajuda a vender as formas do corpo: empina a bunda, reforça os músculos da perna. E basta uma sacudida no tornozelo para se livrar dele e fugir a pé. O problema é que, no final da ladeira para onde um suposto cliente a levou de carro, havia uma dúzia de motoqueiros esperando. Não havia mais para onde correr.

Duda já havia perdido a melhor amiga literalmente apedrejada e estava marcada para morrer ali. Mas ela teve melhor sorte. Não que seja sorte apanhar de 12 homens, mas, ao se apoiar em uma dessas portas de aço de enrolar, cada soco e chute que tomava fazia barulho. Os vizinhos ouviram. Um deles ameaçou chamar a polícia. Ela fingiu-se de morta e os agressores pararam. Acreditavam ter conseguido o que queriam. Quando eles se afastaram, ela correu, cambaleando, chegando ao asfalto da avenida antes de ser alcançada de novo.

Se tivesse para onde correr, Duda não teria voltado a se prostituir dois dias depois de deixar o hospital. Mas quando Duda se assumiu mulher, de 13 para 14 anos, ainda na primeira metade dos anos 1990, essa era a única oportunidade que tinha para se sustentar.

Caso pudesse escolher, Duda teria sido jogadora profissional de vôlei. "Não sei se chegaria ao Osasco, ao Bauru, mas teria me sustentado com o esporte". Conhecida nos bate-bolas de São Paulo como Duda Morena, ela é uma das muitas mulheres transgênero que têm no vôlei um refúgio e em Tifanny Abreu uma inspiração. Ao contrário do que pensa quem vê na presença de mulheres trans uma tentativa de roubar o lugar de jogadoras cis no esporte, essas mulheres querem ter para onde correr. Querem, como Duda, um lugar na sociedade.

O que é "Diante do bloqueio"?

Hoje (29), no Dia da Visibilidade Trans, o UOL Esporte publica uma reportagem especial em sete capítulos para jogar luz sobre as histórias de mulheres trans que querem existir. Na sociedade e no esporte que melhor as acolhe: o vôlei. Cada uma das reportagens abaixo conta a vida de uma jogadora de vôlei do Angels, um projeto desenvolvido pelo ativista e jogador amador Willy Montmann. Começou com a reunião de homens gays e bissexuais para treinarem e jogarem campeonatos amadores e se ampliou com a criação de um grupo de treinamento formado majoritariamente por mulheres trans.

Estivemos com elas, na beira da quadra, em três noites de outono. Os relatos de Duda, Ohara, Diana, Carol, Rafaela, May e Bianca são independentes. Se você ler na sequência sugerida (essa aí em cima, que começa com Duda e termina com Bianca), vai ver como as histórias são parecidas e as dificuldades se sobrepõem. E entenderá como essas mulheres enfrentam o bloqueio que a sociedade impõe em seu caminho.

Duda

Dona Clarinda tinha um sexto sentido aguçado. Logo viu que aquela criança, fruto da sexta gestação e a quem foi atribuído o gênero masculino ao nascer, não era um menino. Passou a tratá-la, ainda aos dois anos, por "princesa". A rainha, porém, viveu pouco. Certo dia, acordou com as galinhas para se despedir do marido, que saía para trabalhar muito cedo. Roubou-lhe um beijo, deu-lhe um abraço, e pediu que o esposo tivesse uma atenção maior com sua princesa. De todos os seis filhos, nenhum precisaria de tantos cuidados. Naquela mesma manhã, Duda foi chamada na escola. A mãe havia tido um ataque cardíaco fulminante.

Caberia ao pai, Osvaldo, manter a promessa de cuidar da criança, que, como a mãe havia previsto, encontraria mais pedras em seu caminho. "Sou uma sobrevivente", diz Duda, que passou 20 anos trabalhando "na rua" — um eufemismo para dizer que, durante duas décadas, alugou seu corpo em troca de sobrevivência. Fazia sexo por obrigação e jogava vôlei por prazer.

Duda conheceu o esporte cedo e, por causa dele, estudava em uma escola distante da sua casa, em Jacarezinho, no norte do Paraná. No trajeto de volta, que percorria a pé, conheceu um garoto mais velho. Quando foi à casa dele, acabou flagrada por um vizinho. "Foi a única vez que meu pai me bateu, mas porque fui com uma pessoa mais velha. Foi quando tudo veio à tona. Eu nunca precisei falar para ninguém [que tinha interesse em homens]", conta.

O vôlei a acolheu dentro do que era possível à época, na primeira metade dos anos 1990. "Quando a gente ia viajar jogar, eu ficava no quarto do treinador. Já era assumida. Uma vez, fomos jogar em uma cidade próxima e levaram uma faixa [dizendo] que [o time de] Jacarezinho só tinha viado. Eu ficava constrangida. Afinal, só eu era assumida e o time todo acabava rotulado."

Logo passaria a se apresentar como uma mulher trans, amadrinhada por uma travesti mais velha. Tal qual a madrinha, que mudou-se para a Itália, Duda não teve outra alternativa: sem conseguir emprego, no mercado formal ou informal, acabou se prostituindo. "Se tudo isso que acontece hoje tivesse acontecido 20 anos atrás, eu teria pego um time bom, um time grande." Mas a máquina do tempo ainda não foi inventada.

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

Recomeço

No início de agosto do ano passado, aos 40 anos, Duda voltou à sala de aula, como aluna da primeira turma Trans Convida, um projeto que visa capacitar mulheres trans para concorrer a vagas no mercado de trabalho. Muitas partem do estágio zero. No curso, aprendem a criar email, fazer um currículo. Têm também noções de inglês e de direito.

Duda, que até então fazia bicos como agente de prevenção, ajudando a conscientizar profissionais do sexo quanto à importância do uso de preservativos, apontada para o posto após frequentar um centro de acolhimento, foi uma das primeiras alunas a conseguir emprego. Atualmente, trabalha como auxiliar de confeitaria em uma doceria de São Paulo.

Com o semestre atrapalhado pela pandemia, a primeira turma do Trans Convida vai se formar em março. Uma nova vai começar em julho. As pré-inscrições estão abertas pela página @transconvida no Instagram.

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

Diante do bloqueio: 7 histórias

  • Duda

    Ela sonhava em se sustentar no vôlei, mas acabou na prostituição. Quase morreu quando motoqueiros resolveram bater em uma travesti. Hoje, conseguiu um emprego longe das ruas graças a um projeto que prepara mulheres trans para ingressar no mercado de trabalho.

    Imagem: UOL
  • Ohara

    Era capitã de um time feminino, foi campeã dos Jogos Regionais, mas vetada nos Jogos Abertos. Mesmo cumprindo todas as exigências para a inscrição: "Desde o dia em que mudei minha certidão de nascimento, não joguei mais campeonato nenhum no masculino".

    Imagem: Marcus Steinmeyer/UOL
    Leia mais
  • Diana

    Saiu de casa após se assumir mulher trans. Hoje, o pai a aceita de uma forma diferente: "A família toda me chama de Diana. Ele, pelo nome de homem. Mas eu respeito. Tudo que acontece dentro de casa ele pede minha opinião, me trata como um filho normal".

    Imagem: Marcus Steinmeyer/UOL
    Leia mais
  • Carol

    É fisioterapeuta com pós-graduação. Mas só conseguiu um emprego em sua área 10 anos após se formar: "Na entrevista, perguntaram se eu queria me apresentar como mulher trans. Eu disse que queria que eles falassem, sim. Quero ter essa representatividade".

    Imagem: Marcus Steinmeyer/UOL
    Leia mais
  • Rafa

    Foi miss trans e sua beleza a permitiu escapar do caminho que outras tomaram, o trabalho na rua: "Se tem uma coisa com que as pessoas não têm preconceito é com beleza. Se eu conseguir uma aparência feminina, as coisas vão ficar mais fáceis para mim".

    Imagem: Marcus Steinmeyer/UOL
    Leia mais
  • May

    Cabeleireira, ela iniciou a transição após ser rejeitada no vôlei masculino. "O técnico era hétero e deixava as bichas de lado, era visível. Eu não era convocada para os jogos. Isso foi me deixando desgostosa de jogar, de buscar meu sonho no vôlei profissional"

    Imagem: Marcus Steinmeyer/UOL
    Leia mais
  • Bianca

    Ainda trabalhando como garota de programa, ela luta contra o preconceito na faculdade de psicologia: "O primeiro dia foi um baque. As pessoas me olhavam dos pés à cabeça. Ainda no primeiro ano passei para ser monitora. Foi duro para as pessoas, elas tiveram que me engolir"..

    Imagem: Marcus Steinmeyer/UOL
    Leia mais

+ Especiais

André Mourão/FOTO FC/UOL

Chamar jogador de futebol de negro é racismo, sim. Explicamos o por quê

Ler mais
Lucas Seixas/UOL

Minha História: Fofão conta como precisou criar uma identidade para triunfar no vôlei.

Ler mais
Cristina Saiz/Pontevedresaviva.com

Jogadora que protestou contra Maradona diz que não se pode inocentar atos criminosos de astros.

Ler mais
Fernando Young

Carol Solberg revela que temeu pela própria vida após manifestação contra Bolsonaro.

Ler mais
Topo