Minhas raízes

Murilo caminhava 7km para treinar e superou choro da mãe para seguir no futebol

Diego Iwata e Eder Traskini Do UOL, em São Paulo e Santos Thiago Calil/AGIF

O comunicado chegou de forma inesperada para o seu Juraci Paim: a prefeitura deixara de apoiar e a única escolinha de futebol da pequena São Gonçalo dos Campos, município de 38 mil habitantes na Bahia, estava fechando as portas. O sentimento foi de desespero: o que Juraci faria com o filho Murilo, que aos cinco anos era viciado em jogar futebol?

Companheira de Murilo, a bola o acompanhava mesmo debaixo do sol mais quente. Por vezes, era só Murilo e ela rolando pelo campo de terra que ficava atrás de sua casa, no bairro Murilo Leite. Quando não conseguia driblar os pais para sair de casa, as paredes se tornavam companheiras de infinitas tabelas que destruíam os adversários — no caso, os pertences da dona Raimunda, a mãe do garoto.

Juraci, então, teve de tomar uma decisão: encontrar uma escolinha para Murilo, e a cidade de Feira de Santana, a 20km, foi a solução. No entanto, a oficina de bicicleta tomava o tempo e Juraci não podia levar o filho até o município vizinho. O trabalho ficou dividido entre dona Raimunda e o irmão, Gil.

Quando Murilo tinha oito anos, já fazia o trajeto de 40 km, incluindo ida e volta, sozinho. Ônibus de sua cidade e depois 7km a pé. O destino não poderia ser outro: Murilo deu certo no futebol, ganhou títulos, jogou por grandes clubes e atravessou o mundo para jogar seu futebol na Rússia. Mas nunca, nunca esqueceu suas origens.

Foi um momento que está comigo. Eu não posso perder isso nunca. É minha raiz. Tudo o que eu tenho hoje é por causa do meu esforço, minha dedicação e da minha família, que está comigo até hoje."

Thiago Calil/AGIF

Choro que abala

Jogando na escolinha, Murilo começou a fazer testes em todos os cantos do Brasil. Foi aos 10 anos que Murilo recebeu o tão aguardado sim e foi de um dos chamados 12 grandes do futebol brasileiro, o Vasco. O problema é que o zagueiro não conseguiu ficar no Rio de Janeiro por um motivo pessoal: o choro da dona Raimunda.

"Com 10 anos, fui para o Vasco. Passei no teste, mas não pude ficar. Minha mãe ficou triste, começou a chorar, eu era muito novo, comecei a chorar também, não deu certo. Depois, fui para o Inter, Grêmio, Vitória e não passei. No Bahia, eu passei, mas não tinha alojamento para mim, eu era muito novo", contou em entrevista exclusiva ao UOL Esporte.

Com 12 anos, Murilo chegou ao Cruzeiro. Sua mãe ficou triste com a distância para o filho, mas foi clara: "disse que não podia me atrapalhar mais, conseguiu se segurar. Hoje ela está feliz e sabe que valeu a pena", disse o zagueiro com um sorriso no rosto.

Para ele também foi não foi fácil ficar longe da família. Sem dinheiro, ele demorava um ano para voltar a Bahia visitar sua terra.

"No Cruzeiro, muitas vezes pensei que não ia conseguir, que fiquei desesperado sem minha família. Eu demorava um ano para ir para a Bahia. Eu tive muita dificuldade, sem dinheiro, nada, tinha que estar lá, me dedicando todo dia", revelou.

Pedro Vale/AGIF
Murilo, pouco antes de deixar o Cruzeiro

Poder de antecipação

Se foi sorte, acaso ou Deus, como acredita Murilo, ninguém sabe ao certo. Fato é: o zagueiro do Palmeiras, mesmo sem saber, se antecipou e escapou de duas catástrofes na carreira.

A primeira foi no Cruzeiro. No primeiro semestre de 2019, viajou com a seleção brasileira de base para disputar o tradicional Torneio de Toulon, na França. De lá, nem retornou ao Brasil: chamou atenção do Lokomotiv e foi direto para a Rússia.

Foi durante a preparação para a competição de base que Murilo viu, pela TV, as graves acusações que estouraram contra a diretoria do Cruzeiro.

Murilo, então, seguiu sua carreira no Lokomotiv, onde disputou mais de 60 jogos, ganhou dois títulos nacionais e pode jogar a Liga dos Campeões.

No fim do ano passado, porém, surgiu o interesse do Palmeiras e Murilo se tornou reforço do Verdão na primeira quinzena de janeiro. Pouco mais de um mês depois, a Rússia invadiu a Ucrânia e iniciou uma guerra que afetou centenas de brasileiros que atuam principalmente em solo ucraniano.

"Acho que fui abençoado de sair antes, de acertar tudo com o Palmeiras. Foi muita felicidade sair antes da guerra. Fico triste por ter amigos lá, que ainda estão lá, não conseguiram sair. Do mesmo jeito da Rússia foi no Cruzeiro. Eu saí um pouco antes. Quando aconteceu tudo aquilo, eu estava com a seleção sub-23. Não escutei nada, não sabia de nada. Foi uma coisa de Deus"

Epsilon/Getty Images Epsilon/Getty Images

Perrengue arretado

Antes de deixar a Rússia, porém, Murilo passou suas dificuldades principalmente após a pandemia do coronavírus. Muito ligado à família, ele acabou retornando ao Lokomotiv sozinho e sentiu.

"Na Rússia eu tive uma dificuldade enorme: depois da pandemia, não levei nenhum deles [família] para ficar comigo, passei um aperto arretado lá. Agora, eu estou aqui hoje e feliz demais. Quero aproveitar este momento, aproveitar o que o Palmeiras está entregando, qualidade de vida, treinamento. Só felicidade agora", afirmou.

Ele conta que o povo russo é fechado, sobretudo com estrangeiros. Murilo aprendeu o básico da língua local e teve dificuldade de se adaptar por lá.

"Os caras são mais fechados. Para dar moral para os estrangeiros, era difícil. Tinha que ter, pelo menos, um ano lá para eles se soltarem mais, ver que você é bom de bola e começar a falar com você normal. Até porque é difícil. O diálogo é muito diferente."

Questionado se antes da guerra estourar era possível saber se já existia algum sinal sobre como um conflito afetaria o futebol e o Lokomotiv, Murilo foi sincero: "Enquanto eu estava lá, não. E se estivesse, os caras falam russo e eu não ia entender muita coisa, não", riu.

MB Media/Getty Images MB Media/Getty Images

O jejum de CR7, Lewa e Suárez

O sonho de quase todo jogador de futebol é, além de uma Copa do Mundo, disputar uma Liga dos Campeões, a principal competição de clubes da Europa.

O Lokomotiv não só proporcionou isso ao defensor brasileiro como também o deixou frente a frente com três dos principais atacantes do mundo: Cristiano Ronaldo, Lewandowski e Luis Suárez.

Os russos podem até ter saído derrotados em cinco dos sete confrontos em que Murilo participou, mas o zagueiro cumpriu sua missão: nenhum dos três balançou as redes.

"Fiquei muito feliz quando tive a oportunidade de marcar o Lewa, o Suárez, o Cristiano Ronaldo. Ficava doido para chegar o jogo, poder marcar, tentar não deixá-los fazer gols - e, graças a Deus, eu e meus companheiros conseguimos", contou.

Para ele, o português foi o jogador mais difícil de ser marcado.

"Contra o Cristiano Ronaldo [foi mais marcante]. E achei o mais difícil também. A concentração que eu tive para marcar ele foi sinistra. Eu tinha que estar ligado toda hora, sabia que ele era bom no alto, embaixo, na esquerda e direita. Foi concentração no jogo todo. Foi o mais difícil de marcar", avaliou.

Ettore Chiereguini/AGIF Ettore Chiereguini/AGIF

Confiança canhota

Murilo chegou ao Palmeiras com 24 anos, passagem por seleção de base e longe de ser um jogador que voltava ao Brasil por 'fracassar' na Europa. Ainda assim, o zagueiro chegou ao clube sob desconfiança da torcida. Por quê?

A grande questão é que a busca do Verdão por um zagueiro tinha uma característica, a princípio, obrigatória: um defensor canhoto. Era a vontade do técnico Abel Ferreira. Murilo, porém, teve o aval do estudioso português mesmo destro por um motivo simples.

"A gente conversou quando eu cheguei, ele falou que estava procurando um canhoto, mas sabia que eu jogava desde sempre na esquerda. Ele já sabia disso. Ele conhece muito os jogadores que vêm, que estão no Palmeiras, está sempre estudando. Eu sempre confiei, mesmo jogando na esquerda e não sendo canhoto, de fazer minha parte bem feita ali. Desde a base eu jogo por ali, me sinto bem nesse lugar. Prefiro jogar na esquerda, mas se me colocar na direita ou no meio de terceiro zagueiro, vou tentar ajudar a equipe", contou.

E a aposta do Verdão não poderia ter dado mais certo. Em pouco tempo de Palmeiras, Murilo já caiu nas graças do torcedor com atuações sólidas e até gols: foram três em 13 partidas, sendo um deles na semifinal do Paulistão. Em um setor estrelado e cheio de selecionáveis, o zagueiro-artilheiro deve ter muitas oportunidades ao longo do ano

Na base eu fazia muito gol, quatro ou cinco por ano, mas quando eu subi para o Cruzeiro, eu estava doido para fazer gol, só que a ansiedade não deixou. Aí, depois, fui tranquilizando. E aí, quando saiu o primeiro, foi embora. Foi também com muito trabalho. Eu vi que estava difícil de sair (o gol) e tentei trabalhar por fora, pegando onde eu me sinto melhor. Graças a Deus, agora está saindo".

Murilo, zagueiro do Palmeiras

Ettore Chiereguini/AGIF Ettore Chiereguini/AGIF

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