Eu não sou seu coitadinho

Ex-atacante do Corinthians diz que não é pedinte e conta com amigos de infância para se livrar do crack

Régis Pitbull* Especial para o UOL, de São Paulo Keiny Andrade/UOL

No futebol ninguém me chamava de Régis. Era só Pit, Pit, Pit. Pitbull, coisa da torcida da Ponte. Na praça que ficava na frente do estádio, os rapazes levavam uns pitbulls para treinar depois das cinco da tarde. Eu fiquei louco. Ninguém chegava perto dos bichos. Fui lá e comprei um cachorrinho para mim. O bagulho cresceu. Numa festa em Campinas, minha mãe começou a querer dar vassourada nele e ele saiu mordendo todo mundo. Tivemos que dar duas baletas para ele aquietar.

Matamos o bicho, o samba seguiu. Eu já fiz merda nessa vida. Já quis bater em jogador que me deu entrada violenta no treino (mas o safado tinha que apanhar mesmo). Já atropelei uns cavalos e só não morri esmagado por eles porque meu carro era blindado. Caí duas vezes no antidoping por maconha, fiquei perto de ser banido do esporte. O futebol me deu tudo, a droga me tirou quase tudo e agora eu estou aqui.

Do lado dos amigos que me ofereceram uma mão no escuro, estou tentando me reerguer.

Se eu te pedir um dinheiro e disser que eu não vou usar nada, isso vai ser mentira. E eu não minto. O cara que usa droga e diz que não usa está mentido para si mesmo. Eu fico bem hoje com duas pedras de crack por dia, uma antes de dormir, outra depois de acordar. O que é muito menos do que eu usava há pouco tempo atrás.

Outro dia circulou na internet um vídeo, e os caras vieram dizer que eu estava pedindo esmola. Isso é mentira. Se eu fosse branco, o vídeo seria só "um cara recebendo um troco dos amigos". Mas eu sou preto. Um preto ganha um dinheiro de madrugada e ele já está pedindo esmola. Meu pessoal ficou puto, minha mãe ficou uma arara. Na quebrada todo mundo tem família.

Se você ficou chocado quando leu "Régis Pitbull pedindo esmola", pode segurar a emoção. Não sou seu coitadinho, não preciso da sua pena, não me arrependo do que fiz e do que sou. Você me pergunta o que eu sou. Eu sou um adicto em recuperação. Mas também sou mais que isso. Essa é a minha história.

Keiny Andrade/UOL

Já perdi a conta de quantas camisas usei em todo o tempo que passei jogando bola. Meu carinho maior é pela torcida da Ponte Preta, mas meu time do coração é o Corinthians. Quando eu tinha 28 anos, depois de me destacar na Ponte e no Vasco, rodar pela Europa e pela Ásia, realizei meu sonho de infância quando eu fui apresentado no Parque São Jorge. O time estava numa fase ruim, mas eu estava confiante. Eu não era apenas um cara chutando uma bola. Eu era um torcedor do Corinthians, um moleque criado na base que estava voltando para casa.

Na base do Corinthians nunca vou esquecer dos dias em que a gente jogava na preliminar com o time de aspirantes e pulava logo depois pra arquibancada pra torcer pelos profissionais. Ganhei bicho de título do Paulista e da Copa do Brasil porque, mesmo no júnior, eu sempre participava dos coletivos com os profissionais. Imagina como ficou o meu pessoal me vendo voltar pra casa em 2004 pra jogar pelo time de cima.

Mas não deu certo. O grupo tinha vários problemas internos por causa dos medalhões com pinta de donos do mundo. Ambiente é tudo, e às vezes seu maior adversário é seu parceiro de clube. Os jogadores me tiraram do time não por deficiência técnica, mas porque acharam que eu estava trairando os caras pra Gaviões. Eu era mesmo da Gaviões, mas tive que explicar pros caras do Corinthians que a torcida tem doutrina, tem ética. Se eu chegasse falando merda do time lá, o errado seria eu. É torcida de maloqueiro. Caguetagem na favela não existe.

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Hoje mesmo quando eu vou na Gaviões tem uns que vêm descascar: "Pô, tu não jogou nada no Corinthians!" Eu fico na minha. Se o cara tiver consciência, ele vai saber que eu fiz o que deu pra fazer.

Do Corinthians eu fui pra Portuguesa, a convite do meu irmãozão Piá. No futebol, você faz várias amizades que ficam pra vida toda, e o Piá é um amigo que o futebol me deu. A gente se conheceu no campo quando eu dei uma caneta nele, e ele respondeu: "Ô, macaco, vou te dar um tiro na cara".

E depois a Ponte contratou o Piá e a gente virou parceiro. Esse cara é uma figura, a gente ia para todo lugar junto. "Se a gente ganhar, a gente vai beber para comemorar", dizia o Piá. "E se perder, a gente vai beber para esquecer." E a gente ficava nessa.

Com ou sem ele, rodei pelo Brasil atrás da bola, do Rio Grande do Sul ao Amazonas. Mas vinha todo mundo em cima de mim, pedir dinheiro achando que eu estava rico. Enchi o saco de jogar bola e resolvi me aposentar. E aí a parada ficou séria.

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Um jogador de futebol joga bola desde moleque e, pela primeira vez na vida, eu fiquei sem saber o que fazer. Não tinha para onde ir, então voltei para casa, em Pirituba, na zona oeste de São Paulo.

Quando você sai pra noite com jogador de futebol sempre tem uns negócios envolvidos. O pessoal pensa que só pobre usa droga. No meu mundo só tinha patrão, jogador, empresário, famoso. Todo mundo ali usando e você acaba querendo curtir também. Voltando para casa, eu tinha vontade de dar um "continue" na vibe que tinha tido com os caras. E eu sabia onde conseguir as coisas na quebrada.

Maconha eu fumava desde sempre. Cocaína experimentei, mas não gostei. Quando eu parei de jogar, sozinho no meu apartamento, passava o dia todo usando crack. Mas eu nunca fiz isso na frente da minha família. O meu BO eu assumo sozinho. Quando ficava difícil conseguir na favela, eu pegava meu carro e ia buscar na cracolândia.

Não me vejo diferente dos caras que estão lá. Para ser sincero, se não fossem meus amigos, o futevôlei e o jiu-jitsu, que comecei a praticar depois que larguei o futebol, talvez eu estivesse numa cracolândia hoje. Eu estava vendendo minhas coisas — roupa, telefone, camisas de time, ouro, carro — tudo para comprar o bagulho. Quando dá vontade, é osso segurar. Mas eu nunca roubei, nunca fiquei usando na rua, o meu problema eu resolvo sozinho.

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Há uns dois anos, eu estava andando na rua de cabeça baixa, buscando dinheiro pra usar quando o Sandro me viu. Eu tava zoado, com aquele aspecto de quem está perto de ultrapassar uma linha perigosa. O Sandro me conhecia desde criança, de jogar bola no bairro, foi ele que me ensinou a jogar. Pedi dois, três reais. Ele me deu o dinheiro, um abraço, pediu meu telefone e me resgatou do lixo onde eu estava. O Sandro me ajudou a conseguir um emprego como treinador de uma escolinha para crianças.

Mas ele me deu mais que isso: ao permitir que eu me aproximasse da família dele, me mostrou um caminho, uma orientação e algo em que eu podia focar para deixar a vida que eu levava. O cara virou meu irmão mais velho. Até hoje, toda vez que me sinto meio perdido, pergunto a ele o que fazer, como agir e ele sabe exatamente o que fazer para me ajudar.

Com o trabalho com as crianças eu pude assumir mais responsabilidades e, com mais responsabilidades, eu tinha menos tempo sobrando para pensar no bagulho. Tirei o foco de mim e passei a focar na molecada. Eu também sempre fui franco com meus alunos. Eles sabiam as paradas que eu usava e eu dizia:

"Futebol é guerra, não tô aqui para ser coitadinho. Independente da merda que eu fiz fora de campo, lá dentro eu fui fera. Não quero que vocês sejam igual a mim. Quero que vocês sejam melhores que eu."

É o papo reto que eu tenho com meus dois filhos adolescentes também. Eles jogam bola, querem se profissionalizar e sabem o que o pai deles fez e faz, mas nunca chegaram perto do caminho que eu escolhi pegar.

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Hoje, não dou mais aula nessa escolinha e, como perdi tudo que ganhei na época que era jogador profissional, tiro meu sustento atuando em partidas todo fim de semana na várzea. Na batalha contra essa doença, já me internei em clínica de recuperação e fiz parte dos Narcóticos Anônimos. Esses meses na clínica me ajudaram a entender melhor a doença, mas hoje não quero mais contato com médico, psicólogo, nada. Meus médicos serão os meus amigos e, com eles, vou ficar longe do crack.

Quando eu estou sozinho em casa, dá vontade de usar, mas quando eu estou perto deles, falo de tudo, penso em tudo, menos na droga. Quero ficar mais tempo com eles e conseguir um trabalho para ocupar minha cabeça e me fazer focar em outra coisa que não seja a brisa louca que a droga te dá. Topo trabalhar com tudo, seja no futebol, seja em outra área, já que tenho experiência como personal trainer e motorista.

Sou uma pessoa digna, não sou vagabundo, gosto de trabalhar. Não estou aqui pra pagar de santinho. Eu sou louco mesmo, inconsequente, mas sou responsa. Uma emissora de TV já me fez uma proposta, mas eu não fui porque na época eu estava usando muito e não quis fechar as portas pra sempre. Antes, queria fumar mil por dia, ficava virado direto a madrugada inteira e não comia nada.

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Hoje, como bem, não passo necessidade. Mas eu moro sozinho, e à noite dá aquele negócio, aquele desespero, a rua parece que te chama. Você já tem o bagulho ali. Você dá um peguinha. E você dorme. E amanhã, pra não ficar louco, já dá outro peguinha pra começar o dia. Antes eu queria ficar metendo o pau sem parar, hoje consigo ficar mais na moral.

Mas minha ideia é zerar.

Sandro e os amigos com quem ando agora são todos mais velhos, todos pais de família, responsáveis, nunca usaram nada, não querem saber desse bagulho. Você me vê aqui doidão, mas quando eu estou com eles eu me planto, mais escuto do que falo, aprendo muito. Não tenho vergonha dos meus erros, não me arrependo deles e não vou mentir. Nem pros meus amigos, nem para mim.

Eu tenho um milhão de defeitos, e algumas qualidades. Tenho autoestima, sei que vou conseguir vencer essa. Sou sincero e não vou viver dentro de uma prisão psicológica. Nunca roubei, nunca mexi no que não é meu. Tenho minha conduta e não troco minha liberdade por nada.

Nasci na quebrada e cresci na quebrada. Na quebrada eu caí e se eu cair de novo é na quebrada que eu vou me levantar. Porque a quebrada é família e família não deixa ninguém pra trás.

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