Neymar, a pessoa

O camisa 10 da seleção cresceu. E, independentemente do seu lado, o que ele fez nas eleições mostrou isso

Eder Traskini, Lucas Musetti e Thiago Arantes Do UOL e Colaboração para o UOL, em Santos (SP) e Barcelona (ESP) Gettyimages

Isso aí é com meu pai. Eu só quero jogar futebol."

A frase era um lema de Neymar desde as mais precoces aparições midiáticas. O enorme potencial demonstrado em campo sempre rendeu interesse da mídia. Ao menor sinal de perguntas sobre futuro, era sempre "com o meu pai". Esse comportamento ajudou a moldar o apelido de "Menino Ney", um jogador cujo nível de maturidade virou tema de discussões em mesas redondas —na TV ou nos bares.

Não que Neymar se importe: "Ah, o Neymar vai pra balada, blá blá blá. Qual foi meu desempenho em campo? Tá puto? Irmão, fica com seu tá puto. É a minha vida, eu não vou fazer isso porque você não quer. A galera fica um pouco revoltada de eu ser o Neymar assim: focado em campo e um cara que curte a vida. Acho que isso ninguém conseguiu fazer bem. E eu... Eu faço", afirmou no documentário "O Caos Perfeito", da Netflix.

Até hoje, o pai conduz a carreira do filho com punho de ferro. Virou um empresário voraz e criou uma das marcas mais valiosas da história, avaliada em R$ 1 bilhão. Neyfilho nem sempre concordou com as decisões de Neypai, mas nunca a oposição foi pública.

Até agora.

A terceira e última reportagem da série "Neymar e o mundo" trata da pessoa por trás do craque da seleção brasileira. Os erros e acertos do menino Ney e o processo de transformação que criou o adulto Ney, principal esperança do hexa no Qatar.

Em 2010, Neymar quase colocou sua trajetória no Santos a perder. Em uma noite despretensiosa na Vila Belmiro, o Peixe recebeu o Atlético-GO e levou 2 a 0. Na reta final, já com a virada e 3 a 2 no placar, o alvinegro teve um pênalti a seu favor. Do banco de reservas, o técnico Dorival Júnior deu a ordem: "O Marcel bate".

Neymar pediu para bater e não foi atendido —Marcel estava na frente na lista de batedores e pronto. Contrariado, protestou: pegava a bola, tentava dribles sem objetividade e não tocava para ninguém. Dorival e colegas tentaram, sem sucesso, impedir.

No vestiário, o pau comeu. Neymar discutiu não apenas com Dorival Júnior, mas com companheiros como Edu Dracena e, principalmente, o auxiliar Ivan Rizzo. O craque jogou um copo de água na direção de Ivan, que foi para cima do atleta de 18 anos. Precisou ser contido. Do outro lado da Vila Belmiro, Renê Simões, técnico do Atlético-GO, deu uma declaração que ficaria marcada: "Alguém tem que educar esse jogador. Estamos criando um monstro".

Dorival tentou educar e estipular limites, mas não conseguiu. Em discussão com a diretoria para afastar Neymar por um jogo, o técnico decidiu sair, mas foi convencido a ficar pelos capitães do elenco. A partida seguinte seria o clássico contra o Corinthians e o combinado com dirigentes e atletas era escalar Neymar, que havia se desculpado publicamente e multado no salário. Saiu a lista de relacionados e o astro ficou fora. Em nova discussão, Dorival decidiu sair de vez.

"Quando saiu a lista sem o Neymar, eu pensei: ferrou. Tentamos convencer o Dorival de novo a ficar, nosso time estava ganhando de goleada de todo mundo e venceria o Brasileirão, mas não teve jeito. Eu chorei muito e demorei a entender: os capitães fizeram o Dorival ficar. Se ele não tomasse uma atitude sozinho, não recuperaria a hierarquia e ficaria na mão dos líderes, por mais que fizéssemos pelo bem dele e do Santos. O Dorival precisava punir o Neymar por mais um jogo. E não deixaram", explica Roberto Brum, um dos melhores amigos à época.

Neymar continuou e o Santos manteve as regalias ao craque que seria campeão da Libertadores em 2011. A frase de Renê Simões virou debate nacional e boa parte da imprensa ficou a favor do técnico. Dorival mantém até hoje um discurso ameno sobre o atacante. O treinador entende que o único erro foi a abordagem ainda de cabeça quente no vestiário e tem boa relação com o jogador.

Em maio de 2011, Neymar confirmou os rumores que se espalhavam: a gravidez inesperada de Carol Dantas. A paternidade foi um choque para a família, que reforçava o discurso para o craque, à época com 19 anos: previna-se.

Enquanto a mãe Nadine se preocupou em tranquilizar Carol e sua família para a chegada de Davi Lucca, Neymar Pai tratou de gerir a crise, como definiu ao documentário para a Netflix. Como anunciar? Quanto pagar de pensão? E os patrocinadores?

"Você relou na menina? Então pronto. Vamos trabalhar mais. Fazer família é fácil, ainda mais com dinheiro".

A declaração do pai de Neymar para "O caos perfeito" gerou repercussão negativa e fez Carol Dantas quebrar uma espécie de acordo entre as famílias e rebater. A influenciadora foi ao Instagram para valorizar a maternidade: "Ser mãe é uma empresa, só que a mãe faz todas as funções da empresa. Ser mãe é um grande trabalho. Educar um filho é muito difícil".

A entrevista de Neymar Pai pegou mal, mas, no geral, Neymar e Carol Dantas mantém ótima relação. A superexposição rendeu problemas durante a gravidez e Carol precisou até ficar sem celular para não lidar com as críticas. Com o passar dos anos, porém, eles entenderam o que é melhor para Davi Lucca e o apoio de Neymar foi muito além do dinheiro.

Carol é casada com o empresário Vinícius Martinez, com quem teve o filho Valentim. Vinicius é amigo de Neymar e as famílias estão sempre juntas. A reportagem procurou Carol Dantas e outras pessoas próximas ao craque e todas lamentaram "não poder falar".

Por recomendação da NR Sports, a "bolha de Neymar" raramente aceita entrevistas. Um dos amigos falou, em off: "Queria poder comentar, principalmente porque tem vários jogadores cagando pros filhos que fazem. E ele é um paizão desde o começo".

O caso Najila

Provavelmente o maior baque da vida adulta de Neymar, a acusação de estupro por parte da modelo Najila Trindade, criou uma cicatriz que o lembra que "o ser humano também é capaz de fazer coisas ruins".

O boletim de ocorrência foi registrado em 1º de junho de 2019, quando o jogador já estava com a seleção brasileira na preparação para a Copa América daquele ano. A resposta de Neymar não demorou e foi chancelada pelo pai: um depoimento em vídeo via rede social expondo a intimidade das conversas entre o jogador e a modelo — com direito a fotos íntimas. O vídeo foi apagado dias depois.

Por causa do episódio, a Polícia Civil esteve na Granja Comary em busca de Neymar no dia seguinte ao B.O., mas o jogador estava em período de folga. Pouco mais de dois meses depois, o inquérito foi arquivado pela justiça por falta de evidências. Durante o processo, a modelo apresentou contradições que colaboraram para a decisão.

Durante as investigações, Neymar ficou mais ausente nas redes sociais. Logo após o ocorrido, trocou o número de seu celular pessoal.

A vida de Neymar fora do futebol carrega muito de dois aspectos fundamentais do esporte: a competitividade e o senso de equipe. O primeiro ponto é indiscutível para as pessoas mais próximas ao camisa 10. Quem conhece Neymar na intimidade afirma que ele é "competitivo em um nível absurdo".

Há muitas histórias que confirmam a frase, uma delas ainda dos tempos de Barcelona. Em abril de 2016, Neymar e os amigos participaram de uma partida de paintball (duelo de armas de ar comprimido com balas de tinta) organizada por Daniel Alves. Derrotado, o atacante foi alvo de brincadeiras dos rivais e se irritou a ponto de cancelar a ida a um jantar, horas depois, para celebrar o aniversário do lateral.

É em Barcelona, também, que Neymar se diverte com outro de seus hobbies: o pôquer. A cada viagem para visitar amigos e o filho, Davi Lucca, o cassino de Barcelona é parada obrigatória. Quem já esteve na mesa com o brasileiro conta que ele "não entra para brincar". Quando perde todas as fichas, o movimento mais comum do camisa 10 é comprar mais, para continuar no jogo e tentar se recuperar.

Outra atividade comum nos momentos de lazer são os jogos eletrônicos. Como a grande maioria dos jogadores da seleção, Neymar é adepto do futebol virtual, mas a maior paixão do atacante nos eSports é o CS:GO. Em suas lives no Facebook Gaming, ele mostra habilidade acima da média no jogo.

Seja no paintball, no pôquer ou nos jogos eletrônicos, Neymar raramente está sozinho. Desde que chegou a Barcelona, é acompanhado por um séquito de amigos, os "tois". Ao longo dos anos, os integrantes mais próximos do grupo foram integrados às empresas do entorno do jogador. Outros contam com a ajuda dele para promover seus próprios empreendimentos.

A contrapartida é a discrição. Para trabalhar diretamente com Neymar é preciso lealdade. Entrevistas ou conversas que revelem a intimidade do jogador e da família estão proibidas. "Falar demais" já foi a justificativa para mais de uma demissão. Quem consegue ganhar a confiança da família é recompensado — um caso curioso é o de Jonathan, mordomo de Neymar. Antes de ir viver em Paris, ele trabalhava em um dos restaurantes favoritos do jogador em Barcelona. A amizade e o fato de falar português contaram pontos, mas foi o perfil discreto nas redes sociais que pesou na contratação.

O Instituto Projeto Neymar Jr é um xodó do craque e da sua família. O espaço de 8.400 m² fica no Jardim Glória, em Praia Grande, a duas quadras de onde o atacante morou. Cerca de três mil crianças e adolescentes de 7 a 17 anos são atendidos de segunda a sexta, por duas horas diárias.

Numa discussão com Patricia Pillar no Twitter, em 2021, Neymar se referiu ao instituto como "gol mais bonito". A atriz havia questionado o atacante por dizer que queria passar Pelé na artilharia.

Inaugurado no fim de 2014, o instituto une o útil ao agradável: atende a comunidade e ajuda na imagem de Neymar, além de não onerar a NR Sports. Atualmente, o projeto tem mais de 20 parceiros, incluindo Puma e PSG. O terreno foi cedido pela Prefeitura de Praia Grande numa concessão até 2044.

Pouco antes da Copa, o UOL visitou o bairro em que estão o Instituto e a primeira casa própria do craque. Uma "cracolândia" está se formando no local, mas os moradores analisam que a presença do Instituto é o que está impedindo a ampliação da questão.

O Instituto Neymar admite crianças dos bairros próximos e matriculadas em uma das sete escolas municipais parceiras. A frequência nas aulas precisa ser de 60% e a renda per capita mensal familiar, inferior a um salário mínimo. As matérias vão de artes a robótica, além de futebol e outros esportes, como judô e natação, sem contar assistência médica.

O instituto abre poucas exceções para convidados, como Bruninho, garoto que ficou conhecido por pedir uma camisa de Jailson num clássico entre Santos e Palmeiras na Vila Belmiro. É uma forma de dar visibilidade ao projeto.

"Quando meu filho faria robótica? Francês? O pai do Neymar me procurou em um dia e no outro eu já estava fazendo a matrícula. É maravilhoso", disse Moisés Nascimento, pai do Bruno.

Neymar tenta visitar o instituto uma vez ao ano, nas férias. O Neymar's Five, maior torneio 5x5 do mundo, foi realizado em algumas oportunidades no local.

Seja entre a família ou no grupo de amigos, Neymar nunca foi Neymar. Desde a infância, ele sempre foi o Júnior, o Juninho, ou o Ney; na camisa dos clubes e da seleção, Neymar Jr. O motivo é simples: Neymar da Silva Santos, o pai, sempre foi figura importante na gestão da carreira do filho. Juntos, eles ganharam fama no Brasil, chegaram à Europa, e transformaram "Juninho" no jogador mais caro do mundo, quando o PSG parou 222 milhões de euros, em 2017, para tirá-lo do Barcelona.

A série documental "Neymar: O Caos Perfeito" (Netflix, 2022) mergulha na relação pai e filho e mostra os conflitos que ela causa. Além de uma cena de discussão entre ambos, há frases dos personagens que mostram um leve distanciamento na relação. "Antigamente, era mais uma relação de pai e filho. Hoje, acho que a gente se distanciou um pouco mais. A gente conversa, mas hoje é mais profissional", afirma o camisa 10. O pai, por sua vez, admite que trabalha para manter e proteger a "marca Neymar".

Os conflitos com o pai são parte de um processo de amadurecimento, segundo pessoas próximas a Neymar, o filho. Companheiro de seleção há mais de uma década, Daniel Alves revela que aconselhou o camisa 10 a se posicionar e falar mais com seu público. "O que eu sempre tentei colocar na cabeça dele é que as pessoas deveriam conhecer ele pela própria voz dele. Por quem ele é, realmente. E agora, nos últimos tempos, nós estamos vendo", disse o lateral-direito ao UOL.

O técnico Tite também reforça isso. Também ao UOL, o técnico disse que o Neymar que se apresenta à imprensa é diferente daquele do convívio em grupo. "Ele tem uma dificuldade com vocês (jornalistas) de externar. Quando ele está no ambiente, com a molecada, ele é o primeiro a abraçar".

Uma medida dessa mudança de postura de Neymar pode ser vista se compararmos as eleições presidenciais de 2014 e 2022. Há oito anos, ele leu um texto de apoio ao candidato Aécio Neves que foi redigido pelo pai e por assessores. Neste ano, Neymar declarou apoio a Jair Bolsonaro com um vídeo em que dançava uma música alusiva ao candidato à reeleição e participando de uma "live" com o presidente.

"Ele está amadurecendo em alguns aspectos, e esse é um dos principais. Saber fazer as coisas dele mesmo, pela própria vontade dele", acrescenta Dani Alves. A versão mais "madura" de Neymar não está imune a polêmicas. Pelo contrário. Com total liberdade para acessar suas redes sociais e com vontade de se manifestar, ele é notícia a cada "reply", "like" ou "unfollow".

Pelo menos até a bola rolar no Qatar, para a terceira Copa do Mundo da carreira.

Neymar e o mundo

As três faces que mostram quem é o camisa 10 da seleção brasileira

Catherine Steenkeste/Getty Images

O jogador

"O Felipão falava: 'não deixa esse demônio desse Neymar chutar'. Mas não tinha como. Ele infernizava."

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Cesar Sbrighi/Divulgação

A marca

Como camisa 10 da seleção se tornou uma marca mundial avaliada em mais de R$ 1 bilhão e virou o rosto da Copa.

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Gettyimages

A pessoa

Neymar cresceu. E, independentemente do seu lado, o que ele fez nas eleições presidenciais de 2022 mostrou isso.

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