Times sem vergonha

No Brasileirão, torcidas não pouparam de protestos nem candidatos ao título. Estamos mais impacientes?

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Divulgação

Foguetes foram disparados durante um treino na direção do gramado do CT do Inter, que também sofreu tentativa de invasão. Dois meses depois, outro grupo cantou contra elenco e diretoria. De novo no mês seguinte, com faixa "salário em dia, futebol atrasado". O Colorado esteve entre os primeiros colocados durante a maior parte do Brasileirão — hoje, é líder e pode ser campeão antecipadamente já no próximo domingo.

Já o Flamengo sofreu em janeiro com morteiros, gritos de "time sem vergonha" e "fora Ceni" e cerco aos carros dos jogadores. O Rubro-negro também sempre esteve entre os primeiros da tabela de classificação e atualmente é um dos dois times que podem tirar o título de Porto Alegre.

No mesmo mês, foi no Atlético-MG — que foi líder por quase um terço do torneio e hoje é o terceiro colocado. Com o lema "muito investimento e pouco futebol", torcedores se revoltaram contra Jorge Sampaoli, chamado de "vacilão".

Não dá para esquecer do São Paulo, o caso mais grave. A caminho do Morumbi para enfrentar o Coritiba, o ônibus da delegação foi alvo de emboscada e apedrejado. Havia no local granadas com bolas de bilhar que podiam matar. Naquele momento, o São Paulo estava em má fase, mas apenas um ponto atrás da liderança.

São todos casos de violência recentes e que dizem respeito aos quatro melhores times do Brasileirão 2020. Nenhum dos possíveis campeões escapou da ira de sua própria torcida, mesmo num ano de calendário apertado, lesões e covid-19. Isso significa que o torcedor está mais impaciente, ou a própria pandemia ajuda a explicar a agitação? O que se vive no país sobre o futebol é um estado de insatisfação constante, uma escalada da violência, a tal "bulimia de vitórias"? É o que tentamos responder.

Divulgação
Reprodução

O que é "bulimia de vitórias"?

Em 23 de janeiro, o jornalista Martín Fernandez escreveu em sua coluna no "O Globo" que, no Brasil, "cada derrota é um vexame; toda eliminação é um fracasso que exige um culpado a ser pendurado de cabeça para baixo no travessão mais próximo". Reforçou a tese com citação ao ex-atleta e jornalista Marti Perarnau no livro "Pep Guardiola - A Evolução", de 2017.

É o conceito da bulimia de vitórias.

Bulimia é um transtorno alimentar caracterizado por pessoas ingerirem alimentos exageradamente e, depois, procurarem eliminá-los com laxantes ou provocando vômito. A adaptação ao futebol significa "não desfrutar dos grandes triunfos porque, já de imediato, é preciso projetar novas conquistas".

Segue: "(...) implica viver em permanente estado de ansiedade em torno dos resultados. É paradoxal, mas quanto mais se ganha, mais se necessita seguir ganhando, e o 'como', o 'quem' e o 'quê' vão ficando em segundo plano".

É o que talvez explique os protestos no Flamengo, campeão brasileiro e da Libertadores em 2019, e que esteve no alvo nessa temporada, como se a impossibilidade de igualar esse feito tornasse 2020 ruim.

Divulgação/Guarda Popular

Espaços de protesto e leitura de jogo: conheça duas hipóteses

Felipe Tavares Paes Lopes é professor de pós-graduação em comunicação e cultura da Universidade de Sorocaba e estuda temas como cultura torcedora e violência no futebol. Uma de suas hipóteses diz respeito à pandemia, que limitou meios de manifestação.

"Quando você vai aos estádios com frequência é natural que possa realizar manifestações. Mesmo que muitas vezes sejam proibidas de entrar com faixas e adereços, as torcidas ainda podem protestar dentro do estádio. Esse espaço foi retirado legitimamente e, sem ele, talvez esse afã, esse desejo de protestar, tenha sido canalizado de outras formas", diz.

Ou seja, frustrações pontuais em meio ao sofrimento social são "acumuladas" e geram protestos firmes, com focos diversos.

Outra teoria: "Há falta de capacidade do torcedor comum, inclusive eu, de ler uma partida. Muitas vezes um time está ganhando, começa a perder e vem derrota atrás de derrota, aí só se consegue compreender pela chave da falta de vontade ou garra. Na verdade podem ser problemas táticos e técnicos que para notar é necessário um olhar minimamente especializado."

Esse "olhar especializado" é uma das missões da mídia esportiva. Não raramente, abandonada.

AMA/Corbis via Getty Images

"Desespero midiático", opina ex-jogador que já esteve no alvo

Boa parte da imprensa cria contexto do futebol como vida ou morte e isso alimenta a violência. A pessoa lamenta quando lê 'Flamengo perde e se afasta da liderança', mas se revolta com 'Flamengo dá novo vexame'. É criada uma tensão nesse desespero midiático de eleger um grande vilão ou um grande protagonista da felicidade."

É a visão de Carlos Augusto Bertoldi, o Ticão, ex-volante de times como Sport e Athletico-PR. Ele é mentor de atletas e criador de conteúdo. Um post sobre o papel da mídia na época da emboscada ao São Paulo viralizou.

Paes Lopes concorda: "Habitualmente a mídia trata o futebol pela metáfora da guerra, de ganhar ou morrer. Em 2006 houve Corinthians x River pela Libertadores e havia uma expectativa alimentada pelos meios de comunicação que se não fosse correspondida havia chance de gerar frustração e reação violenta. Quando a coisa é colocada nesses termos, de que se não ganhar será uma vergonha porque investiu muito, inflama a torcida."

Na visão de Ticão, o futebol tinha que ser visto como arte: "Pense quando você vai a um espetáculo. Se você não gostou, diz que não gostou do circo, do teatro ou do filme. Mas você não fica com ódio do artista. Futebol é um tipo de arte, mas visto de forma arcaica. Não conseguimos nos acostumar com a ideia de que o artista às vezes não consegue desempenhar o que se espera dele."

Neste caso, no entanto, a arte acaba suscetível ao desempenho. Um levantamento de dados do Campeonato Brasileiro entre 2015 e 2019, contexto pré-pandemia com público nos estádios, mostra grande variação no ânimo do torcedor quando seu time está em boa ou má fase (veja mais abaixo).

Eu já vivi muita tensão em aeroporto, também já fiquei mais de duas ou três horas depois dos jogos no vestiário esperando torcedor ir embora, já deixei CT em porta-malas de carro, dentro de táxi. Lembro de já ter sido xingado em shopping do lado da minha esposa e do meu filho. Hoje ainda tem o Instagram, que não tinha na minha época e deixa o jogador mais vulnerável. Pensam que jogador não sente isso, que não machuca, mas é muito frustrante."

Ticão, ex-jogador, sobre experiências no futebol

Você treinou desde os dez anos, ficou longe da família, teve dificuldades incríveis e está ali vivendo a tua paixão, mas quando erra as pessoas te odeiam e te xingam. Conheço muito jogador que desanimou, perdeu a paixão porque o torcedor brasileiro é um angustiado nessa ideia do 'se não ganhar esse ano já são não sei quantos sem ganhar'. Muitos atletas sentem e param de render. Não digo que não tem que ter pressão, mas o que é construído é fora da curva."

Ticão, sobre o que observa hoje em dia

Divulgação

Agressão não motiva superação

Annie Kopanakis é psicóloga e coordenadora do Departamento de Desenvolvimento Humano da Ferroviária. Ela entende que vivemos um cenário que "potencializa muitas das dificuldades humanas" e que somos "uma sociedade com baixa resistência à frustração". Porém, conhece o peso da violência dentro de um elenco.

"É sempre grave. Jamais podemos considerar como algo que fomente o rendimento esportivo. Quando caímos nesse imaginário de que a agressão motiva superação e tem consequências positivas é que os piores erros da sociedade acontecem. Na vida de um profissional do futebol os episódios de violência são recorrentes. Eu mesma já fui agredida verbalmente por membros de uma torcida, a gente não esquece", diz:

Violência é um tema importante de ser trabalhado psicologicamente com os elencos, pois está relacionado a questões emocionais. Sofrer esse tipo de abuso é grave, afeta a saúde física e mental das pessoas e devemos nos esforçar para que isso seja cada vez mais inibido no esporte. Nisso estão incluídos também os crimes de racismo e sexismo."

Segundo Annie Kopanakis, é importante que os clubes e instituições invistam em serviços de Psicologia, Assistência Social e Pedagogia. Também é válido não perder de vista que muitos dos torcedores "já lidam com a demanda de serem pessoas que agem de forma violenta", sendo que muitos colaboram com a sociedade — inclusive em relação à pandemia, com doação de alimentos e álcool gel.

"O futebol é um espaço importante de acesso a informação e diálogo."

Arnaldo Ribeiro: "Organizadas reencontram papel na pandemia"

Reprodução

O papel dos dirigentes

No São Paulo, há desconfiança entre os atletas de que alguém do próprio clube vazou detalhes sobre a logística para os autores do atentado de 23 de janeiro. O ônibus fez uma rota atípica para ir ao Morumbi em virtude do risco de manifestações e foi atacado em uma rua por onde quase nunca passa.

O trabalho dos dirigentes é mais uma hipótese, como diz Ticão. Ele é crítico de uma mania histórica do país: as reuniões entre atletas e membros de torcidas uniformizadas em tempos de crise.

"Quando eu preciso que a torcida vá dar uma prensa no meu time é porque perdi o controle, quero que por meio do sofrimento, da dor e da ameaça os jogadores produzam. Isso não existe. Mas o que acontece no futebol brasileiro é um monte de amadores na direção de clubes", opina.

Klauss Câmara tem a visão de dentro. Até setembro foi diretor executivo do Grêmio, após passagens por Sport e Cruzeiro. Já viveu episódios de violência e contornou crises, mas concorda que o momento atual é delicado: "O torcedor terá sempre todo o direito de protestar. Mas infelizmente o que tenho percebido é que esses protestos estão deixando de ser pacíficos e passam a ser mais violentos."

Isso é grave porque a paciência do público está mais curta, grave por não conseguirmos ver uma resposta das autoridades para os culpados serem punidos, grave no aspecto da integridade e do respeito, grave por trazer ainda mais pressão ao ambiente e grave por poder causar algum dano nas pessoas."

No futebol não podemos considerar uma derrota como inadmissível, pois em qualquer lugar do mundo existem mais perdedores do que vencedores. Se a avaliação de perder virar sinônimo de fracasso, então teremos a maioria dos clubes de futebol no mundo como fracassados? Um trabalho vitorioso ou fracassado não depende somente dos atletas e comissão técnica, é preciso que a organização como um todo funcione."

Klauss Câmara, dirigente esportivo, sobre sua visão de futebol

A relação de um clube com o seu torcedor deve ser sempre pautada pelo respeito, pela verdade e pelo apoio mútuo e incondicional. Nessa relação, o torcedor é o bem mais precioso para um clube, assim como o clube é a coisa mais importante para o torcedor. É preciso que cada um cuide muito bem um do outro, não podemos pensar em sucesso se essa relação não for saudável. Ela não pode nunca ultrapassar os limites."

Klauss Câmara, sobre a relação dos times com torcedores

Guilherme Piu/UOL Esporte

Comunicação é a solução?

Segundo Klauss Câmara há uma atitude que parte dos próprios dirigentes e pode ajudar a acalmar os ânimos: "O clube precisa se comunicar de forma clara e direta com o seu torcedor e com toda a comunidade do futebol, expondo o real cenário em que ele se encontra."

"É preciso sempre ter responsabilidade com o orçamento do clube. Infelizmente criou-se uma cultura aqui no Brasil de que no futebol isso não é tão necessário assim, o que permite essa bola de neve nas dívidas dos clubes. Então é preciso mostrar quais as condições o clube possui e qual o modelo de gestão que ele irá seguir para que não seja cobrado de forma errada e exagerada, além de conscientizar de que investimento financeiro não é garantia de resultados esportivos."

Comunicação clara sobre os objetivos e possibilidades se traduz em dizer publicamente se a briga do time na temporada será contra o rebaixamento ou mais acima na tabela. Isso pode ajudar, mas o debate não se encerra aqui.

A forma como as pessoas se relacionam com seus times nos tempos atuais é objeto de estudo e preocupações. Hoje são muros pichados, faixas ofensivas, cantos agressivos, ameaças nas redes sociais, insultos em aeroportos e ônibus apedrejados. Mas desde já é preciso evitar que algo mais grave aconteça amanhã.

+ Especiais

Divulgação/Garena

ESports crescem no futebol, e já tem craque dos campos dono de equipes dos games

Ler mais
Max Peixoto/Estadão Conteúdo

Decisões controversas levam VAR ao primeiro plano na briga entre Inter e Fla pelo título

Ler mais
Ari Ferreira

Novo torcedor perde interesse por futebol, troca 90 minutos de jogo por memes e quer ser ouvido

Ler mais
FOM CONRADI/iShoot/Folhapress

O que move a Amandinha, a brasileira eleita sete vezes como melhor do mundo de futsal?

Ler mais
Topo