O brilho do lado B

Nos anos 1980, engenheiros brasileiros foram pioneiros na F1 e superaram até a tecnologia criada pela Ferrari

Julianne Cerasoli Colaboração para o UOL, em Londres (ING) Paul-Henri Cahier/Getty Images

Quando se fala em Brasil e Fórmula 1, a primeira associação é com nomes como Ayrton Senna, Nelson Piquet, Emerson Fittipaldi. Afinal, o país é a terceira nação com mais títulos e vitórias nos 70 anos do esporte. Mas a história brasileira na categoria máxima do automobilismo vai além de pilotos de sucesso.

Ainda que a presença mais conhecida da engenharia nacional nas pistas passe pela equipe Copersucar, que esteve no grid nos anos 1970 e no início dos 1980, poucos sabem que uma empresa 100% nacional foi uma das pioneiras no uso da telemetria no mundo da Fórmula 1. Enquanto Senna se preparava para o que seria sua primeira temporada na McLaren, nos testes de pré-temporada de 1988, que na época eram realizados no finado autódromo de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, quatro engenheiros paulistanos se encontravam com os chefes da equipe italiana Minardi.

Aquela conversa terminou com uma missão: encontrar uma maneira de medir a carga aerodinâmica do conjunto mola-amortecedor do carro. Os engenheiros e sócios da NGD, Octávio Guazzelli, Fernando Bueno de Paiva, André Dallari e Ricardo Nardini, aos 20 e poucos anos, estavam se aventurando em uma área que, na época, só era explorada pelas grandes equipes, como Ferrari, McLaren e Williams. Poucos anos depois, bateriam a poderosa Scuderia em um duelo de telemetria. Usando tecnologia brasileira.

Paul-Henri Cahier/Getty Images
Arquivo NGD

Anos de revolução tecnológica

Os anos 1980 foram a época em que a Fórmula 1 passou do modo analógico ao digital. As cenas clássicas dos anos anteriores, como mulheres dos pilotos cronometrando atentamente as voltas na mureta da reta dos boxes ou desenhistas trabalhando de prancheta na mão no paddock, foram sendo substituídas por computadores e ajuda eletrônica nos carros.

Uma das novidades desta época foi justamente a telemetria, ou seja, a capacidade de monitorar dados em tempo real de maneira remota. No mundo do automobilismo, é a tradução de tudo o que o piloto faz e das reações do carro. Tudo em forma de dados.

O que hoje é um dos departamentos mais importantes de qualquer equipe de Fórmula 1, geralmente passando de 100 membros nas maiores organizações, naquela época engatinhava. A importância do segmento era tão pequena que, quando os sócios brasileiros bateram na porta da Minardi, a ideia era prestar um serviço bem mais simples: apenas criar um software para o time italiano.

"Eles nos disseram que queriam mensurar a carga aerodinâmica do carro. Pedimos a peça onde eles queriam fazer isso e nos deram a barra push rod (que faz parte da suspensão) e disseram que, se conseguíssemos fazer isso até o GP Brasil, que seria dali a três semanas, a gente faz um contrato com vocês para fornecer telemetria", contou Guazzelli, que aparece na foto acima justamente enquanto "estreava" na Minardi, ao UOL Esporte.

Dito e feito. No GP Brasil de 1988, em Jacarepaguá, as duas Minardi contavam com a primeira mensuração de telemetria dos brasileiros, que foram contratados. Na época, eles tinham de 24 a 27 anos, e foram descobrindo, junto com a equipe, que diabos era essa história do que os engenheiros mais antigos chamavam, brincando, de "telepatia".

"O Giancarlo Minardi, depois de alguns anos, deu uma entrevista para os brasileiros e brincou: 'eu achava que tinha uma equipe de F1 e eles achavam que sabiam fazer telemetria'. Na verdade, a gente adquiriu esse conhecimento juntos e essa é a parte mais legal da história".

E lá se foram 105 GPs, milhares de quilômetros de testes e cinco anos de parceria.

Arquivo NGD

Apoio de Senna "foi como abraçar Pelé na final da Copa de 1970"

O dono da Minardi, Giancarlo Minardi, costuma contar que Ayrton Senna lhe dizia que, antes de aposentar, correria de graça pela simpática equipe italiana, que hoje em dia segue no grid sob o nome de AlphaTauri (Toro Rosso até o ano passado). Verdade ou lenda, o fato é que Senna gostava de almoçar na equipe de Giancarlo e, certo dia, conta Octavio, aproveitou para dar publicidade à trupe brasileira da telemetria.

Era o GP da Itália de 1990 e todas as atenções estavam voltadas para ele: líder do campeonato em uma disputa com o então ferrarista Alain Prost, o brasileiro nunca tinha vencido em Monza. "O ponto mais visível da nossa passagem na F1 foi quando ele veio almoçar com a gente no motorhome da Minardi no sábado do GP da Itália de 90", conta Guazelli.

"Ele avisou para a imprensa que ia, então ficou todo mundo filmando e fotografando, ainda mais sendo uma equipe italiana na Itália. Ao longo dos anos, ele foi percebendo nosso trabalho e o Léo, irmão dele, gostava de mexer com computadores. Fomos ganhando o reconhecimento dele. E ficamos muito gratos por esse momento: ele ter ido lá almoçar com a gente e fazendo questão que fosse visto conosco foi como abraçar o Pelé na comemoração da Copa de 1970 para a gente".

Arquivo NGD e Divulgação/Magneti Marelli Arquivo NGD e Divulgação/Magneti Marelli

A telemetria de 1988 x 2020

"Basicamente não dá para comparar as tecnologias. É como tentar fazer um paralelo entre um telefone analógico anos 1960 e o smartphone de hoje. Mas sem aquilo, não teríamos isto", explica Octávio Guazzelli, que ainda guarda o primeiro equipamento que a NGD produziu para a Minardi para a aquisição de dados do GP Brasil de 1988: a Centralina NGD 001.

O mesmo tipo de "caixinha" é utilizado nos carros de hoje, mas as diferenças são gigantescas. Atualmente, utiliza-se até 300 pontos de medição de telemetria no carro, que transmitem até 2000 canais de dados para os boxes. Tecnologicamente falando, é possível (e foi usado na F1 até o início dos anos 2000), que a telemetria seja bidirecional. Ou seja: os engenheiros podiam alterar parâmetros do carro enquanto ele estava na pista. Há quase 20 anos isso está banido e cabe ao piloto fazer os ajustes.

"Atualmente, os carros utilizam uma rede de centralinas para cada grupo, ou seja, motor, aerodinâmica, suspensão, pneus, freios, combustível, etc., portanto não dá para comparar diretamente, mas dá para fazer uma média de como funciona uma delas e comparar com a nossa número 1".

Como um grupo de engenheiros brasileiros entrou na Minardi?

Arquivo NGD

David x Golias: quando os brasileiros venceram a Ferrari

Octávio e seus sócios da NGD já tinham percorrido um caminho considerável quando tiveram que colocar à prova seu sistema contra o da Ferrari. Partindo de uma mesa simples ao lado dos mecânicos, eles já tinham ganhado um departamento inteiro próprio na Minardi.

Naquele momento, usavam tecnologias bem mais avançadas do que aquela usada na primeira medição, feita em três semanas para o GP Brasil de 1988. O tal duelo aconteceu no final de 1990, quando a Minardi se preparava para começar a usar os motores da Scuderia.

Tecnicamente, isso representava um salto para o time, que era equipado com os motores Cosworth na época. Mas havia um custo: 12 milhões de dólares, contra oito do equipamento antigo. E mais: a Ferrari queria que a Minardi passasse a usar a sua telemetria. A um custo de mais 4 milhões de dólares.

Mas o dono Giancarlo Minardi resistiu. Afinal, o orçamento ferrarista representava mais de dobro do que eles gastavam com a telemetria brasileira. A Ferrari, então, propôs que os dois sistemas fossem testados, frente a frente, em sua própria "casa", no circuito de Fiorano, ao lado da fábrica de Maranello.

"Eles queriam o dobro do que a gente não tinha para entregar um equipamento que era, efetivamente, pior. Então, ficou acertado que a gente iria para Fiorano com nossa estrutura de pista para comparar com o sistema da Ferrari. Isso, numa pista que eles usavam direto para teste e na qual eles tinham 32 pontos de medição de telemetria, que eles cruzavam com o carro. A nossa estava só no nosso carro. Era David contra Golias", lembra Guazelli. "Por algum motivo que eu não sei explicar até hoje, assim que o carro saiu, começou a funcionar tudo redondo para a gente. Na Ferrari, nada. Não conseguiam dado nenhum".

Depois do almoço, o então presidente da Ferrari, Luca di Montezemolo, disse que eles estavam satisfeitos: a Ferrari iria fornecer seus serviços, mas sem custo. E a Minardi poderia continuar usando a telemetria brasileira juntamente com a deles. Foi uma vitória não apenas de um time pequeno em cima de um gigante do automobilismo, como também da engenharia 100% brasileira.

Arquivo NGD Arquivo NGD

Até hoje me emociono porque foi uma vitória técnica. Para mim, foi o auge. Foi o apogeu da nossa competência, da nossa visão, já que a gente trabalhou muito para desenvolver softwares e sistemas, o que acabou sendo a filosofia que reinou depois na F1. Fico muito emocionado e feliz de contar isso. Nós podemos ser tão bons quanto qualquer um, basta ter oportunidade e o mínimo de recurso. Dentro do nosso microcosmos, fizemos um papel bonito

Octávio Guazzelli, um dos brasileiros pioneiros da telemetria na F1

Arquivo NGD

Perrengues de uma outra época

Não demorou muito para os engenheiros mais antigos da Minardi perceberem que não se tratava, mesmo, de telepatia: os equipamentos carregados de um GP para o outro pelos brasileiros pesava mais de 40kg e causavam estranhamento até mesmo entre os mecânicos, que não entendiam muito bem como aquilo funcionava.

"O computador era uma caixa grande, que era a CPU, com o processador e a fonte. Então, era pesado. E o monitor. Não havia laptops, isso entrou um pouco depois. A gente colocava isso em uma caixa e embrulhava em polibolha e colocava no caminhão da equipe. Tanto que muito mecânico da Minardi na época achava que era a gente que fabricava os computadores", relembra Guazzelli.

Mark Thompson/Getty Images

Minardi segue no grid

Uma das equipes mais simpáticas da Fórmula 1, a Minardi nunca venceu. Sequer chegou no pódio na categoria. Mesmo assim, foi uma equipe importante na formação de pilotos e engenheiros. O nome mais famoso que passou pela equipe foi Fernando Alonso, mas um dos mais brilhantes é possivelmente o engenheiro Aldo Costa.

Italiano, entrou na equipe como um jovem e promissor projetista na mesma época dos brasileiros e se tornou um dos profissionais mais vencedores da história da categoria.Desde o final dos anos 80, somou 26 títulos no final na Ferrari e na Mercedes, somando-se mundiais de pilotos e construtores.

Os melhores resultados da Minardi foram três quartos lugares — um deles, inclusive, com o brasileiro Christian Fittipaldi, no GP da África do Sul de 1993. O time acabou sendo vendido para a Red Bull no final de 2005, ganhando o nome de Toro Rosso e permanecendo na mesma fábrica na cidade italiana de Faenza.

Curiosamente, com o novo nome, o time venceu o GP da Itália de 2008, com a então jovem promessa Sebastian Vettel. Ano passado, a Toro Rosso conquistou dois pódios — no GP da Alemanha, com Daniil Kvyat, e no GP do Brasil, com Pierre Gasly — e foi a sexta colocada no campeonato de equipes. A partir deste ano, a antiga Minardi será conhecida como AlphaTauri, mas segue com os mesmos donos.

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