Quebrando barreiras

O crescimento do futebol feminino no Brasil e a luta das mulheres por melhores condições

Luiza Sá Do UOL, no Rio de Janeiro Bradley Collyer/PA Images via Getty Images

Às vésperas da Copa do Mundo da Austrália e Nova Zelândia, o Brasil chega no melhor momento da história na modalidade, mas isso não quer dizer que seja bom. Em crescimento constante, o cenário nacional ainda esbarra na falta de profissionalismo, pouco espaço e preconceitos.

"Eu vejo e está muito clara a evolução do futebol feminino. Não só no Brasil. No mundo inteiro. Os olhos já estão voltados para o futebol. É um outro olhar. É um olhar de mais cuidado. De mais detalhes. É uma Copa onde todo mundo está ansioso para ver o futebol feminino. Ver tudo que a gente pode dar. Acredito que tem muitos pontos ainda a serem melhorados. Mas é um grande passo. E essa Copa do Mundo vem aí para a gente mostrar que merecemos o que está acontecendo", disse Antonia, defensora da seleção.

Uma pesquisa divulgada em julho feita pela Centauro, em parceria com a Consumoteca, revelou que somente três a cada 10 mulheres sonham em se tornar atletas profissionais. O baixo interesse comparado aos homens está ligado principalmente à desvalorização, sexualização e desinteresse pelo esporte feminino competitivo.

Para explicar o desenvolvimento tardio e a passos lentos, é preciso analisar uma série de fatores que levaram o futebol feminino a ainda discutir a falta de investimento em 2023. Há um fator histórico que ajuda a elucidar a demora: o Decreto-Lei 3.199 de 14 de abril de 1941.

Bradley Collyer/PA Images via Getty Images
Divulgação/Museu do Futebol

Proibição

Sob a justificativa de que alguns esportes "eram incompatíveis com a natureza feminina", o presidente Getúlio Vargas baixou o Decreto-Lei que estabelecia as bases de organização do esporte em todo o Brasil. Com isso, ele cerceou o direito das mulheres à prática de certas modalidades esportivas. O decreto terminou em 1979, mas a regulamentação da modalidade aconteceu somente em 1983.

Durante a Ditadura Militar, em 1965, o Conselho Nacional de Desportos (CND) citou nominalmente os esportes proibidos com "lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, rugby, halterofilismo e beisebol". Chegou-se a dizer que o futebol era "antro de perdição" e de exploração sexual e financeira de meninas.

As mulheres seguiram jogando e se utilizando de artifícios como jogos beneficentes e outras apresentações, mas o decreto atrasou o desenvolvimento do esporte feminino enquanto o masculino seguia em franca ascensão. Em uma esfera amadora e com pouca exposição, o futebol feminino foi ficando para trás.

Mesmo com o fim da proibição em 1979, a seleção brasileira foi organizada apenas em 1986. A primeira competição feminina organizada pela Fifa foi o Torneio Internacional de Futebol Feminino em Guangdong, na China, em 1988, preliminar ao primeiro Mundial oficial que aconteceria em 1991.

Quando Marta foi eleita a melhor jogadora do mundo em 2006, já atuando no futebol sueco, não existia nenhuma competição nacional para mulheres no país. A Copa do Brasil feminina começou apenas no ano seguinte. O Campeonato Brasileiro, em 2013.

Em 2023, o Governo assinou um novo Decreto, mas desta vez se comprometendo com o desenvolvimento do futebol feminino no Brasil e com objetivo de promover, fomentar e incentivar a inserção e a manutenção de meninas e mulheres no esporte.

Ettore Chiereguini/AGIF Ettore Chiereguini/AGIF

'Está melhorando'

O cenário hoje é diferente. O Campeonato Brasileiro conta com três divisões nacionais, além de alguns Estaduais — a maioria ainda em fase de construção e melhorias. Desde 2019, os clubes da Série A do Brasileirão são obrigados a ter um time feminino. Neste ano, o presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, anunciou que a partir de 2027 equipes das quatro divisões terão essa obrigatoriedade.

Em 2022, o futebol feminino teve o recorde de público em jogos entre clubes quebrado duas vezes consecutivas. Na primeira, 36.330 torcedores foram ao Beira-Rio para o primeiro jogo da final do Brasileirão Feminino entre Internacional e Corinthians. No jogo de volta, 41.070 foram à Neo Química Arena.

"Quando cheguei ao Corinthians foi na pandemia, não tinha torcida. Ter o recorde... entrei em campo até tremendo. É muito legal ver a arquibancada cheia, gritam seu nome, aplaudem. Fiquei feliz e emocionada por tudo que o Corinthians construiu. Vem lá de trás, incentivando, tendo um marketing que trouxe a torcida para nós", lembrou Gabi Portilho, atacante do Corinthians.

No âmbito de seleção, a delegação, com mais da metade formada por mulheres, viajou em voo fretado pela primeira vez na história. A Fifa também preparou uma estrutura inédita durante o Mundial, um modelo igual ao da masculina.

"Veio mudança. Acho que o hoje já é muito significativo. O futebol feminino no Brasil melhorou, mas dá para ser melhor. Mas falando de seleção brasileira, melhorou. A gente viu as meninas com roupa própria, voo fretado, elas indo 20 dias antes para se preparar. Antes não tinha nada disso. Estão tendo tudo que precisam para simplesmente se preocuparem em jogar. Antes a gente ia muito em cima da hora, às vezes quatro dias antes. Tinha fuso horário, não sabíamos de premiação, não tinha uniforme, pegava qualquer tipo de uniforme. Isso é um reconhecimento. Até a própria convocação quando saiu, toda imprensa, jornalistas, o Brasil falando sobre isso. É uma evolução gigantesca, mas sempre dá para melhorar", avaliou Francielle, ex-jogadora da seleção.

Barreiras e opções fora do Brasil

Mas nem tudo foram avanços para o futebol feminino brasileiro. A Série A1 de 2023 foi marcada por descaso e retirada de investimento das mulheres após o rebaixamento do time masculino do Ceará e um protesto do Real Ariquemes na última rodada por condições ruins de trabalho e salários atrasados.

Muito além da competitividade que aumenta a cada ano no cenário nacional, as dificuldades estruturais geram olhares atentos até por parte da CBF, que classificou como naturais as goleadas expressivas ou cortes de verbas.

"Conseguimos fazer essa gestão, mas em algumas coisas temos barreiras. Quando algo assim acontece faz com que todos olhem de forma maior. Ninguém quer que aconteça, mas são coisas pontuais que fazem parte desse desenvolvimento. Isso não vai acontecer por uns cinco anos. Faz parte, era um momento do clube, queda, trocando gestão, sentimos que tenha acontecido. Não temos como pular etapas no processo e tem o respeito de hierarquia na gestão. Mas estamos atentos e buscamos alternativas para que não volte a acontecer", disse Aline Pellegrino, gerente de competições da CBF, ao UOL em março.

Outra dificuldade da temporada foi em relação às transmissões. Depois de comprar os direitos com exclusividade, o Grupo Globo recebeu diversas críticas. Sem acordo da CBF com canais na internet, como havia em edições anteriores, vários jogos acabaram ficando no escuro.

A Globo só foi transmitir o primeiro jogo nas quartas de final, quando exibiu três partidas em TV aberta. O SporTV passou duas partidas por rodada. Alguns clubes se encarregaram de passar nos canais oficiais. A emissora entende que é algo natural.

Para driblar as dificuldades e as diferenças, muitas jogadoras optam por fazer carreira fora do Brasil. Kathellen, zagueira da seleção brasileira, por exemplo, nunca atuou como profissional no país. Das 23 convocadas para a Copa do Mundo, 16 atuam no exterior, o mesmo número de 2019.

Acho que dá para dividir em partes o futebol. Tecnicamente o futebol brasileiro ainda tem um 'a mais', mas a parte física é um choque muito grande. Eu senti isso. No meu primeiro jogo cansei com 60 minutos, o que não é algo normal para mim. Por esse lado, estamos em uma distância muito grande de preparação física, intensidade e velocidade

Ary Borges, meio-campista da seleção

Não tem como você vender um jogo, por exemplo, de São Paulo e Palmeiras, 10h com uma partida do masculino no mesmo dia. Como os torcedores vão deixar de ir para o futebol masculino, que é o principal, para assistir ao feminino? A gente teve quartas de final do Brasileiro com Corinthians e Cruzeiro numa segunda, às 18h30. Falta esse cuidado

Francielle, ex-jogadora da seleção

Copa do Mundo 2027 e pagamentos igualitários

O Brasil entrou na disputa para sediar a Copa do Mundo feminina de 2027. O país concorre com África do Sul e mais duas candidaturas conjuntas: uma da Uefa, formada por Bélgica, Holanda e Alemanha, outra da Concacaf, formada por México e Estados Unidos.

A escolha será feita pelas 211 associações de futebol que formam a Fifa, em eleição a ser realizada no dia 17 de maio de 2024, durante o Congresso anual da entidade.

"Para ser bem sincera, já refleti sobre isso, mas fico um pouco em cima do muro. Ao mesmo tempo que acho que seria animal e extraordinário ter uma Copa do Mundo no Brasil, porque é um evento que vai atrair os olhos de todos para o nosso país, para a modalidade, ao mesmo tempo rola aquilo de você ver um campeonato brasileiro hoje que não tem nem transmissões em partidas. Penso em como a gente quer sediar um Mundial se não conseguimos nem ter nenhum campeonato legal para isso, sabe? Fico dividida. Não consigo dizer "ah, a Ary quer" ou "não quer". Não consigo ainda ter uma resposta concreta sobre isso, porque existem os prós e os contras. Para mim fica meio balanceado", disse a meio-campista Ary Borges.

"Acho que não estamos preparados para sediar uma Copa feminina no Brasil. Temos muitas coisas ainda para evoluir esse ano. Ficamos muito tempo sem treinadores de base, sem campeonato de base. Estamos começando agora e ficaria mais bonito quando esses detalhes estivessem ajustados. Agora a Simone Jatobá assumiu as categorias de base, mas não pode uma seleção sub-17 ficar um ano, um ano e meio sem colocação. Pensamos "será que estamos preparados?". Mas se vier vamos fazer festa e comemorar da mesma forma", avaliou Fran.

É um peso para não deixarmos cair para as novas gerações. Tenho pouco tempo no futebol, mas já vivi uma parte que as pessoas tinham de trabalhar de manhã e treinar a noite. Valorizo muito e espero que as outras pessoas consigam ver dessa forma. Para continuar evoluindo a gente precisa fazer acontecer

Duda Sampaio, meio-campista da seleção

O movimento #RespeitaAsMinas foi super importante. Independente de qualquer coisa, sendo corintiana ou não. É só respeitar as mulheres. Estamos conquistando isso aos poucos. Não só o futebol feminino, mas as mulheres. Era só dar oportunidade que a gente sabia que conquistaria o mundo

Érika Cristiano, ex-jogadora da seleção

KAREN FONTES/ISHOOT/ESTADÃO CONTEÚDO
Corinthians comemora o título do Brasileirão feminino de 2022

Projetos de sucesso

Apesar dos empecilhos, o Brasil viu alguns clubes apostarem de fato no crescimento dos times femininos. O maior exemplo disso é o Corinthians, equipe mais vitoriosa da história da modalidade no país.

São Paulo, inclusive, é o motor do futebol feminino no Brasil. Com o campeonato estadual mais competitivo de todos, o processo se estabeleceu ao longo dos anos e encontra o melhor momento.

Muito disso se deve à estruturação da Federação Paulista de Futebol, que criou o departamento feminino e com Aline Pellegrino, hoje na CBF, ampliou os investimentos. Um dos principais focos eram as categorias de base. Por isso, 2023 marca a primeira edição da Copinha feminina.

"Eu acredito que é um ano em que está todo mundo abraçando a gente. Todo mundo confiando que a gente pode trazer esse título para cá. Acredito que a torcida negativa sempre vai existir. Mas para a gente é o contrário. Ela nos fortalece. Poder provar para essas pessoas que o futebol feminino vale a pena. E é isso", disse Antonia.

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