Um Crespo desconhecido

Argentinos admiram perfil maduro do técnico do São Paulo, moldado por tragédia, devoção familiar e frustrações

Tales Torraga Colunista do UOL Fotos: GettyImages e reprodução

Hernán Crespo é um "tipazo", como dizem os argentinos. Um cara legal, de fala fácil, daqueles que dá vontade de puxar uma cadeira ao lado e ouvir suas histórias como profissional de altíssimo nível na Europa e na América do Sul, mas transmitidas com a simplicidade de quem toma um café com um amigo.

O técnico são-paulino de 45 anos surpreendeu muita gente no último sábado ao falar um português bastante competente para os seus dois meses de trabalho no Brasil. Tal empenho não espantou quem conhece sua trajetória. Crespo desde cedo chamou atenção na Argentina por seu gosto pelos estudos e pela cultura. Ainda adolescente, dava entrevistas como o mais ponderado adulto e era mostrado aos jovens como exemplo a seguir. Até o autoritário treinador Daniel Passarella se rendeu, dando a ele um apelido que perdura. Para seus compatriotas, Crespo continua o "Valdanito", aquele que quando fala faz lembrar o ex-atacante Jorge Valdano, tido pelos vizinhos como um dos jogadores mais inteligentes da história.

Para mostrar ao Brasil essa face desconhecida, o UOL revirou arquivos argentinos das entrevistas de Crespo à revista El Gráfico, aos jornais "Clarín", "La Nación" e "Olé", ao portal Infobae e às TVs como ESPN, TyC Sports, Telefe, El Trece e America.

UOL

A maior tristeza

O telefone tocava sem parar no quarto de Hernán Crespo e Ariel Ortega. O River Plate estava concentrado para enfrentar o Deportivo Español no Monumental de Núñez em dezembro de 1993. Era uma das primeiras vezes em que Crespo, de 18 anos, se juntava ao time profissional, deixando de lado um ritual de qualquer adolescente - sua festa de formatura.

Muitos de seus colegas do Colégio La Salle estavam na discoteca Kheyvis, em Buenos Aires, quando um incêndio no local superlotado causou a morte de 17 jovens. Muitos eram colegas de Hernán. "Morreram vários conhecidos, eu não podia acreditar", relembrou Crespo em entrevista à El Gráfico em 2009.

O "Clarín" ainda em 1993 questionou Hernán sobre se o futebol teria salvado sua vida. E a resposta madura aos 18 anos ajuda a entender por que ele era tão requisitado pela imprensa portenha ainda adolescente.

Tento ser menos trágico. Eu de fato estaria lá (na discoteca), mas ninguém pode dizer o que aconteceria. Muitos que não jogavam futebol também se salvaram

Hernán Crespo, em entrevista ao Clarín, questionado sobre a tragédia com amigos da discoteca

A maior alegria

A paixão pelo futebol dominou a vida de Crespo desde os primeiros passos. Torcedor do San Lorenzo, influenciado pelo pai, Hernán adentrou as concorridas "canteras" do River Plate com apenas seis anos. Treinar e jogar não era suficiente para ele. Ele fazia questão de ir a todos os jogos dos profissionais do River no Monumental de Núñez. Seu programa preferido na infância era se juntar aos milhares de fanáticos que lotavam as arquibancadas para empurrar o time na Libertadores.

Foi o que ocorreu em 1986, quando Crespo tinha 11 anos. Ele esteve no Monumental em todos os jogos da campanha do primeiro título do River na Libertadores - um timaço apontado por muitos como um dos melhores da história de quase 120 anos da instituição. Na final, contra o América de Cali, no superlotado estádio com quase cem mil pessoas, o menino de 11 anos comemorava a conquista tomando chuva abraçado ao pai, que o acompanhava e o protegia no meio da multidão.

Em uma das mais lindas histórias do futebol, dez anos depois, em 1996, na mesma final da Libertadores, pelo clube que o revelou, Crespo fez os dois gols sobre o mesmo América de Cali, e o River ergueu o bi da Libertadores com outro timaço. Hoje, seria um esquadrão bilionário da Europa com os meio-campistas Astrada, Almeyda e Sorín e com Francescoli, Crespo e Ortega no ataque.

Crespo grudou em Francescoli logo quando o uruguaio voltou ao River, em 1994. "Eu queria aprender tudo. Fomos campeões, desço para o vestiário e vejo Enzo encostado na parede, sozinho, me agradecendo pelos gols e por tê-lo feito campeão. Até hoje não acredito. Ter feito dois gols na final, na despedida do clube onde me formei, parecia coisa de cinema", contou Hernán em um documentário da ESPN lançado em 2006 sobre os dez anos daquela conquista.

Fotos: AFP/Marco Rossi e reprodução Fotos: AFP/Marco Rossi e reprodução

Um pouco de loucura

Crespo logo virou presença fixa na seleção argentina. Entre fevereiro de 1995 e junho de 2007, disputou 64 partidas e marcou 35 gols (média de 0,55). Foi comandado por técnicos de personalidades opostas como Daniel Passarella, Marcelo "Loco" Bielsa, José Pékerman e Alfio "Coco" Basile.

Passarella foi seu mentor no River Plate. "Era bravo, mas ensinava", resumiu Hernán ao Fox Sports em 2016. O livro "Él Es Passarella", escrito pelo jornalista argentino Nicolás Di Stasio, narra um treinamento da seleção na Copa do Mundo de 1998 na França em que Passarella quase quebrou o nariz de Crespo com uma bolada proposital. A reação de Hernán convenceu o "Kaiser", como o técnico linha-dura era chamado. Mesmo lesionado, o atacante entrou para tentar salvar o time no histórico jogo contra a Inglaterra nas oitavas de final - perderia sua cobrança na decisão por pênaltis, vencida pela seleção argentina.

Veio depois o ciclo Bielsa, quando Crespo se revezava com Batistuta, ainda assim terminando como artilheiro das Eliminatórias. Foram eliminados ainda na primeira fase na Copa de 2002, e entrou para a história um conflito seu com Bielsa. O "Loco" tentou consertar publicando uma carta em 2016, reconhecendo que havia mentido a Crespo considerando-o maduro antes da hora. Hernán respondeu dizendo que aceitava as desculpas, mas que preferia esquecer a mágoa de sentir-se enganado.

De Pékerman, Crespo absorveu a serenidade. "Percebi que uma pessoa pode ensinar muito apenas com sua presença e seu olhar. Confiávamos demais em José, era alguém que nos passava calma e sensatez ao analisar qualquer situação", contou à El Gráfico na Copa de 2006, quando a Argentina caiu para Alemanha nas quartas.

Shaun Botterill/Getty Images Shaun Botterill/Getty Images

Jean Claude Van Crespo

O cabelo comprido e as tiaras marcaram o futebol argentino nos anos 1980 e 1990 no visual de craques como Maradona, Kempes, Caniggia e Batistuta. As jubas eram famosas no país pela resistência aos militares e pelo sucesso das bandas de rock, gênero musical mais popular do país.

Com a volta da democracia (em 1983) e com o rock perdendo espaço para a cumbia e reggaeton, as cabeleiras argentinas ficaram no passado. Quando elas eram presentes, Crespo não se fartou em deixar crescer suas madeixas - com elas, jogou as Copas de 2002 e 2006, e inspirou sátiras de programas como o Videomatch, apresentado pelo ator Diego Korol, que reproduzia a paixão de adolescente de Crespo por Jean Claude van Damme, inspirador dos cabelos compridos.

Crespo tinha seus passos tão seguidos que quando apareceu sem as madeixas, em 2008, gerou espanto nas fãs argentinas. Virou assunto na revista El Gráfico explicando a mudança de visual. "Adorei enquanto o tive, mas me cansei do cabelo comprido e das tiaras. Se quero ter visual de moleque? Que nada, olha como o cabelo branco já apareceu para mim", contou, quando tinha 33 anos.

Fotos: AFP, AFP/Dima Korotayev, EFE/ Marcos, Ulmer\ullstein bild via Getty Images, Ormuzd Alves/Folha Imagem, Claudio Villa/Getty Images Fotos: AFP,  AFP/Dima Korotayev, EFE/ Marcos, Ulmer\ullstein bild via Getty Images, Ormuzd Alves/Folha Imagem, Claudio Villa/Getty Images

Pais...

Depois de rodar por Buenos Aires, Milão e Londres, Crespo passou por uma situação inusitada na pandemia em 2020. Voltou a viver com o pai e a mãe depois de 24 anos. "Há três anos, meu pai esteve quase cem dias em coma. Viajei da Itália à Argentina preparado para seu velório, mas ele se salvou. Faz três anos que ele e minha mãe vivem em quarentena. Não saem de casa, não podem nem pegar uma gripe que já é um tumulto", explicou ao portal Infobae.

Hernán se revezou entre o trabalho home office no Defensa y Justicia e nos cuidados paternos. "Como estou na Argentina, resolvi ficar com eles, limpar, cozinhar, fazer compras. Fiquei o tempo que foi necessário. Minha vida cabia dentro de uma mala."

Crespo voltou a frequentar os comércios e as ruas que marcaram a sua infância em Florida, bairro de Vicente López, na Grande Buenos Aires. "Adorei voltar a viver com minha irmã, meu cunhado, minhas sobrinhas, ir a farmácia dos tempos de criança. Mas a vida me chamou para outros desafios e está ótimo."

Reprodução

...e filhas

Crespo é pai de três mulheres, Nicole (16 anos), Sofía (14) e Martina (5), filhas da modelo italiana Alessia Rossi, com quem se casou em 2005 e se separou em 2019. As três moram na Itália com a mãe, onde praticam hipismo em um haras pessoal (e praticamente profissional) em Parma.

Falar das filhas é um tema sensível para Hernán. Ficou muito famoso na Argentina o seu choro desconsolado ao vê-las na final da Sul-Americana conquistada pelo Defensa y Justicia sobre o Lanús em janeiro, em Córdoba.

"Fazia um ano que eu não as encontrava. É parte da vida. Elas precisam viajar e ter os próprios vínculos. Sempre quis que elas soubessem que o mundo não é o vizinho. É claro que a pandemia colocou muitas dúvidas na cabeça de todos, eu não sabia quando iria encontrá-las, e agora estamos aqui. É um orgulho enorme que elas tenham visto a melhor partida da história do Defensa", disse Crespo, enxugando as lágrimas, ao Fox Sports.

Nicolas Aguilera - Pool/Getty Images Nicolas Aguilera - Pool/Getty Images

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