O luto e a luta

Família de Christian Esmério ainda trava batalha judicial com o Flamengo cinco anos após incêndio no CT

Alexandre Araújo Do UOL, no Rio de Janeiro (RJ) Zo Guimarães / UOL

"Se você cansar, aprenda a descansar. Não a desistir". A frase em letras pretas em um fundo branco está em um quadro que se destaca em meio a fotos, medalhas e um boné. Quase tudo no ambiente lembra Christian Esmério e auxilia uma família que se equilibra entre o luto e a luta, exatos cinco anos depois do incêndio no Ninho do Urubu, tragédia que interrompeu a vida do promissor goleiro.

Andreia e Cristiano, os pais, travam uma árdua batalha judicial com o Flamengo, e são os únicos familiares das 10 vítimas fatais que ainda não fecharam um acordo com o clube.

"A nossa luta é pelo sonho do nosso filho, mas também por justiça. Eu sei que se ele estivesse aqui, lutaria até o fim, como sempre lutou na vida dele", aponta Cristiano, com um suspiro. "A nossa luta diária é, além de tudo, mostrar que o Flamengo pode ser o maior clube do mundo, mas não é maior que o nosso filho", completou Andreia.

Zo Guimarães / UOL
Zô Guimarães / UOL

A briga na Justiça

Cristiano e Andreia travam uma luta judicial com o Flamengo desde dezembro de 2021. A ação corre na 33ª Vara Cível do Rio de Janeiro. O pedido inicial é de um total de R$ 8.440.000,00, com danos morais e pensionamento.

Em outubro do ano passado, eles estiveram frente a frente com advogados do Rubro-Negro, em uma audiência que serviria para que testemunhas indicadas pelo clube prestassem depoimentos. O Fla, porém, desistiu na última hora.

Luiz Humberto Tavares, gerente de administração do clube na época do incêndio, seria uma delas. Ele esteve no Fórum e foi dispensado. Rodrigo Dunshee, vice Jurídico, e o funcionário da manutenção Diego Diogo da Silva nem chegaram a ir.

"E eu fui só para ouvir o que eles iriam dizer. Ter, ao menos, uma resposta sobre tudo que aconteceu. Já que a diretoria do Flamengo não dá resposta, ninguém dá resposta, quem sabe as testemunhas que eles arrolaram para ser a favor deles poderiam falar? Poderíamos saber, de fato, o que aconteceu, porque eu não sei. Só sei que pegou fogo no ar-condicionado", disse Cristiano

A família reclama também da forma como os advogados do clube presentes trataram o encontro. "Ali eles estavam falando sobre uma vida que se foi. Os pais estavam ali presentes, mas é como se eles estivessem sentados em uma mesa de bar. Não tiveram esse respeito", salientou Andreia.

O Flamengo foi procurado pelo UOL, mas não respondeu ao contato. Em nota enviada para toda a imprensa, o clube afirmou ter prestado assistência para todas as famílias. Sobre o caso dos familiares do goleiro, o Rubro-negro informou que "a única família que não aceitou o acordo recebe, mensalmente, uma pensão do clube, independentemente de processo judicial, e o Flamengo continua aberto para alcançar uma composição com eles, a quem muito preza".

Até hoje não temos resposta, isso que é o mais dolorido. Não tem culpado, não tem ninguém. Essa é a nossa luta, essa é a nossa briga. Pelo sonho do nosso filho, mas também pela justiça

Cristiano Esmério

O Flamengo não vai colocar preço na vida do meu filho. Ele não vai decidir quanto que ele vale, não vai dizer se o meu filho poderia ou não ser um futuro jogador

Andreia de Oliveira

Flamengo: 'Valor exorbitante'

O Flamengo anexou as alegações finais neste processo no último dia 5. No documento, o clube considera o valor pedido pela família de Christian como "exorbitante". No tópico 87, o clube diz:

No caso concreto, por certo o sofrimento vivido pelos autores em razão da perda de seu filho de maneira tão trágica deve ser levado em conta, mas não se pode, no entanto, ser fixado dano moral em valor exorbitante e discrepante dos critérios estabelecidos pela jurisprudência

Para afastar sua responsabilidade, o Rubro-Negro coloca à mesa as fortes chuvas que caíram naquela madrugada no Rio de Janeiro e o que teria sido uma quebra de contrato da NHJ, empresa que forneceu os contêineres.

Na data do incêndio, bem como nos dias antecedentes, o Rio de Janeiro foi castigado por graves tempestades (chuva e vento) as quais ocasionaram grandes oscilações e quedas de energia na região do Centro de Treinamento. Soma-se, ainda, aos picos e oscilações de energia, causados pelo serviço deficiente da concessionária e pela ação da natureza, a existência de inadimplemento contratual por parte da NHJ, que forneceu os módulos habitacionais sem a proteção antifogo que o Flamengo contratou e confiava ter recebido, o que foi determinante para o trágico óbito do filho/irmão dos autores

O Fla indica um entendimento do STJ de que valores de indenizações por danos morais, em caso de morte, devem ser calculados entre R$ 150 mil e 500 salários mínimos, e pede aplicação de um novo cálculo para pensão.

Desse modo, uma vez demonstrado que os danos materiais pretendidos na forma de pensão revelam-se excessivos, requer-se que estes sejam fixados conforme jurisprudência do STJ sobre o tema, isto é, em, no máximo, 2/3 do salário-mínimo, no período em que o menor falecido teria entre 16 e 25 anos, e, após esse período, no valor de 1/3 do salário-mínimo até o momento em que o falecido completaria 65 anos

'Como não tem um culpado?'

A família de Chistian Esmério almeja ver punidos os culpados pelo incêndio no alojamento da base do CT do Flamengo, e questiona como não há respostas ainda hoje, cinco anos depois.

"Queremos justiça. Não é como a gente vê aí... Fomos massacrados diversas vezes nas redes sociais, pessoas dizendo que queremos enriquecer. Não! Queremos justiça, que achem o culpado. Porque tem um culpado. É muito fácil o Flamengo falar que foi a empresa de contêiner, a natureza, a Light, mas não foi. Foi imprudência. Como é que não tem culpado?", pergunta Cristiano.

O pai de Christian coloca à mesa os diversos eventos que aconteceram antes de o fogo consumir os dormitórios. "Vai fazer cinco anos e não tem um culpado. Não tem um quem autorizou a fazer o gatilho, quem autorizou a religar. Daqui a pouco vai chegar um momento de não ter culpado e o culpado serem as crianças".

O culpado sabemos quem é. Que o culpado, necessariamente, seja julgado como culpado. Essa é a questão. Que não arrume o culpado, como eles fazem

Andreia

Esperamos que a justiça seja feita. Não só pelo nosso filho, mas por todas as crianças. Por mais que as famílias tenham fechado acordo com o Flamengo, a justiça todos queremos. Todos os pais querem essa resposta, e, até o momento, não temos

Cristiano

Zô Guimarães / UOL

O tempo é relativo

Este é o quinto 8 de fevereiro desde o incêndio, e a família de Christian Esmério mostra que o tempo é relativo. Passaram-se mais de 1800 dias após aquela manhã em que o telefone tocou com a notícia, mas, para eles, as folhas arrancadas do calendário não amenizaram a ferida aberta.

"Em nossa mente, não vem que são cinco anos depois. Tudo ainda é muito vivo. Parece que foi ontem, sempre. Vão se passar anos e anos, e vai ser como se fosse ontem. O vazio vai ser eterno, só que a gente teve de seguir", afirma o pai do goleiro.

Não houve um adeus. Os contatos de Christian com a família aconteceram até horas antes da tragédia. "Vai ser muito vivo, até porque nós não tivemos a oportunidade nem de nos despedir do nosso filho. Falamos com ele um dia antes, estava feliz, e, no outro dia, amanhecemos com a pior notícia das nossas vidas", completou ele.

Apesar da sensação dos familiares do jovem goleiro, o mundo ao redor marca a data de forma expressiva e o tema ressurge para onde quer que se olhe, juntamente à dor. Apesar do aperto no coração, Andreia reserva uma visão positiva: que a história de Christian não seja esquecida:

"Essa data, para mim, é o pior dia de se passar. Traz à memória a todo tempo o pior dia da minha vida. É muito difícil. A procura até vejo como algo positivo, é um meio de não deixar a história morrer porque já vemos o Flamengo tentando o tempo todo que isso aconteça, que se apague, caia no esquecimento".

Eu perdi o meu filho correndo atrás do sonho dele. Eu perdi o meu filho indo atrás de um futuro, e por imprudência de uma grande instituição, que é o Flamengo

Andreia

Alexandre Araújo / UOL

O caminhar após o adeus

Seguir em frente se tornou um desafio quase que diário após a morte de Christian. Tudo mudou e a mãe do goleiro teve de ter força para não desistir de dar novos passos.

"O meu maior desafio é ter de continuar, entender que a vida continua, que preciso ter planos, que preciso continuar sonhando, continuar vivendo. Esse é, sempre, meu maior desafio, entender que a vida não parou e seguir, mesmo sabendo que parte de mim morreu. Parte da minha vida se foi e não pude nem me despedir", desabafou Andreia, que completou:

"Acabamos, enfim, vivendo um dia após o outro. A gente não cria expectativa, não espera. Perdi perspectiva de vida, de pensar à frente. Eu hoje não consigo fazer planos. Tento fazer isso em prol dos meus filhos que estão vivos, mas é muito difícil".

Cristiano e Andreia são pais de Cristiano Júnior, que é pai de Gael, de três anos, e Alessandro, pai de Laura, de um ano. Os netos viraram os xodós dos avós "babões" e um combustível.

"O Gael me abraça e me dá até um fôlego novo, ânimo novo. A Laura está longe [mora no Espírito Santo], mas, mesmo assim, vê-la sorrindo, andando, me dá muita força. Durante um bom tempo eu pensava que não tinha o que fazer aqui, não via sentido na vida. Hoje vejo que tenho de dar suporte aos meus filhos, meus netos", contou Andreia.

Arquivo pessoal

O sonho pelos olhos de outros meninos

Christian morreu em meio à caminhada para realizar o sonho de ser jogador. O adeus precoce do filho, porém, não fez Cristiano abandonar o futebol. Pelo contrário. Ele se voltou ao projeto social que atende cerca de 80 crianças na região de Irajá e Colégio, na zona norte do Rio.

"O futebol salva vidas. Vivemos em um país em que muito jovens, infelizmente, não têm oportunidade, e o futebol é a maneira que a gente consegue resgatar alguns jovens. O meu filho pensava em ter um projeto no futuro, e eu levo à frente", conta.

"Eu vejo que muitos ali querem uma chance, têm o sonho de ajudar a mãe. A maioria é de meninos de comunidade. Eu vejo meu filho neles e isso me motiva. Eu vivo no futebol por causa disso. Não tive a oportunidade de ver o meu filho como profissional, mas quem sabe um garoto desse projeto vai lá e representa? Para mim, vai representar tudo aquilo que o meu filho representava", completou.

O mesmo sonho de Christian, Arthur Vinícius, Pablo Henrique, Bernardo, Vitor Isaias, Samuel, Athila, Jorge Eduardo, Gedson e Rykelmo.

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