O outro profeta de Brenner

Antes de Diniz apostar em seu "carisma", atacante foi descoberto por um professor com deficiência nas pernas

Maurício Rossi e Thiago Fernandes Colaboração para o UOL e do UOL, em São Paulo Marcus Mesquita/UOL

Quando a bola foi recuada para o goleiro Hugo Souza, do Flamengo, aos 42 minutos do segundo tempo do primeiro jogo das quartas de final da Copa do Brasil, Brenner não desistiu. Atacou a bola e, quando o goleiro tentou um drible, conseguiu roubá-la para fazer o gol que deu a vitória por 2 a 1 para o São Paulo. O atacante fez os dois daquele triunfo, que abriu caminho para a volta do Tricolor paulista às semifinais do torneio nacional.

Mais do que isso, a atuação consolidou Brenner como protagonista de um São Paulo que, agora líder do Brasileirão, volta a animar seu torcedor após eliminações vexatórias em Campeonato Paulista, Libertadores e Sul-Americana. A desenvoltura do jovem atacante diante das traves é algo que motiva em Fernando Diniz uma frase singular: "Brenner tem o carisma do gol. É muito talentoso. É técnico e frio".

Não foi à toa, então, que, num momento de pressão, convivendo há semanas com a ameaça da demissão, o treinador não teve dúvidas e recorreu ao atleta. Sorte dele e também do torcedor são-paulino, por ter ao seu lado um jogador talentoso, que já fez 18 gols em 31 partidas.

O talento do garoto de 20 anos, porém, poderia figurar do outro lado daquele jogo das quartas de final da Copa do Brasil se não fosse por um homem. "Eu iria levá-lo para o Flamengo, mas o Brenner me disse: sou são-paulino, Profeta. Quero ir para o São Paulo", explica o primeiro professor de futebol do artilheiro.

O personagem em questão é Carlos Roberto Cabral, o "Profeta", que revelou em Cuiabá (MT) Brenner e mais três jogadores que passaram por seleções brasileiras de base. Tudo isso sem que ele próprio consiga andar direito: o Profeta foi vítima de poliomielite quando tinha apenas 12 meses e lutou para sobreviver durante seis anos.

Marcus Mesquita/UOL

Quem é Profeta?

O apelido de Profeta precede seu trabalho com o futebol. E vem de uma história triste. "Eu ganhei de um menino de rua. Ele estava na escadaria da Catedral de Cuiabá, onde eu fazia um trabalho social. Eu levava comida para o pessoal que vivia na rua e, quando vi um policial querendo prender o menino, entrei e o impedi. Naquele momento, uma música que falava de profeta estava tocando na igreja. E o garoto disse que, a partir daquele dia, eu não era mais Carlos, e, sim, Profeta."

Nascido em Jataí, Goiás, Profeta está com 56 anos. Há 17, foi convidado por um amigo para exercer um trabalho filantrópico na Associação do Pessoal da Caixa Econômica (APCEF). "Ele sabia que eu fazia meu trabalho para a Catedral de Cuiabá. E me levou para dar aulas às crianças."

Nesse período, Profeta, que é pós-graduado em Serviço Social, fez cursos de aperfeiçoamento de treinador de futebol. Um deles, em 1999, foi no Paraná, com o técnico Luiz Felipe Scolari, três anos antes de o gaúcho dirigir a seleção brasileira campeã do mundo na Coreia do Sul e no Japão. Nessa trajetória, o Profeta tem realizado muitos sonhos. Mas existe um que ainda falta, o de cursar um mestrado, pensando no tema de sua tese como "A Gratidão". Pois, segundo ele, "a gratidão tem o poder de transformar".

Marcus Mesquita/UOL

A vida dentro do hospital

A vida do primeiro professor de futebol de Brenner começou com um desafio. Ele teve que enfrentar a pólio, uma doença que afeta os nervos. Carlos tinha um ano apenas, e as sequelas ficaram. Hoje ele caminha com muita dificuldade.

Mesmo a respiração se tornara um empecilho. Até que, aos 12 anos, fortes dores envolviam todo o corpo. "A minha coluna estava pressionando o pulmão. A primeira cirurgia foi uma das mais complicadas, pois os órgãos precisavam ser descolados", explica.

O segundo procedimento cirúrgico também foi delicado. "Minha coluna foi toda aberta. Foram mais de 300 pontos nas costas". Daí em diante, idas e vindas ao Hospital Ortopédico de Goiânia foram constantes. Fazia uma cirurgia, ficava seis, sete meses no hospital e voltava para casa. Foram seis anos nessa luta."

"Hoje, uso um calçado com salto, pois tenho uma perna com mais de 30 centímetros de diferença da outra e meu braço esquerdo não levanta", diz. Após os procedimentos cirúrgicos, o Profeta seguiu seu rumo para Cuiabá, onde o trabalho de ajuda ao próximo perdura até os dias atuais.

Marcus Mesquita/UOL Marcus Mesquita/UOL

As aulas do Profeta

Ainda com 9 anos de idade, Carlos começou a fazer precoce trabalho voluntário. O primeiro foi no Guadalajara, de Jataí. No time, batizado em homenagem à Copa do Mundo de 1970, ele ajudava garotos tão jovens quanto ele. Essa primeira ligação com o futebol o levou à criação da "Escolinha do Profeta", como ficou conhecido o local em que ensina não só futebol, mas "caminhos para se tornar um ser humano melhor".

Um dos alunos, Lucas Bulhões, de 20 anos e que um dia tentou a sorte no São Paulo ao lado de Brenner, diz que deve muito ao professor Profeta. "Ele faz o trabalho com a gente falando, até fazermos o certo. Toda minha técnica que tenho hoje agradeço a ele", conta Lucas.

Além de passar ensinamentos a meninos e meninas no esporte, Profeta também é responsável por um projeto de música. A dupla sertaneja Denner e Douglas saiu desse projeto.

As revelações do Profeta

Marcello Zambrana/AGIF

Brenner - atacante

Um dos mais consistentes da temporada de 2020, o atacante está no São Paulo desde os 11 anos. Passou pelas categorias de base da seleção brasileira. Começou com Profeta aos 8 anos.

Marcello Zambrana/AGIF

Walce - zagueiro

O zagueiro do São Paulo saiu de Cuiabá junto com Brenner e está em tratamento após passar por cirurgia no joelho. Assim como o atacante, serviu a seleção do Brasil na base diversas vezes.

Outras joias de Profeta

Profeta também foi responsável por descobrir o zagueiro Luiz Eduardo, o Cuiabano, que tem 17 anos e está no Grêmio. O jogador disputa do Campeonato Brasileiro sub-17 e já foi convocado para a seleção brasileira da categoria. Outro zagueiro que tem o dedo de Profeta é José Wellington, que joga no Desportivo Brasil e, segundo o treinador deve aparecer no Flamengo em breve.

De acordo com Profeta, outros nomes também estão no Rubro-Negro. O meia-esquerda Vitor, de 11 anos, é um dos mais elogiados pelo professor.

Preste atenção nesse nome. Um craque."

Além dele, o lateral Luciano, de 14 anos, e os volantes Denilson e Gabriel, de 14 e 15, respectivamente, também já estão de contrato assinado com o rubro-negro carioca.

Porém, nem todos têm a mesma história de sucesso imediato. Lucas Bulhões, amigo de infância do atacante do Tricolor, que saiu da escolinha do professor Profeta, chegou ao São Paulo ao lado de Brenner e Walce, mas não foi aproveitado: "Eu sempre fui atacante, mas quando fui para o teste, falei que era lateral. Não deu certo". Hoje, aos 20 anos, Lucas ainda acredita que seu futuro esteja no futebol. No ano passado, esteve no Guarani. Sem clube, agora, espera sair do Brasil e tentar o futebol no exterior.

Staff Images / CONMEBOL

A bagagem de Brenner

Mas o que Brenner levou do Profeta para o São Paulo? "Trabalhei muito fundamento com ele. Bater com o pé direito, esquerdo, domínio, toque, marcação. Aquelas coisas que a gente faz, mas com muita dificuldade, por ser uma Escolinha sem fins lucrativos. O Brenner sempre teve uma facilidade grande de fazer gol. Assim que vi, disse: esse vai virar jogador", diz o Profeta.

Essa facilidade transformou Brenner em um dos nomes mais badalados das divisões de base do São Paulo. Como profetizou Carlos Roberto Cabral, o garoto virou jogador e chegou à seleção brasileira em categorias inferiores. Foi chamado até mesmo por Tite, em 2018, para fazer parte de um grupo especial de garotos que treinaria com o elenco que disputou o Mundial na Rússia.

O sucesso nas divisões de base levou Brenner ao time profissional do São Paulo bem jovem. Aos 17 anos, chegou ao CT da Barra Funda por decisão de Rogério Ceni. Na ocasião, o ex-goleiro contrariou recomendações de outros profissionais do clube paulista e bancou a promoção do jovem no CT da Barra Funda.

A primeira partida do jogador no time principal foi em 21 de junho daquele ano, diante do Athletico-PR, na Arena da Baixada. Ele entrou na vaga do peruano Cueva, aos 31 minutos do segundo tempo. Esta foi a sua única participação sob o comando de Ceni. O garoto, com 17 anos à época, ficou no banco de reservas ainda nos dois últimos compromissos da equipe sob a batuta do ídolo -- o empate por 1 a 1 com o Fluminense e a derrota por 2 a 0 para o Flamengo. Logo depois, Rogério Ceni foi demitido.

Mesmo que não tenha utilizado Brenner por muito tempo, Ceni teve que comprar uma briga para mantê-lo no elenco. O então treinador das divisões de base, André Jardine, foi contrário à promoção, por exemplo, pois analisava que o jogador não estava preparado para assumir o desafio.

O pensamento de Jardine era compartilhado por outros membros do departamento de futebol. Apesar da força desfavorável à continuidade no CT da Barra Funda, Brenner permaneceu. Só demoraria um pouco para ele explodir --algo que o próprio Rogério Ceni, ironicamente, testemunhou de perto, nos confrontos pela Copa do Brasil.

Heber Gomes/AGIF

A convicção de Diniz


Brenner vive a sua melhor fase com a camiseta do São Paulo, a qual veste desde garoto. Se os números gerais em 2020 já lhe são muito favoráveis, a situação é ainda melhor se nos limitarmos a um retrato do momento mais recente vivido pelo garoto.

Desde que se tornou titular na vaga de Pablo, em 7 de outubro passado, ele fez 16 jogos. No período, marcou 14 gols e virou um dos destaques do time. A participação ativa do jovem causou surpresa e foi constantemente atribuída ao técnico, que aposta em seu futebol desde o ano passado, quando estiveram juntos no Fluminense. Ele havia sido emprestado ao clube carioca, a pedido do próprio Fernando Diniz.

O garoto, porém, não conseguiu se firmar após a saída do comandante. Sem espaço, contou com o mesmo treinador para enfim conseguir uma guinada em sua carreira profissional: ao ser contratado pelo São Paulo, Diniz não demorou para pedir sua volta do jovem ao CT da Barra Funda. Demorou um pouco para que ele fosse lançado novamente a campo, mas sua hora chegou após a paralisação do futebol nacional causada pela pandemia do novo coronavírus.

"Temos que saber se aproximar dos jogadores. A maior parte dos problemas não é tático, físico ou técnico. É saber oferecer um continente em que o jogador possa se sentir confortável", disse Diniz. "O Brenner eu levei para o Fluminense, entrava quase todo jogo. Quando saí, ele não foi mais relacionado. Pedi que se reintegrasse aqui. Não dá para resolver o problema de todo mundo, mas quando tem a predisposição de ajudar a pessoa que está por trás do jogador."

Divulgação/São Paulo Divulgação/São Paulo

Dupla letal com Luciano

O alicerce de Brenner no São Paulo, todavia, não se limita a Fernando Diniz. Outro atleta pedido pelo técnico surgiu como o companheiro ideal para o garoto de 20 anos.

Luciano, sete anos mais velho, tem sido fundamental como seu parceiro, seja para serví-lo ou para suprir uma atuação sem gols, o que tem sido raridade neste momento da temporada.

Desde a troca de Luciano por Everton, que foi para o Grêmio, a dupla se responsabilizou por cinco assistências (ainda houve mais quatro de Luciano para Brenner) e 31 gols, o que contabiliza a participação direta em 36 gols da equipe. O time, por sua vez, balançou as redes em 61 oportunidades. Os números mostram que eles, juntos, interferiram diretamente em 59% dos gols do São Paulo no período.

A parceria tem sido aproveitada ao extremo por Fernando Diniz. O técnico mantém os atacantes entre os titulares e evita poupá-los no dia a dia dos jogos da equipe, ao passo que, dado o desenvolvimento da parceria, abriu mão do usual sistema de três atacantes, predominante em tempos recentes. Ambos são considerados figuras hoje incontestáveis e isso passa pela sintonia fina que desenvolveram.

A Europa pode esperar

Brenner ainda não recebeu ofertas para deixar o São Paulo no mercado da bola. Por ora chegam apenas sondagens do futebol europeu. Mas isso não significa que essa joia de 20 anos não desperte interesse no exterior. O que acontece é que o clube e seus agentes vêm trabalhando em conjunto para blindar o atacante numa fase tão boa como essa. Há o temor de que um assédio possa atrapalhar o rendimento do jovem.

Uma das formas de proteger Brenner é a elevada multa rescisória para o contrato que se encerra em 31 de dezembro de 2022. O valor da cláusula é de 50 milhões de euros (R$ 317,8 milhões na cotação atual).

Já foram iniciadas conversas para a renovação do jogador com o clube do Morumbi. As negociações, contudo, ainda são incipientes. Há o desejo da diretoria de até aumentar a multa rescisória, aliás. Há quem na diretoria imagine que seja possível transformá-lo em uma das maiores vendas recentes do clube.

A torcida são-paulina, que não comemora um título há 8 anos, naturalmente tem outras preocupações hoje. Até outro dia era um grupo que andava desconfiado sobre mais uma temporada infrutífera. Porém, a fase mudou, e muito pelos gols marcados por Brenner.

Para seu primeiro professor, o sucesso de seu pupilo está na vontade que ele tem de jogar futebol, numa descrição que faz eco ao que fala Fernando Diniz. "Ele tem uma facilidade para fazer gol e bate na bola com os dois pés. Ele joga com alegria", diz o Profeta. É isso, mesmo: alegria e carisma.

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