O protocolo falhou?

Futebol tem novo surto e 60 desfalques por covid-19 na rodada da Série A. 19% dos atletas já testaram positivo

Pedro Ivo Almeida e Pedro Lopes Do UOL, em São Paulo Fernando Moreno/AGIF

Depois de um número alto de casos de covid-19 nas primeiras rodadas, o Campeonato Brasileiro transcorreu de forma mais tranquila por meses, aumentando a confiança de clubes, jogadores e torcedores nos protocolos adotados pela CBF. Nas últimas duas semanas, entretanto, o cenário mudou: a segunda onda que dá sinais de começar a atingir o país parece ter chegado mais rápido ao futebol, e começa a gerar questionamentos.

Na última rodada do Brasileirão, disputada no fim de semana, os clubes da Série A do Campeonato Brasileiro tiveram, somados, 60 desfalques por coronavírus, além de dois treinadores contaminados e em isolamento. São 12 clubes com casos positivos, incluindo Vasco, Santos, Palmeiras, Corinthians, Atlético-MG e outros. Os números impressionam e mostram o impacto no futebol até agora: de acordo com levantamento da CBF, dos 6.604 jogadores testados nas séries A, B, C e D, além de aspirante, sub-20 e sub-17, 1.257 registraram positivo para covid. Isso significa que 19% deles já tiveram contato com o vírus desde o início da pandemia e foram contaminados em algum momento.

Os casos neste segundo surto também apareceram com maior gravidade. Cuca, técnico do Santos, chegou a ser internado na unidade semi-intensiva do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. O São Bernardo não disputa o Brasileiro, apenas a Copa Paulista; seu treinador, Marcelo Veiga, está na UTI da Santa Casa de Bragança Paulista, onde respira com auxílio de ventilação mecânica durante tratamento das complicações da covid-19. Há outros casos mais sérios no futebol nacional

Nos bastidores, clubes da Série A já questionam o protocolo desenvolvido para o Brasileirão, e alguns os consideram menos rigorosos dos que os adotados nos estaduais. A CBF defende seu protocolo, e considera que medidas mais drásticas, como punir clubes que contrariam as recomendações, poderiam inviabilizar a continuidade da competição. Episódios de filiados que não seguem o protocolo têm sido, aliás, frequentes, indo de interações entre jogadores, treinadores e torcidas organizadas a festas frequentadas por funcionários das agremiações.

Com o avanço dos casos, o UOL Esporte tenta responder: protocolo da CBF falhou? Uma explosão ainda maior de casos pode colocar em risco a continuidade do Brasileiro, e clubes podem ser forçados a adotar medidas mais restritivas para que o torneio chegue ao seu final.

Fernando Moreno/AGIF

Protocolo é alvo de críticas de clubes nos bastidores

Historicamente no futebol brasileiro, clubes raramente se posicionam publicamente contra a CBF ou as decisões conjuntas tomadas com a entidade. No caso do protocolo para covid-19 não é diferente, mas, nos bastidores, dirigentes de várias equipes da Série A fazem críticas às recomendações adotadas.

Dirigentes de diferentes clubes da Série A apontam como principal falha no protocolo da CBF o fato de que a entidade não providencia a testagem de todas as pessoas envolvidas na partida, apenas comissões técnicas os jogadores. Com isso, os times precisam testar por conta própria os demais envolvidos nas partidas.

Não há qualquer fiscalização quanto à testagem ou não dos demais membros da delegação, e há o conhecimento dentre os clubes da elite do futebol brasileiro de que alguns deles não tem feito estes testes, seja por opção, seja por dificuldades financeiras. Isso, para os cartolas ouvidos pela reportagem, mereceria uma intervenção ou fiscalização da CBF, e pode ser um dos fatores que influencia a disseminação de casos positivos.

Um dos argumentos que a CBF utiliza para defender seu protocolo é o fato de que todos os clubes concordaram e assinaram o protocolo. Na visão dos clubes, não havia outra opção, e uma tentativa de adotar medidas mais rígidas faria com que o Brasileirão não saísse do papel.

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Como funciona o protocolo?

O protocolo do Campeonato Brasileiro é um documento de 60 páginas que estabeleceu as diretrizes para a retomada da competição este ano. O trabalho foi desenvolvido por uma comissão de médicos criada pela CBF, chefiada pelo médico Jorge Pagura, e prevê uma série de restrições.

Dentre os pontos principais está a realização dos jogos sem público, com limitação do número de pessoas participando de cada partida, entre funcionários, arbitragem e delegação dos clubes. Para confrontos da Série A, esse número máximo é de 300 profissionais, incluindo desde atletas até bombeiros, gandulas e profissionais de limpeza.

A CBF custeia testes para os 23 atletas relacionados de cada equipe e os treinadores antes de cada partida. Os testes são feitos com antecedência, para que os resultados saiam antes do início dos jogos. No começo da competição, todos atletas que testavam positivo eram removidos das partidas, mas o protocolo foi ajustado, e jogadores que testem positivo mas tenham tido outro teste positivo há mais de 14 dias não são considerados contagiosos e são liberados.

Há ainda procedimentos especiais de higienização dos estádios antes de depois jogos, e regras de uso de máscara nas áreas utilizadas durante os eventos. O protocolo prevê penalidade de multa ou advertência em caso de descumprimento das diretrizes por ele estabelecidas.

Pedro Ivo Almeida/UOL

Ele é seguro? CBF garante que sim. E rebate clubes

Para a CBF, não há muita discussão sobre seu protocolo. A confederação entende que a "Diretriz Técnica Operacional" das competições é eficaz. "Não há motivos para rever o protocolo. A transmissão não ocorre em campo. Não tem nenhuma evidência disso. Inclusive, jogador só entra em campo com exame RT-PCR negativo. O ambiente do estádio é muito seguro. Já são mais de 200 jogos só na série A. Um aumento de casos na última semana não pode significar imediatamente que nosso protocolo não é seguro. Ele é. Inclusive atualizado e validado pela OMS [Organização Mundial de Saúde]", argumentou o chefe médico da CBF, Jorge Pagura (foto ao lado).

Na visão do experiente médico, o aumento de casos não está relacionado a falhas nas recomendações, mas sim ao momento do país.

"O Brasil deu uma flexibilizada no controle da pandemia. E isso se reflete em todos os campos da sociedade", argumentou o chefe médico da CBF.

"Antes, os aeroportos estavam mais vazios, os hotéis que os clubes utilizam estavam mais vazios. Agora não. O país flexibilizou. O contato acaba sendo maior. O que podemos fazer? Reforçar o que sempre falamos: se cuidem. É preciso manter tudo: utilização de máscara, evitar aglomeração, estar sempre fazendo uso do álcool gel para higienização. Nosso protocolo cuida do campo e arca com a testagem do elenco. Mas quem cuida do restante é o clube. Os clubes precisam cuidar dos seus. Times precisam se cuidar. Se um jogador sai, vai a algum lugar, frequenta uma festa, não é culpa do protocolo. Temos que olhar mais para o comportamento fora do ambiente do estádio do que para o protocolo de jogo", completou Pagura.

Nem todos são testados em campo. É seguro mesmo assim?

O discurso da CBF parece não convencer os clubes. Um dos pontos de questionamento de alguns dirigentes passa pelo fato de alguns envolvidos no campo de jogo não serem testados - diferente, por exemplo, de protocolos com o adotado no Campeonato Carioca, onde todos no estádio eram testados. No documento da confederação, membros do entorno do gramado - gandulas, cinegrafistas, fotógrafos e repórteres - não apresentam nenhum exame para frequentar o local e trabalhar.

Há quem veja risco. Não é o caso de um dos maiores nomes do Brasil quando assunto é infectologia. Estudioso da covid-19 e autoridade quanto o assunto é transmissão de vírus, Carlos Starling endossa a eficácia dos parâmetros adotados pela CBF.

"Dentro de campo, tudo garantido. Jogadores têm, no máximo, 30 segundos de contato somados durante uma partida. Isso com todos eles testados negativo e em ambiente aberto. Não é um cenário de transmissão. Ela só ocorre a partir de um contato sem máscara, bem próximo, e por alguns minutos. Entre dez e quinze minutos. Isso não acontece. Repórteres não ficam próximos, cinegrafistas também não, nem fotógrafos. Sobre os gandulas, todos usam máscara obrigatoriamente e higienizam a bola com álcool 70% a cada reposição. Tem todo um cenário seguro. Não há contato entre essas pessoas e jogadores no que chamamos de zona sensível, que são túneis e vestiários. Acompanhamos tudo. O campo de jogo não se apresenta como cenário de transmissão do vírus", explica Starling.

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Clubes na berlinda: economia em testes e festa na pandemia

A CBF tem sido clara ao afirmar que acredita que as contaminações têm ocorrido dentro dos próprios clubes, e não durante as partidas. Há diversos exemplos de times que não estão seguindo a risca as diretrizes, o que pode influenciar no aumento de casos no futebol brasileiro.

Relatos de atletas e funcionários apontam que o Vasco não tem realizado testes de todas as pessoas que participam dos jogos. A CBF custeia testes de treinadores e jogadores, mas há uma série de outros membros das delegações que entram no estádio e tem contato com os atletas, árbitros e comissões técnicas. Alguns clubes testam estes funcionários, mas o clube cruzmaltino tem optado por não fazê-lo.

No Atlético-MG a polêmica foi maior, com uma festa realizada pelo gerente esportivo Gabriel Andreata dias antes da explosão de casos de covid-19 - são, atualmente, 19 infectados. O evento contou a presença de integrantes da comissão técnica e do próprio técnico Jorge Sampaoli.

Jogadores e membros da diretoria não esconderam a irritação. Mesmo sem qualquer relação comprovada entre o evento e a contaminação de boa parte da comissão, entendem que Sampaoli e seus auxiliares se colocaram em risco em situação desnecessária, estendendo o risco também ao restante do grupo.

Atletas e jogadores tiveram contato direto e sem máscara com torcida

Além de festa e economia com testes, outro foco de polêmica foi o fato de clubes permitirem contato direto entre jogadores, treinadores e torcidas organizadas. O Santos, no início do mês, viu seu elenco passar por uma aglomeração de torcedores no aeroporto de Guarulhos ao embarcar para Fortaleza, para enfrentar o Ceará pela Copa do Brasil.

Os torcedores, alguns sem máscara, tiraram selfies e se aproximaram do grupo, interagindo com atletas. Depois disso, o alvinegro acumulou casos positivos para covid-19 nos seus elencos masculino e feminino. Foi depois disso que o técnico Cuca contraiu a doença e chegou a ser internado em unidade de terapia semi-intensiva no Hospital Sírio Libanês.

Episódios parecidos se repetiram nessa semana pela Copa do Brasil. Fernando Diniz, técnico do São Paulo, abraçou dois torcedores no portão principal do Morumbi, depois de vitória por 3 a 0 sobre o Flamengo na noite de quarta-feira. Ambos os torcedores não estavam utilizando máscara, e, minutos antes, participavam de aglomeração com centenas de pessoas ao redor do estádio.

Lisca, do América-MG, fez jus ao apelido de "doido", abraçou e pulou com torcedores do clube mineiro depois de garantir a classificação às semifinais do torneio.

Diniz festejou com a torcida

Treinador do São Paulo foi cumprimentar torcedores em aglomeração na porta do Morumbi

Clubes se defendem e desvinculam episódios de casos de covid-19

Os clubes envolvidos em polêmica e que não tem seguido o protocolo se defenderam publicamente. "Não da para ter essa afirmação, até porque futebol feminino não teve esse contato com a torcida. Provável que (a contaminação) seja comunitária", afirmou o médico do Santos Ricardo Galotti, minimizando a possível influência da aglomeração dos torcedores na explosão de casos de covid-19.

Pessoas ligadas à diretoria do São Paulo reconhecem que o abraço de Diniz com os torcedores ocorreu no calor do momento e não foi ideal, mas ressaltam que o treinador teve contato direto com apenas dois torcedores. O clube também ressalta que tem sido um dos mais exitosos do país em controlar casos de covid-19 e seguir os protocolos, tendo tido apenas um desfalque até agora, com Tchê Tchê.

O América-MG afirmou que toma cuidados internamente. "O América, desde o início da pandemia, atua com campanhas internas e externas relacionadas ao tema, deixando claro seu posicionamento nas ações contra a covid. Recomendamos, por exemplo, sair de casa apenas para questões essenciais, além de distanciamento e uso de máscara e álcool gel. Além disso, todas as normas contra a covid são praticadas em nossas dependências, com o clube, por exemplo, atuando com testes periódicos em seus funcionários. Entendemos a euforia do torcedor com esse momento histórico, mas sempre reiteramos as recomendações diante desta pandemia".

O Atlético-MG afirmou que não comentaria a festa realizada por seu diretor, pois não trata publicamente de questões internas.

Divulgação/CA Bragantino

Casos graves atingem futebol em uma pandemia longe de acabar

Desde a volta do futebol no meio do ano, alguns casos mais graves de infecção pelo novo coronavírus atingiram o esporte. Se os atletas, pela idade e condição física, estão fora dos grupos de risco, treinadores, dirigentes e funcionários dos clubes muitas vezes estão em posição de maior vulnerabilidade. Um dos casos de mais notoriedade foi o de Cuca, mas houve outros de maior gravidade.

Ainda em maio, faleceu o massagista Jorge Luiz Domingos, com mais de 40 anos de Flamengo. Treinador do São Bernardo, Marcelo Veiga (foto ao lado) está internado e respirando com auxílio de aparelhos na UTI da Santa Casa de Bragança Paulista. Carlos Augusto de Barros e Silva, o Leco, presidente do São Paulo, passou duas semanas em setembro internado na UTI do HCor, tratando uma infecção por coronavírus.

Diretor de futebol do Coritiba, Paulo Pelaipe está internado desde o dia 16 de outubro - há quase 40 dias. O dirigente, que tem passagens por Grêmio e Flamengo, chegou a estar na UTI e precisou da ajuda de aparelhos para respirar.

O atacante Raniel, do Santos, não teve sintomas fortes da covid-19, mas desenvolveu uma trombose na perna direita, e acabou internado no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo - a doença é uma das sequelas potenciais da infecção por coronavírus, e pode ter relação direta com o vírus.

RICARDO MORAES

Jogadores descartam movimento por restrições em regras

A reportagem procurou também ouvir entidades sindicais e, jogadores que ocupam posições de liderança na interlocução com seus clubes e seus entornos. Há consenso entre as fontes ouvidas de que não há, entre os atletas, um grande temor em relação aos impactos da covid-19 da saúde. Há uma rede de comunicação entre eles, e a maioria dos casos envolvendo os profissionais resultou em sintomas leves e recuperação relativamente rápida.

Os jogadores também não mostram, no momento, nenhum interesse em paralisar a competição ou brigar por medidas mais restritivas. Há o entendimento de que arriscar a realização do Brasileirão pode agravar a crise financeira dos clubes e fazer com que salários não sejam pagos. Além disso, nem todos os jogadores têm aderido de forma rígida ao isolamento social, com alguns frequentando restaurantes, eventos e até realizando pequenas festas - isso impede qualquer movimento organizado pelo enrijecimento das restrições.

Episódios como o ocorrido em Santos, entretanto, incomodam até atletas de outros times. Pessoas ligadas a vários a jogadores ouvidas pela reportagem afirmam que repetidas aglomerações com torcedores causam apreensão, e que esperam que os clubes ajam para impedir que o ocorram.

O debate chegou também às autoridades públicas. Nesta quinta, a secretaria municipal de Saúde de São Paulo emitiu comunicado alertando para a não repetição das aglomerações. O órgão pretende marcar uma reunião com Federação Paulista, CBF e clubes para discutir medidas que evitem que a situação volte a acontecer.

Campeonatos podem ser interrompidos pela covid?

Por ora, a CBF não trabalha com a possibilidade de interromper seus torneios em função da nova onda de contaminação por coronavírus. A entidade sustenta a ideia de eficácia de seu protocolo e acredita que os clubes, a partir dos repetidos pedidos de atenção, controlarão os casos nos próximos dias.

A confederação reforça que nenhum jogo precisou ser adiado nas últimas semanas por conta do novo surto. A partir de um impasse envolvendo um surto no Flamengo na décima rodada da série A do Brasileirão, a CBF estabeleceu que os times não poderiam remarcar suas partidas enquanto tivessem ao menos 13 atletas em condição de entrar em campo. Com o aumento do número de inscritos, somente um cenário de aproximadamente 25 casos simultâneos numa mesma delegação possibilitaria tal hipótese de cancelar um jogo.

Se a CBF manobra e evita adiamentos, os times também não se esforçam muito para evitar prejuízo técnico em meio a um novo surto. Após se colocarem em oposição ao Flamengo quando o mesmo tentou adiar seu jogo pelo surto antes do jogo contra o Palmeiras, os clubes seguem o calendário em meio a rodadas onde perdem até 18 atletas infectados - como ocorreu com o Alviverde neste último fim de semana.

Além disso, com o calendário apertado e a falta de datas para repor jogos adiados, clubes e confederação mantêm o empenho em não "arrastar" o Brasileirão para depois de 24 de fevereiro - data da última rodada. Cortar jogos e perder parte da milionária verba de TV também não está no radar dos dirigentes.

E em meio a uma nova curva de subida dos casos, somente uma decisão mais radical do poder público seria capaz de conter um futebol que parece normalizar a disputa em meio à pandemia que já matou mais de 169 mil pessoas no país.

Marcello Zambrana/AGIF
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