O técnico

A história do homem que tirou um menino do orfanato e descobriu um dos maiores talentos olímpicos do Brasil

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Arquivo pessoal/Lucimar Teodoro

Quando jovem, o velocista Claudinei Quirino vivia em um orfanato. Um dos traumas que ele carregou pela vida foi o medo de dormir em beliche, porque sempre tinha alguém para derrubá-lo no chão. Os outros traumas, o técnico José dos Santos Primo ajudou a curar.

"Eu saí do orfanato, comecei a treinar em Lençóis Paulista e ele me viu correndo e me levou para Araçatuba. Cheguei lá e era um momento de muita rebeldia minha. Eu tinha uma raiva contra o mundo. Contra todo o mundo. Eu treinava para destruir qualquer pessoa que passasse na minha frente". Essa fúria contra a humanidade foi domada pelo velho Primo, que assinou um documento no orfanato se responsabilizando pelo comportamento do jovem Claudinei, permitindo que aquele garoto se tornasse um dos maiores velocistas brasileiros da história.

Quando você mora no orfanato, você adquire várias coisas, né? E o mundo parece que era meu inimigo. Eu não acreditava em mim, eu achava que eu seria um bandido. Vi uma oportunidade ali no esporte, mas sempre com um pezinho atrás. O Primo foi uma das primeiras pessoas na vida a acreditar em mim".
Claudinei Quirino, dono de uma medalha olímpica e três em mundiais de atletismo

Primo conhecia o mundo e as pistas. Representou o país em competições na década de 50 e foi o garimpeiro que burilou várias gerações de esportistas. Era simples. Muitas vezes comprava remédio e comida para seus meninos e meninas com o dinheiro que poderia dar um pouco de conforto em uma vida modesta. Tinha 85 anos quando morreu de câncer, há uma semana. Poucos souberam.

Arquivo pessoal/Lucimar Teodoro
Arquivo e Jose Manuel Ribeiro/Reuters Arquivo e Jose Manuel Ribeiro/Reuters

O livro do alemão

A notícia da morte de Primo correu por WhatsApp. Foi dada por Zequinha Barbosa, outro grande nome treinado por Primo — Zequinha é campeão mundial indoor e acumula quatro medalhas (duas em torneios indoor) em campeonatos mundiais, sempre nos 800m.

"O técnico José dos Santos Primo acabou de falecer em Araçatuba". Foi assim que Zequinha escreveu numa mensagem que chegou às 23h53 de sexta-feira. Atingiu em cheio o grupo autodenominado "Filhos do Primo" — uma turma de atletas, famosos ou não, olímpicos ou não, que devem muito à dedicação do mestre.

O velho Primo partiu na Santa Casa da cidade que escolheu para viver. Fundista de destaque no esporte nacional, o baiano de Juazeiro foi recordista brasileiro dos 1.500 metros em 1957. Foi campeão sul-americano dos 1.500 e dos 3.000 com obstáculos em Lima (1961) e Cali (1963). Nos Jogos Pan-americanos de 1963, ficou com a quarta colocação nos 1.500 metros.

Quando se estabeleceu na cidade de Araçatuba, no interior de São Paulo, ganhou um livro sobre treinamentos em um curso realizado na capital, ministrado por um técnico alemão. O livro, claro, estava escrito no idioma estrangeiros. Percebendo que tinha recebido um tesouro, Primo buscou arrancar cada gota de informação daquelas páginas. Arrumou um amigo para traduzir aqueles ensinamentos. Tinha só o segundo ano primário, mas fazia de tudo para que seus atletas estudassem. E se transformou em um treinador raro em nosso esporte.

Do trabalho dele o Brasil ganhou duas medalhas olímpicas, a prata de Claudinei Quirino no revezamento 4x100 m de Sydney-2000, e o bronze de Katsuhiko Nakaya, técnico do time feminino do Brasil no 4x100m de Pequim-2008. Qualquer repórter que fosse até Araçatuba para descobrir seus segredos recebia a mesma resposta: "O livro do alemão e a vivência".

Quando vim para treinar em São Paulo, eu achava que teria muitas novidades. Mas tudo o que a gente fazia na capital, o Primo já fazia lá em Araçatuba. Ele aprendeu muito com aquele livro que ele ganhou de presente do técnico alemão

Katsuhiko Nakaya, umas das primeiras descobertas de Primo, que correu nas Olimpíadas de 1980 e 1984 e foi técnico do revezamento feminino 4x100 m do Brasil nos Jogos de Pequim, em 2008, que ganhou a medalha de bronze

Mike Powell/Allsport/Getty Images Mike Powell/Allsport/Getty Images

"Eu tinha fome e ele me acolheu"

Primo descobria os jovens talentos das cidades da região de Araçatuba. Foi assim que despontaram talentos como Katsuhiko Nakaya, Zequinha Barbosa, Claudinei Quirino, Edielson Rocha e Lucimar Teodoro. Esses cinco eram o orgulho do velho Primo. Todos disputaram Olimpíadas como ele tinha previsto assim que viu suas primeiras passadas em pistas de terra.

"O Primo foi pai, treinador, mentor, foi tudo. Mesmo tendo apenas o segundo ano primário, foi um técnico adiantado no tempo dele. Era um gênio. Em 1978, me apresentava na cidade como seu novo atleta olímpico. Quando descobriu o Claudinei Quirino, foi até o orfanato e assinou a ficha se responsabilizando por ele", relembrou Zequinha, em uma declaração emocionada, entrecortada por lágrimas.

Quando ele me chamou para treinar, a primeira negociação com ele não foi por uniforme, não foi por dinheiro, não foi por um tênis novo. A minha primeira conversa foi assim: 'se tiver comida, eu vou'. Eu tinha fome e ele me acolheu. A mim e a minha irmã, a Elba".
Zequinha Barbosa

Em uma das primeiras vezes em que saiu para competir com a equipe de Araçatuba, Zequinha foi almoçar com os companheiros. "Eu enchi o prato e quase deitei em cima da comida de tanta fome que eu sentia. Lembro como se fosse hoje. Ele colocou as duas mãos sobre meu ombro e falou: 'Menino, senta como campeão. Você não pode comer assim'. A partir dali, eu tive postura."

Quando a minha mãe me trouxe de Três Lagoas para treinar com ele, eu tinha 13 anos. Ele foi minha base, foi meu treinador, foi meu pai

Lucimar Teodoro, a única mulher que Primo treinou a chegar às Olimpíadas. Ela esteve em três: Atenas-2004, Pequim-2008 e Londres-2012

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

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