Tinha um estádio bem aqui

A história dos campos que inauguraram o futebol em São Paulo, mas não existem mais

Arthur Sandes e Diego Salgado Do UOL, em São Paulo UOL

O primeiro jogo da história do Corinthians aconteceu onde hoje há um mercado municipal; o Palestra Itália nasceu em um terreno esburacado que agora abriga um casarão imponente; e o espaço do primeiro estádio do São Paulo segue preservado, em uma das margens do rio Tietê. O UOL Esporte voltou mais de 100 anos no tempo e esquadrinhou a capital paulista para localizar os lugares em que o futebol surgiu e se popularizou na cidade.

O grande palco do início do Paulista, por exemplo, foi construído para o ciclismo e só se dobrou ao futebol anos depois. Foram 13 finais no Velódromo Paulistano, onde Charles Miller se eternizou como craque em um esporte ainda muito ligado às elites paulistanas. O estádio, demolido há mais de século e esquecido, existiu onde hoje há um teatro e vários prédios residenciais.

Na mesma época, paralelamente ao deleite das elites, o futebol também arrebatou as demais classes sociais de São Paulo. Sem ter chácaras à disposição, os entusiastas encontraram áreas perfeitas para o esporte nas margens dos rios: terrenos planos e sem nenhuma construção, afinal eram várzeas sujeitas a alagamento em tempos de cheia. Nascem daí os times "de várzea".

Neste texto não estarão os colossos do Pacaembu e do Morumbi, que conhecemos desde os tempos de criança; muito menos as novas arenas. Estão campos mais antigos, em que a história do futebol paulista foi escrita por mais de quatro décadas: do finalzinho do Século XIX até a inauguração do Pacaembu, em 1940. Nenhum deles resistiu aos vários processos de renovação da cidade, mas todos têm contribuição no estabelecimento do futebol como esporte preferido da cidade.

Bom Retiro e Parque Dom Pedro II: o início

Foi em um pasto mal cuidado que, em um domingo de 1895, Charles Miller apresentou a bola de futebol a seus amigos e deu o pontapé do esporte no Brasil. O Campo da Várzea do Carmo talvez ainda nem merecesse este nome, pois estava mais para pasto. "Ao chegar ao capinzal, a primeira tarefa que realizamos foi enxotar os bois (...), que tosavam a relva pacificamente", disse o próprio Miller certa vez.

Aquela partida entre funcionários da Companhia de Gás e da Companhia Ferroviária não foi o primeiro jogo de futebol do país, mas foi o que fez o esporte cair nas graças da elite paulistana, que terminou a brincadeira comentando "que joguinho bom". Segundo o próprio Charles Miller, o local exato do pontapé inicial foi "nas proximidades da Rua do Gasômetro e da Rua Santa Rosa", que hoje é a região do Parque Dom Pedro II, no centro de São Paulo.

A elite rapidamente absorveu a novidade e adaptou seus espaços para experimentá-la. Na Chácara Dulley, no bairro do Bom Retiro, um campo de críquete foi adaptado ao futebol para servir aos primeiros treinos do São Paulo Athletic Club (o SPAC). Foi este o berço do esporte na capital, no espaço em que hoje há a Oficina Cultural Oswald de Andrade e algumas lojas nos arredores.

Paralelamente ao jogo das chácaras, o futebol também encantou as demais classes sociais e foi pulverizado por toda a cidade. Toda a cidade, mesmo. Quando o primeiro Campeonato Paulista foi jogado, em 1902, os paulistanos já haviam criado campos em qualquer terra alagadiça das várzeas dos rios, de preferência próxima a alguma linha de bonde, fundando ali os times "de várzea". O sucesso foi tão grande que, já em 1904, a Prefeitura criou uma lei para regularizar os espaços que poderiam ou não abrigar um campo.

O mais famoso destes espaços era o Campo do Éden, um dos primeiros da cidade, criado ainda no apagar do Século XIX. Era a casa do time de várzea Éden Liberdade e ficava às margens do antigo Ribeirão do Itororó, onde hoje passa a Av. 23 de maio. O córrego era também chamado de Riacho da Limpeza, de forma pejorativa, pois recebia a água usada do antigo matadouro e da cadeia da cidade. O cheiro não impedia o futebol por ali.

Consolação: o primeiro grande palco

O Velódromo Paulistano recebeu 13 finais do Campeonato Paulista, incluindo a primeira da história, em 1902. Também foram ali os primeiros jogos interestaduais (de times paulistanos contra o Fluminense); e a primeira partida internacional (de um combinado contra a seleção da África do Sul) —tudo naquele começo de Século XX. O estádio ficava no quarteirão da Rua Nestor Pestana onde hoje ficam a Catedral Presbiteriana de São Paulo e as obras de reconstrução do Teatro Cultura Artística.

Foi no Velódromo que Charles Miller se tornou o primeiro grande craque do futebol paulista, liderando o seu São Paulo Athletic Club no primeiro clássico da cidade, contra o Paulistano. Também foi jogando no mesmo estádio que, em 1910, os ingleses do Corinthian-Casuals inspiraram operários a fundar o Corinthians.

O Velódromo foi a primeira praça esportiva da cidade, projetada por Tommaso Gaudenzio Bezzi, mesmo engenheiro responsável pelo Museu do Ipiranga. Foi inaugurado em 1895 para receber competições de ciclismo, pois as ruas tortuosas daquela São Paulo eram inadequadas para o esporte mais falado da época. Por isso providenciou-se a estrutura, com capacidade para 800 pessoas, todas naturalmente da elite paulistana.

De bicicleta, da chácara Dulley ao Velódromo

Em São Paulo o futebol é apresentado formalmente à elite como uma pequena distração de intervalo, no meio de disputas de ciclismo, que era o esporte favorito da época. O futebol nasce pedindo licença, tentando ganhar visibilidade dentro do seu público, que na época era a aristocracia."

Paulo Cezar Alves Goulart, autor do livro "Campos, Estádios e Arenas de Futebol... Começa o Espetáculo!".

Marcus Leoni/Folhapress
A Catedral Presbiretiana de São Paulo é um dos prédios que ocupa, hoje, o local do antigo Velódromo

Aos poucos o futebol reivindicou espaço no Velódromo, um processo que se acelerou quando o Club Athletico Paulistano alugou o espaço como sua sede esportiva, em 1901. Reformas ampliaram a capacidade para 2 mil lugares, e a nova modalidade diversificou o público, mas já em 1916 o estádio deixou de existir. Foi desapropriado, demolido para a criação da Rua Nestor Pestana e mais ou menos reciclado: parte das arquibancadas de madeira foram salvas e reutilizadas no Estádio da Floresta.

Ponte Pequena: um campo histórico que ainda resiste

O Estádio da Floresta foi a primeira casa do São Paulo FC, em 1930, mas bem antes disso o local já estava profundamente marcado na história do Palestra Itália. O estádio foi inaugurado em 1904, construído pela antiga APEA (a Associação Paulista de Esportes Atléticos) com contribuições financeiras de seus clubes associados.

Estando na margem do rio Tietê, a Chácara da Floresta primeiro serviu à prática de remo e só depois ao futebol. Originalmente o estádio era do Clube de Regatas São Paulo, mas em 1913 passou a ser da AA Palmeiras, que o reformou para receber até 15 mil pessoas. Desta forma o local virou o segundo grande palco do futebol paulista naquela década, herdando parte das arquibancadas do Velódromo.

Foi neste campo que o Palestra Itália disputou seu primeiro jogo oficial (contra o Mackenzie, em 1916) e foi campeão paulista pela primeira vez (vencendo o Paulistano na final de 1920). Nesta época o estádio ainda pertencia à AA Palmeiras, mas isso mudaria dez anos depois, quando dissidentes deste clube e do Paulistano se juntariam para formar o São Paulo FC —que nasceria já como dono do Estádio da Floresta.

Danilo Verpa/Folhapress
Quadras de tênis do Centro Esportivo Tietê, onde antes era o Estádio da Floresta

Foi como casa do Tricolor que o estádio se tornou o primeiro a receber iluminação artificial (em 1930) e depois a primeira transmissão de futebol ao vivo em São Paulo, via rádio, em jogo da seleção paulista contra a paranaense, em 1931. Em 1935, porém, disputas políticas do São Paulo FC culminaram na dissolução do clube, e quem herdou o campo foi o Clube de Regatas Tietê (extinto em 2012).

O espaço simbólico do Estádio da Floresta está preservado nas dependências do Centro Esportivo Tietê, um espaço público, mas o campo já não existe há bastante tempo: toda a estrutura foi totalmente modificada, e no lugar do antigo estádio há apenas um gramado sem marcações.

Campo da Várzea da Lapa

Palco do primeiro jogo do Corinthians, em 1910, o campo existia onde hoje está o Mercado da Lapa. Também era conhecido como "campo da porteira" por causa da linha de trem que passa ali até hoje: antes da construção das passagens subterrâneas, havia no local uma cancela --uma porteira-- que interrompia o trânsito de pedestres para o trem passar. Chegou a ser referência no bairro, mas aos poucos perdeu movimento por estar na várzea do Rio Tietê e alagar com frequência. Existiu até o final dos Anos 40, quando deu lugar a uma favela. O Mercado da Lapa foi inaugurado no mesmo terreno, em 1954.

Estádio da Rua da Mooca (ou Antarctica Paulista)

Foi o segundo estádio do São Paulo FC, que o usou por dois anos entre 1938 e 40. O campo havia sido construído em 1920 pela Companhia Antarctica Paulista, para ser usado pelos funcionários da empresa; mudou de mãos até chegar ao Clube Atlético Estudantes Paulista, que por sua vez acabou absorvido pelo São Paulo. O estádio viu jogar ídolos tricolores como o goleiro King e o atacante Teixeirinha, mas acabou preterido por causa do alto custo de manutenção. Hoje o terreno é um estacionamento, parte das instalações de uma cervejaria.

Campo da Rua Major Maragliano

É o berço do Palestra Itália, que treinou neste campo por cinco meses antes de disputar seu primeiro amistoso (em Sorocaba, em janeiro/1915). A primeira partida do time na capital também foi ali, pouco depois. O terreno acidentado, apelidado de "barranco", servia bem para treinos e um ou outro amistoso, mas não era apropriado para jogos oficiais. O Palestra buscou instalações melhores já em 1917, quando foi para o Parque Antarctica. Desde então existiu um convento e um hospital psiquiátrico no endereço, onde hoje há o Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental.

Por que eles desapareceram?

O desaparecimento de campos de futebol como o Velódromo está ligado, sobretudo, ao forte crescimento da cidade de São Paulo na primeira metade do século passado, a partir da região central. Grandes áreas, então, passaram a ser objeto de especulação, pois poderiam ser parceladas e comercializadas.

"A presença dos estádios ali no centro, no vetor de expansão, é algo que abre uma oportunidade. São grandes áreas que podiam ser renovadas de uma vez, parcelar, comercializar. Esses grandes terrenos, ocupados ou não, quando estão dentro dos vetores de expansão, são grandes oportunidades para lotear e vender. Era lucrativo", explicou o urbanista Kazuo Nakano em entrevista ao UOL Esporte.

A própria configuração do quarteirão onde estava localizado o Velódromo explica o fenômeno. O velho estádio deu lugar a dezenas de comércios, prédios residenciais e também comerciais, além de um teatro.

Além da urbanização acelerada, a dinâmica do processo na capital paulista resultou no desaparecimento desses equipamentos esportivos. De acordo com Nakano, os estádios fizeram parte da substituição de edificações. Na renovação da cidade, houve uma alteração física, com demolição e surgimento de novas construções.

"É uma característica de São Paulo muito forte e muito presente. Por isso, São Paulo não tem conjuntos grandes antigos e significativos. Há pequenos, um ou outro, principalmente no centro antigo, mas não tem grandes conjuntos como no nordeste e no Rio", frisou o urbanista.

As casas do Trio de Ferro

Bom Retiro

O Corinthians nasceu no Bom Retiro. Ainda em setembro de 1910, alugou um terreno na Rua José Paulino, a poucos metros de onde havia sido fundado dias antes. Ali criou o Campo do Lenheiro (quase na Rua Prates, perto de onde está hoje o Parque da Luz). Preparou tudo a tempo de jogar no local a segunda partida de sua história, no dia 14 daquele mês --dias após a "estreia" na Várzea da Lapa. Antes do futebol o terreno servia de estábulo improvisado, o que acabou eternizado no segundo escudo, no qual a letra C tem o formato de uma ferradura. O time fez alguns jogos no campo até 1912. Aí usou o Parque Antarctica e o Estádio da Floresta e em 1918 se mudou para a Ponte Grande. Na década seguinte foi ao Parque São Jorge.

Vila Mariana

O Palmeiras foi fundado como Palestra Itália em agosto de 1914, na região central de São Paulo, próximo à Praça da Sé. Antes da estreia em competições oficiais, o time treinava rua Major Maragliano, na Vila Mariana. Em 1915, chegou a jogar algumas partidas no Velódromo. No ano seguinte, a Companhia Antarctica, dona do Parque Antarctica, passou a alugar seu campo para o clube. Em 1920, o clube comprou o estádio e parte do terreno, onde também se instalou a sede social do clube. Em 1933, o campo ganhou arquibancadas de concreto e passou a ser chamado de Palestra Itália. Três décadas depois, uma grande reforma elevou o gramado para a construção dos vestiários. Surgiu, assim, o famoso jardim suspenso a partir de 1964.

Ponte Pequena

Em 1930, a junção entre dissidentes da AA Palmeiras e do Paulistano fez o São Paulo surgir já com um bom campo, o Estádio da Floresta, que já existia havia mais de 20 anos --daí as menções ao "São Paulo da Floresta". O campo foi reformado e reinaugurado pelo Tricolor, que só ficou ali por cinco anos. Em 1938 o São Paulo absorveu o CA Estudantes Paulista e com isso assumiu o Estádio da Rua da Mooca. Era uma saída temporária, por apenas dois anos, até a abertura do Pacaembu --no qual o Tricolor tinha preferência para mandar seus jogos. Entre as décadas de 1940 e 50 houve projetos de estádio próprio nos bairros do Canindé, no Sumaré e até ao lado do Parque Ibirapuera, mas o colosso foi erguido mesmo no Morumbi.

Para saber mais

O estudo "Os clubes de futebol e o processo de urbanização na região do rio Tietê (1889-1945)", publicado em 2013 por pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) e da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), passa em revista o desenvolvimento do futebol nas áreas banhadas pelo principal rio de São Paulo. Dentre os clubes que nasceram "ribeirinhos" estão Corinthians e São Paulo.

O livro "Campos, Estádios e Arenas de Futebol? Começa o espetáculo!", de Paulo Cezar Alves Goulart, conta de forma leve desde a chegada do futebol ao Brasil até a modernização de nossos estádios. Reúne documentos históricos e fotos raras de vários dos campos citados nesta reportagem.

O conto "Corinthians (2) x Palestra (1)", publicado na coletânea "Brás, Bexiga e Barra Funda", de Alcântara Machado, dá uma ótima noção do cenário dos grandes jogos de futebol da capital paulista há 100 anos. A partida retratada é a de 5 de setembro de 1920, no Parque Antarctica, com uma ou outra licença poética.

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