Os novos atletas de Cristo

Expansão evangélica passa também pelo futebol brasileiro: "Antes parecia crime", diz Roger Machado

Marcello De Vico Colaboração para o UOL, em Santos (SP) Divulgação

"Fazer da profissão um meio de missão". Mais do que simplesmente ir a campo e defender a camisa do seu time, um grupo crescente de jogadores carrega consigo objetivos que vão além das quatro linhas. Na constante peregrinação do mundo dos boleiros, eles não carregam apenas chuteiras, caneleiras e seus adereços favoritos. Talvez seja mais importante levar a palavra de fé, por onde quer que passem. Esse é o objetivo de uma comunidade que, à sua maneira, segue os passos do tradicional movimento iniciado nos anos 80 conhecido como Atletas de Cristo.

"Levando a sério a ordem de pregar o Evangelho a todas as pessoas, e em fazer de tudo para que todos possam de algum meio receber Cristo, levando o evangelho a atletas de todas as modalidades. Além dos atletas, Deus tem alcançado todo o entorno do atleta; esposas, fãs, treinadores e familiares".

O texto acima é uma apresentação da Igreja Viva 24 Horas, mais especificamente de um dos Ministérios criados por ela, denominado Missão no Esporte. Como o nome já diz, é um ramo dedicado a esportes em geral. Mas, é claro que o mais popular deles, o futebol, acaba, naturalmente, ganhando um espaço maior. A igreja foi fundada em Duque de Caxias (RJ) em 1982 e hoje tem filiais espalhadas não só pelo Brasil, como por outros países, como o Chipre. Mas independentemente de sedes físicas, o ensinamento que prevalece entre seus frequentadores é: "A igreja somos nós, não o templo".

"Assim como a gente conheceu de uma pessoa, a gente também quer apresentar a outras. Eu costumo falar que, quando você vai num restaurante bom, você indica para outras pessoas. Com Cristo é a mesma coisa. Você tem que passar para outras pessoas que precisam, que não fazem parte de nenhum ministério", conta o meia Lincoln, ex-Grêmio e hoje no futebol português.

Ser evangélico no meio do futebol, porém, nem sempre foi visto com leveza. Como lembra o técnico Jorginho, um dos dos representantes simbólicos dos Atletas de Cristo desde a década de 80:

Naquela época [anos 80 e 90] existia um preconceito muito grande. Não era comum um atleta, por exemplo, falar sobre Deus, falar sobre a Bíblia."

O ex-lateral também testemunhou como, décadas depois, a procissão da fé próxima aos gramados virou polêmica. Foi o que aconteceu após a eliminação da seleção pela Holanda na Copa de 2010. Auxiliar de Dunga, Jorginho foi contestado por envolver profissionais evangélicos na delegação nacional.

Mas como os atletas cristãos são vistos hoje no meio do futebol? Ainda há preconceito, e ele é menor se formos comparar com os anos 80 e 90? E quais os benefícios que um suporte psicológico deste tipo traz aos jogadores e, consequentemente, aos clubes? O UOL Esporte ouviu diversos personagens dessa corrente para entender se há um novo cenário ao fundo.

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Eu vivi como jogador num momento em que parecia que era crime. Só podia ser católico no Brasil

Roger Machado, hoje técnico do Bahia

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O pastor dos jogadores que "não gosta de bola"

O pastor André Batista, representante do Reverendo José Santana, é quem lidera a Missão do Esporte. Ele é o maior contato dos jogadores do ministério, a quem os atletas recorrem quando precisam de algum conselho. O mais curioso? Não estamos falando de alguém fanático, desde cedo envolvido futebol. "Não gosto de bola e nunca joguei", diz, categoricamente. Mas sabe como lidar com o ser humano que passa por grandes -- e por vezes repentinas -- transformações como um jogador, especialmente no início da carreira.

Então como pode alguém que não vai aos estádios e que não para em casa para ver um jogo acabar desenvolvendo uma conexão com os boleiros? Tudo ocorreu meio ao acaso, ao se deparar com um dos maiores artilheiros brasileiros em tempos recentes. "Eu estava na inauguração da nossa igreja em Brasília. Fui fazer um trabalho de evangelização, batendo de casa em casa... E eu bati na casa de uma família, sem saber quem era. Entro na casa, e quem estava lá? Washington, o Coração Valente."

"Ele estava na casa da tia dele, em Taguatinga, e falei: 'A senhora é de onde'? Ela me respondeu que vinha do Rio Grande do Sul, mas que estava morando ali. E eu falei: 'Pô, eu sou de lá, estou fazendo um trabalho lá, e estamos aqui convidando vocês para a inauguração da nossa igreja... E a senhora gosta de futebol, né? Eu vi foto do Washington espalhada por aqui'. E o Washington estava lá mesmo, na sala. Ele tinha vindo da Turquia e fechado com o Athletico Paranaense. Aí eu comecei a entrar nesse meio", conta.

Washington não chegou a se converter, mas foi a porta de entrada para o pastor André semear a atividade religiosa dentro do futebol, especialmente entre figuras de destaque no Sul, como o ex-zagueiro Índio e o atacante Rafael Sóbis - que apesar da amizade com o Pastor, acabou não se convertendo.

"Um rapaz da nossa igreja de Porto Alegre falou um dia que queria emprestar aquele filme com o Mel Gibson, 'Paixão de Cristo', para o Rafael Sóbis. E eu falei para irmos direto na casa dele, já que tinha o DVD. Quando eu levei, o Sóbis falou assim: 'Tá vendo aquele cara lá? Se ele se converter, eu vou pra igreja'. Foi quando ele me apresentou o Índio", lembra.

"Aí o Índio falou pra mim: 'Felicidade existe? Pois não sou feliz. Eu tenho carro, casa, uma esposa, dois filhos lindos, mas não sou feliz. Eu bebo, e minha vida está virada do avesso'. Eu comecei a pregar para o Índio. Uma semana depois, ele veio na igreja com a família dele, e o Sóbis veio. E o Índio me apresentou o Edinho. Do Edinho veio o Fabiano Eller, aquela velha guarda. E eu comecei a entrar nesse meio. O [Willian] Magrão foi outro que se converteu e a vida dele mudou. Do Índio também", conta o Pastor.

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Na quarentena, o treinamento com Bíblia

A necessidade de ficar em casa por conta da pandemia fez algumas coisas mudarem na relação entre a igreja e os jogadores: continuou 24 horas, mas se tornou mais 'on-line'. Se os templos estão mais vazios, agora predominam os cultos por meio de aplicativos. Fora isso, como há mais tempo de sobra, a Bíblia passou a ganhar uma atenção ainda maior dos atletas, que podem passar até quatro horas num dia.

"Todos os dias a gente acaba tendo estudo, para realmente nos aproximarmos de Cristo, principalmente nessa pandemia em que tudo parou. Antes, não deixávamos de fazer, mas fazíamos um pouco menos", diz Lincoln. O meia de 21 anos vestiu a camisa do Grêmio de 2015 a 2019 e hoje é jogador do Santa Clara, em terras portuguesas.

Ex-Grêmio e Cruzeiro e hoje na Portuguesa, Willian Magrão é mais um seguidor da Igreja Viva 24 Horas. E reforça as palavras de Lincoln sobre o período de quarentena. "As pessoas mais recentes que aceitaram Jesus têm essas aulas. E nós também, para relembrar. Se lermos quatro capítulos da Bíblia todos os dias, em um ano a lemos inteira."

Essa foi uma mensagem reforçada pelo pastor André aos jogadores. Na sua visão, era uma forma de sustentação a trabalhadores que estavam simplesmente privados daquilo que fizeram desde muito cedo. "Enquanto a gente houve história de jogador que fica deprimido, com a nossa turma não aconteceu isso. Nós nos ocupamos, eles treinam pelo aplicativo num determinado horário do dia, e, fora isso, a gente se reunia com o total de 15, 20, pra estudar".

O atleta também é gente, ele tem dificuldades, ele tem tristezas, ele convive com isso, com decepções e sucesso o tempo todo. Ele precisa ser cuidado. A área espiritual é uma área muito importante na vida de qualquer pessoa. A maioria dos atletas vem de uma família quase que desestruturada e que precisa de um apoio, precisa de um auxílio

Jorginho, ex-jogador e técnico

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Cobertura fora do clube

Fazer parte da Missão do Esporte não significa apenas participar de cultos e ser instruído sobre a Bíblia. De acordo com os jogadores, o pastor responsável se torna invariavelmente um amigo, um conselheiro e mostra qual o melhor caminho a ser seguido em determinadas situações. A decisão final, claro, cabe ao atleta. Mas ele está lá.

"Você sabe que tem uma cobertura, um suporte atrás de ti. A questão de valor, de dinheiro, se a pessoa não tem cabeça, a pessoa se perde, podemos dar vários exemplos. Eu já frequentei algumas igrejas, mas nunca nenhuma parou para me ensinar a Palavra. Eles realmente velam por nós. Param o tempo que for preciso para nos ensinar, atender uma chamada", diz Lincoln (foto abaixo).

"A gente fala com o Pastor quase todos os dias. Acontecem diversas coisas, mas não acabamos agindo da forma como agíamos antes de conhecer Cristo. Temos que entender que somos falhos e sujeitos aos erros a todo momento. Então a gente conversa para saber qual a melhor decisão a tomar... Ele não vai tomar a decisão por nós, a decisão é sempre nossa, mas ele vai nos orientar através da Escritura", acrescenta o jogador revelado pelo Grêmio.

Trocar de time de uma hora para outra, seja no Brasil ou pelo exterior, não é um problema para o jogador que faz parte da igreja. "A igreja somos nós, não o templo", dizem os frequentadores. Ainda assim, existem templos espalhados por quase todos Estados do Brasil e também alguns pelo exterior —Portugal em breve receberá um espaço físico.

"É difícil na nossa profissão... Eu já fui para o Japão, para o México. Mas nesse Ministério nós somos ensinados a levar a Palavra. Se não tem igreja no Japão, eu fazia os cultos lá", diz Willian Magão. "Tem os cultos nas nossas casas, e isso me chamou a atenção. E lá eu não sou o Willian Magrão jogador. Sou o Willian como qualquer um", conta.

O experiente atleta de 33 anos entende que esse modelo também dá mais consistência aos boleiros, além da sensação de segurança mencionada por Lincoln. "Hoje eu vou na igreja A, amanhã na B, depois na C... Imagina como vai ficar a sua cabeça? A partir do momento que nós fomos ensinados a tudo isso, estamos numa linha reta", diz.

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A expansão evangélica no Brasil

Dados estatísticos dão conta que o crescimento numérico do campo evangélico no Brasil é uma realidade, contrastando com a curva descendente dos católicos —que, ainda assim, segue sendo a grande maioria no país. A projeção é basicamente a mesma quando transpassada para o campo do esporte e do futebol.

"Em termos numéricos, o crescimento evangélico/pentecostal é considerável. Na atualidade, um entre cada cinco brasileiros são evangélicos. Contudo, a religião católica continua sendo a religião hegemônica dentre as quais os brasileiros se identificam. Sobre a década 2010-2020 não temos ainda dados definitivos [o IBGE ainda não divulgou os resultados]. Mas, no levantamento feito pelo Instituto Datafolha, do jornal Folha de S. Paulo em 2017, foi apontada a redução católica a 52%, em face do avanço evangélico a 32%", diz Claude Petrognani, Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Levantamento realizado por antropólogo durante a pesquisa de doutoramento sobre as religiões dos atletas das categorias de base do Internacional mostrou que existe uma porção quantitativamente significativa de evangélicos: dos 100 jogadores que responderam à pergunta "religião", 56 se declararam católicos, enquanto 34, evangélicos. Oito disseram não ter religião. Por fim, um jogador se disse devoto de umbanda e outro se assumiu espírita.

Cruzando os dados, ou seja, comparando os números da escala nacional, o que se pode ressaltar é um aumento ainda mais consistente dos evangélicos no que diz respeito ao ambiente esportivo [34 % contra o 22% da tendência nacional], um decrescimento dos católicos [56% contra o 65% tendência nacional]."

"O crescimento evangélico então é ainda mais considerável. Dito diferentemente, a propósito do futebol, particularmente em relação ao Internacional, um a cada três jogadores são evangélicos. Os católicos continuam sendo a maioria, mas, contudo, a sua hegemonia é posta em disputa para o avanço evangélico", analisa Claude, responsável por uma tese sobre as relações entre futebol e religião no Brasil intitulada "Religião e futebol no Brasil: um estudo antropológico do fechamento", de 2016.

De forma geral, defendo a ideia de que há um crescimento evangélico/neopentecostal no domínio do futebol que acompanha esse avanço nas diferentes esferas da vida pública brasileira: política, mídia, arquitetura, esporte. O campo esportivo é revelador: os 'futebolistas -profetas' manifestam publicamente e ostensivamente sua filiação religiosa durante os jogos, competições nacionais e internacionais, através de símbolos, gestos, rezas, imagens, testemunhos

Claude Petrognani, Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Paulo Giandulia/Folhapres

No começo, os Atletas de Cristo

Não dá pra falar sobre religião dentro do futebol sem recordar a Associação Atletas de Cristo, fundada oficialmente em 1984, em Belo Horizonte, por João Leite (ex-goleiro de Atlético-MG e seleção brasileira), Baltazar (ex-atacante de Palmeiras e seleção) e outros esportistas, com o objetivo, segundo seu site oficial, de "levar o atleta a Jesus Cristo a fim de levar o Evangelho ao mundo através do atleta". O grupo conquistou enorme relevância especialmente nas décadas de 80 e 90 e foi eleito como o ministério esportivo mais significativo do mundo no ano de 1992.

"Conheceram um grande sucesso nacional, mas também transnacional com a fixação de ministérios no exterior. O grupo possui o objetivo de recombinar práticas religiosas e atividades esportivas", afirma Claude Petrognani, antes de ressaltar:

Todavia é importante sublinhar que a aproximação entre religião e esporte realizada pelos Atletas de Cristo não é única e exclusiva. Os católicos também possuem suas redes e canais. Apesar disso, é inegável que no Brasil o que chama a atenção é a relação entre futebol e jogadores evangélicos."

O técnico Jorginho, ex-lateral da seleção brasileira, acompanhou esse movimento e se tornou um dos icônicos personagens evangélicos dentro do futebol. Ele se converteu em 1986 e diz que sua vida foi completamente transformada depois disso. De modo que não se esquiva em representar a classe. Pelo contrário.

"O Atletas de Cristo foi um ministério que teve uma explosão muito grande, durante anos, e formou, inclusive, muitos pastores. Muita gente que hoje conhece o evangelho foi através de Atletas de Cristo", diz o ex-atleta de Flamengo, Vasco, Bayern de Munique, entre outros grandes clubes.

Jorginho constata que hoje as igrejas como um todo dão assistência mais frequente aos atletas engajados. Para ele, não importando o grupo, o importante é "você ter a linguagem do atleta e entender que o atleta vive de uma forma diferente".

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Entregando Bíblias na Alemanha

Se houve um atleta que seguiu à risca a ideia de "fazer da profissão um meio de missão", esse alguém foi Jorginho. Membro da Igreja Batista Atitude no Rio de Janeiro, o ex-lateral direito da seleção iniciou seu 'trabalho' ainda no Brasil, jogando pelo Flamengo. Depois tratou de levar sua missão ao exterior, começando pela Alemanha, onde defendeu o Bayer Leverkusen de 1989 a 1992 e, depois, o Bayern de Munique de 1992 a 1994.

"Não era comum um atleta lá, por exemplo, falar sobre Deus. Eu cheguei na Alemanha, por exemplo, já me apresentando como cristão, porque eu sabia o quanto era difícil naquele país as pessoas falarem abertamente de Deus. Então até peguei a ideia do João Leite, que dava a Bíblia para o capitão adversário", recorda Jorginho.

Quando me tornei capitão do Bayer em 91 pra 92, distribuía as Bíblias. Foi um momento muito importante, muito interessante".

Apesar de não conhecer a Igreja Viva 24 Horas, Jorginho tem plena satisfação em falar sobre o trabalho que vem sendo feito por outras entidades 'discípulas' do Atletas de Cristo. "É maravilhoso as igrejas terem entendido o quanto é importante também cuidar dos atletas, terem um pastor 24 horas dando assistência", acrescenta. "Hoje, cada clube tem cristãos, evangélicos, católicos. Às vezes, ele não pode ir pra um culto, por exemplo, no domingo, então ele tem que ir dia de semana."

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Preconceito ainda existe, mas já foi muito maior

O cenário atual é mais apaziguador, mas ser evangélico e praticar a religião em preleções e vestiários, por exemplo, já foi algo não muito bem visto dentro do futebol. "Eu acho que aqueles que iniciaram o ministério passaram muitas dificuldades no início: o João Leite, Baltazar, depois veio o Silas... Naquela época existia um preconceito muito grande, mesmo que a gente, depois, tenha tido uma excelente aceitação nos anos 90", opina Jorginho.

Também treinador e hoje comentarista, Silas também foi por anos uma espécie de porta-voz da classe evangélica dentro do futebol. Ele compartilha a opinião sobre a resistência já enfrentada, mas vê um cenário bem mais compreensível nos dias de hoje.

"Vejo que, lá atrás, a Igreja Católica predominava muito. Então, tudo que era novidade em termos evangélicos era visto com outros olhos. Hoje não é assim. As igrejas evangélicas cresceram muito. A gente aprendeu sempre que não é isso que faz a diferença, ser evangélico ou católico. O que faz a diferença é o compromisso que a pessoa tem com Deus", declara.

Para Silas, porém, ainda há uma característica dos evangélicos que ainda pode despertar reticências dentro do ecossistema boleiro. Seja no vestiário, nos escritórios dos clubes ou nas arquibancadas, existe a ideia de que é preciso falar palavrão para impor respeito aos seus atletas. Os evangélicos, em tese, evitariam este hábito.

"Muita gente acha que técnico tem que falar palavrão na beira do campo. Eu não acho, sou totalmente contrário. Se você vir os caras lá na Europa... O Del Bosque foi campeão do mundo com a Espanha em 2010 sentado, de pernas cruzadas... O trabalho que ele fazia era durante a semana. O Cilinho, com a gente [no São Paulo], era assim . Na preleção ele falava pouco, durante o jogo também não falava muito", conta.

O rigor não está se você fala palavrão ou não, está se você faz cumprir aquilo que está combinado. A liderança você adquire com justiça. Não precisa falar palavrão, eu acho desnecessário. Os resultados vão te dar razão".

"Não só eu, o Jorge [Jorginho] também sofre com isso, mas até conhecerem a gente. Em alguns clubes que eu fui tinha isso: 'Ah, o cara é cristão, não sei o quê'. Depois que conhecem você... É reputação versus caráter. Com o tempo as coisas se colocam no lugar. Em todos os lugares em que joguei, e que o Jorginho jogou... Muitos jogadores falavam assim: 'Você eu respeito. O Jorginho eu respeito também. O Taffarel também. A seriedade do relacionamento com Deus é que faz a diferença. A curto, médio e longo prazo", acrescenta.

Cris Faga/Fox Press Photo/Estadão Conteúdo

Quem é minoria

O antropólogo Claude Petrognani tem uma visão um pouco diferente em relação ao preconceito religioso no futebol brasileiro: "Quem sofre não seriam os evangélicos, mas, os futebolistas afro-brasileiros. Dos 100 atletas aos quem submeti um questionário sobre suas afiliações religiosas, apenas um declarou ser da religião da Umbanda", lembrou.

"Este número não corresponde à realidade sociorreligiosa brasileira e pode ser analisado dentro desta tendência sócio-política dominante que recusa não só a respeitabilidade, mas também o próprio status de 'religião' às religiões afro-brasileiras, limitando assim sua liberdade de expressão".

Heuler Andrey/LatinContent via Getty Images

O trauma de 2010

Talvez o caso mais traumático na relação entre futebol e religião no Brasil tenha acontecido em 2010, com a Copa do Mundo da África do Sul. Jorginho foi auxiliar de Dunga na ocasião. A seleção havia chegado ao Mundial como forte candidata ao título, tendo sido campeã da Copa América em 2007 e a Copa das Confederações em 2009.

Neste torneio preparatório, a seleção ganhou manchetes por sua competitividade, mas também chamou atenção em outros países por uma cena marcante em sua comemoração. Jogadores e integrantes da comissão técnica se ajoelharam no centro do gramado para um momento de reza intensa. Alguns atletas vestiam camisetas com dizeres religiosos. A Fifa, depois, entrou em contato com a CBF para pedir "moderação", mas sem efetuar uma punição, uma vez que o ato havia acontecido já com o torneio oficialmente encerrado.

Uma repercussão negativa por parte dos dirigentes da CBF, porém, só foi manifestada após a queda contra a Holanda pelas quartas de final do Mundial. Aí vieram as críticas pela contratação de pessoas evangélicas pela comissão técnica, como o hoje treinador Marcelo Cabo, na época ainda desconhecido. Em entrevista na ocasião, o então auxiliar de Dunga chegou a afirmar que era perseguido. "Eu sou cristão, não sou bandido. Quero que minha fé seja respeitada", afirmou.

Hoje, Jorginho analisa a situação ocorrida com mais calma. Afirma que nunca usou de sua posição para promover o evangelho dentro do grupo. "Infelizmente as pessoas não conseguem compreender que, como um profissional, eu consigo separar. Eu não fico pregando quando vou fazer uma preleção. De forma nenhuma uso essa plataforma para poder levar as pessoas ao conhecimento do evangelho. Eu sou treinador, hoje. Na época, era auxiliar do Dunga. Então, nunca participei de reunião", diz.

"Sei que, quando se perde uma Copa do Mundo, as pessoas falam de tudo. Então, acho que já existe uma tolerância maior, até mesmo porque a gente tá vivendo num mundo em que a gente tem que ter muito cuidado, até toda essa questão de preconceito, racismo. No Brasil, existe, mas a gente sabe que há um respeito muito maior, principalmente dentro do futebol. O carinho, o respeito, o amor que existe entre os atletas, independente de cor, raça, credo. Existe um respeito muito grande", opina.

Claude Petrognani, por sua vez, encara o episódio da Copa na África como uma demonstração de laicidade, e não tanto de preconceito para com os evangélicos.
"Quando Jorginho se apela à liberdade de religião está apresentando uma interpretação da laicidade que coincidiria com a laicidade à brasileira. Há, nesse sentido, um embate antropológico", afirma.

"O discurso é complexo e contraditório, porém poderia ser resumido assim: enquanto as instituições esportivas procuram limitar as manifestações de fé dos futebolistas brasileiros, apresentando uma interpretação da laicidade mais restritiva, o princípio de neutralidade, os evangélicos, como segmento afetado, respondem, apelando-se a uma outra interpretação da laicidade, aquela brasileira, onde é comum a manifestação pública das pertenças religiosas nos espaços públicos institucionais", completa.

Mike Hewitt - FIFA/FIFA via Getty Images Mike Hewitt - FIFA/FIFA via Getty Images
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"Eu não era fiel, tinha um irmão alcoólatra e outro drogado"

Depoimento de Jorginho

"Eu posso falar por mim, com a vida que tenho com a minha esposa. Na nossa época de namorados, eu já tinha mais de quatro anos de namoro e eu não era fiel à minha namorada. Eu sabia que isso lá na frente ia ter uma consequência. Eu queria uma mudança, mas eu não tinha forças. Até que o meu irmão, que veio a se converter também, falou pra mim do amor de Deus e que Ele podia me dar a força que eu precisava pra ser fiel à Cristina."

"Pra quem não conseguia ficar uma semana sem sair com outra menina, foi passando uma semana, duas, três, quatro, meses... Aí eu tomei uma decisão, realmente, de me converter e de seguir a Cristo, de, realmente, ter um relacionamento com Deus."

"É claro que a gente tem atletas aí que não são cristãos e que são completamente focados, determinados, sérios, mas as possibilidades que um atleta tem vindo de uma família desestruturada, uma família quebrada como a minha, que tinha um irmão alcoólatra, o outro irmão viciado e graças a Deus hoje os dois tão muito bem... Um é pastor, o outro é taxista e tem uma vida independente, que ele corre atrás. O que era drogado está completamente livre das drogas e tem uma vida boa, hoje. Então, isso a gente conquistou com uma transformação de vida vinda de Deus.

Aquilo que aconteceu na minha vida, lá atrás, da minha conversão, em 1986, está refletindo na minha vida hoje. Enquanto estou falando contigo, estava com a minha esposa aqui do meu lado, casado há 32 anos, há 38 anos com a minha esposa e, graças a Deus, com uma vida equilibrada, tenho dois netos, quatro filhos.

Muitos daqueles que tiravam onda com a nossa cara no passado —que, como falei, nos anos 80 e 90, tiravam muito sarro da gente, tinham um preconceito muito grande— hoje estão falidos, sem família e sozinhos. Isso é muito triste. A gente não quer que isso aconteça com essas pessoas.

Na realidade, o grande problema é que a gente vive num mundo em que as pessoas têm muito interesse. Então, todo mundo acha que vai ser por interesse. Não tem interesse. Deus é dono de tudo. Deus não precisa de nada meu. Na realidade, ele que me dá o ar que eu respiro, me dá saúde e, claro, eu tenho que cuidar disso, cuidar da saúde, mas o ar tá aqui, as coisas lindas desse mundo estão aqui e a gente tem que saber aproveitar."

Reprodução/Facebook

O fechamento no vestiário

Ter um jogador focado em seu trabalho e longe de problemas é o sonho de todo clube. E é claro, isso independe de sua crença ou ligação com uma igreja.

Dito isso, a conversão, como analisa Roger Machado, técnico do Bahia, acaba sendo um dos diversos caminhos que o jogador pode seguir para estar bem física e mentalmente e, assim, ajudar o seu time em campo da melhor forma.

"Eu acho que cumpre uma função bem importante, de um apoio espiritual, de acolhimento. Cada um busca isso da forma que entende que seja melhor e sinta mais à vontade. Eu tenho grande apreço por esse acolhimento, esse apoio espiritual que há através da igreja, nenhum tipo de preconceito. Eu circulo por tudo. Quando eu era jogador, me chamavam para ir aos cultos, e eu ia, me chamavam para a igreja e eu ia, eu sempre circulei bem. Tenho a minha fé, a minha religiosidade, mas acredito muito que cada um busca como deseja", diz. "A igreja e a ida ao culto tiram o jogador de outras coisas, é a mais pura verdade", acrescenta.

Claude Petrognani reconhece a importância do ambiente religioso dentro do futebol, até com um significado próprio ao meio. que tudo isso tem o poder de elevar o desempenho de uma equipe, de novo não importando a fé processada.

"É preciso relativizar o impacto evangélico/neopentecostal no futebol brasileiro e defender o caráter sincrético [a fusão de diferentes religiões] do futebol brasileiro cuja aberta expressão é o chamado 'fechamento'. O 'fechamento' é uma prática comum entre os jogadores brasileiros, realizada no interior do vestiário, mas não só, antes das partidas, que exige uma performance corporal própria dos jogadores e a reza coletiva, estrondosa e em uníssono, do Pai Nosso católico", destaca. "Esta prática reveste-se de intensa densidade simbólica uma vez que ela galvaniza e condensa as principais mentalidades religiosas que compõem o pluralismo religioso brasileiro."

"Assim também o vestiário de um time de futebol brasileiro é sincrético. Dentro dele é comum existir uma espécie de altar, ou, ao menos, um local onde se pode encontrar imagens de santos católicos e também, em alguns casos, de entidades do panteão afro-religioso, além da Bíblia. Portanto, nesse sentido, as divergências e pertencimentos religiosos dos jogadores não atrapalham, mas, ao contrário, potencializam a performance do time", finaliza.

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