Mais que um estádio

Usado hoje para salvar vidas, Pacaembu faz 80 anos e entra na memória afetiva de São Paulo

Adriano Wilkson, Diego Salgado e Maria Victoria Poli Do UOL, em São Paulo Imagem de satélite (c) 2020 Maxar Technologies/Getty Images

No dia 27 de abril de 1940 a prefeitura de São Paulo inaugurou o Pacaembu. Com capacidade para 70 mil pessoas, era, então, o maior estádio de futebol da América Latina. O mundo estava em meio a uma guerra e o governo do Brasil anunciava uma obra monumental para acelerar a modernização da vida urbana no país.

Depois de décadas sediando jogos dos principais times da cidade, o octogenário estádio virou palco da batalha contra a maior ameaça sanitária do século. Como hospital de campanha montado às pressas, o Pacaembu agora recebe pacientes acometidos da covid-19. É mais uma façanha do conjunto de aço e concreto que, mais que um estádio, é um símbolo da relação afetuosa entre o paulistano e sua cidade.

Imagem de satélite (c) 2020 Maxar Technologies/Getty Images
Acervo da Biblioteca da FAU/USP Acervo da Biblioteca da FAU/USP

O entorno do estádio era um grande descampado quando foi adquirido pelos ingleses da Companhia City nos anos de 1910. Quinze anos antes da inauguração, lotes de terra da região começaram a ser comercializados pela empresa, que faria ali um bairro planejado.

Um dos primeiros terrenos do Pacaembu foi vendido a Desidério Farkas, um imigrante húngaro. Aos seis anos, seu filho, Thomaz Farkas, deu início a uma estreita relação com o bairro, intensificada com a inauguração do estádio, em 1940.

"Ali éramos índios, caubóis, bandidos e xerifes, com armas de pau, cabo de vassouras etc. A maioria tinha bicicleta; descíamos a [rua] Itápolis até o ponto de encontro, que era a biquinha onde hoje está a piscina do Estádio. Era divertido e lindo."
Thomaz Farkas

O olhar de Farkas sobre o Pacaembu, que seria a maior praça esportiva da cidade por 20 anos, até a construção do Morumbi, mostram muito mais que um estádio. Em suas fotos, aparecem crianças chutando pedaços de pano entre as colunas do portão principal ou penduradas em árvores para ver jogos; homens vestindo ternos na arquibancada ou chapéus feitos de jornal; mulheres de longos vestidos e vendedores de frutas dentro entre as arquibancadas.

Dmitri Kessel/The LIFE Picture Collection via Getty Images Dmitri Kessel/The LIFE Picture Collection via Getty Images

Kiko Farkas, um dos filhos de Thomaz, é uma dessas crianças que cresceram se divertindo no Pacaembu. Uma imagem banal não saiu de sua cabeça. "Antigamente não havia assentos e as pessoas usavam jornais para sentar sobre o concreto", conta ele. "Depois do jogo, todo mundo saía recolhendo esses jornais e a gente fazia pequenas fogueiras na arquibancada."

Sergio Jorge/Divulgação

Em seus 80 anos, o Pacaembu foi palco de muitas histórias, algumas de dor, outras de amor.

O estádio foi o lugar onde Silvio Moredo, mascote da Portuguesa, ganhou a camisa do melhor jogador do mundo. E onde a irmã dele ganhou um marido. O conto começou em 1972, quando Silvio assistiu a um Portuguesa 2 x 0 Santos no túnel que leva aos vestiários.

Encantado, o menino ousou depois do jogo: "Corri para o Pelé e pedi a camisa dele", lembra. Mas Pelé o ignorou. Por sorte, o goleiro da Portuguesa, Miguel, que havia fechado o gol, resolveu interceder. O goleiro vinha paquerando a irmã de Silvio. E conseguiu o objeto real para o garoto. Anos depois, os dois se casariam. E a camisa dez do Santos, guardada até hoje como uma relíquia, mantém a lembrança de um tempo em que o rei do futebol caminhava entre nós.

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Esta é a história de dor, narrada por Juca Kfouri no prefácio do livro "Pacaembu", de Thomaz Farkas (Editora DBA). Em 1964, o Corinthians tomava mais um sacode do Santos e Juca estava lá:

"O menino de catorze anos, corintiano do fundo do coração, permanece desolado nas gerais, vendo mais um ano ir-se embora sem título e sem vitória sobre o poderoso Santos de Pelé e Cia. Eis que de repente, não mais que de repente, como disse o poeta, um cruzamento vem da ponta esquerda para a altura da meia-lua da área corintiana.

De bate-pronto, sem pensar nem pestanejar, Pelé enche o pé direito, e a bola estufa as redes de Heitor, no ângulo, inapelável, um gol de fábula, digno de um rei. O menino se levanta, instintivamente, e aplaude. E leva um par de cascudos e uma chuva de bagaços de laranja nas costas.

'Traidor', ele ouve, entre outras ofensas bem menos publicáveis.

Foi a primeira e única vez que apanhei num campo de futebol."

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Placas metálicas logo depois do portão principal lembram os gols mais bonitos já feitos no estádio, como o de um atacante chamado Nilson, do Corinthians, em uma noite de 1992. E se a plástica daquele movimento se perdeu na densidade do tempo, ela não sai da memória de gente como o jornalista Chico Lang, que estava na tribuna de imprensa quando Nilson assinou sua obra de arte.

"Numa sorte de ver aquele gol bonito, falei que iria fazer uma loucura. Coloquei a placa porque naquela época todo mundo achava que o futebol brasileiro era mal jogado. Mas como tem craque aqui! Esse gol do Nilson me despertou essa revolta!"

Leandro Moraes/BOL Leandro Moraes/BOL

Se você fechar os olhos em qualquer estádio de futebol num dia de jogo, vai ouvir a torcida cantando, vai sentir o cheiro de um lanche característico, vai saber quando os jogadores entrarem em campo ou quando o árbitro iniciar a partida só pelo movimento e pelos sons de tudo ao seu redor. Mas em apenas um estádio precisamos ouvir tão pouco para nos sentir parte do espetáculo prestes a começar.

"Sejam bem-vindos ao seu, ao meu, ao nosso Pacaembu!"

Edson Sorriso é o dono da voz que faz a saudação e os anúncios oficiais do Pacaembu. Sambista da Vai-Vai, acabou virando marca registrada do estádio na última década ao falar com o público para anunciar substituições e cartões.

Um jogo em especial o marcou. Era a Libertadores de 2013. "Aquele jogo em que o Corinthians foi obrigado a jogar sem torcida. Quatro advogados ganharam uma liminar e só havia eles no estádio, justamente do lado direito da minha cabine", afirma Edson.

E ri ao lembrar que, em meio ao vazio das arquibancadas, dirigia-se diretamente aos quatro torcedores sempre que falava no microfone, criando uma intimidade incomum para jogos de futebol.

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Acervo da Biblioteca da FAU/USP

Assinado pelo Escritório Ramos de Azevedo, o projeto arquitetônico do estádio se valeu do estilo Art Déco, em ascensão nas primeiras décadas do século 20 e marcado por marquises, pilastras e colunas.

Em 1969, a capacidade do Pacaembu foi estendida com a construção do 'tobogã', imenso bloco de arquibancada que acomoda 18 mil pessoas. A arquibancada provocou o desaparecimento da concha acústica, que fazia parte do projeto original e foi palco de apresentações musicais ao longo dos anos.

Uma réplica da estátua de David, do italiano Michelangelo, também foi retirada de trás do gol. A obra, com cinco metros de altura, passou a ocupar um espaço na Praça Charles Miller, na entrada do estádio. Em 1974, entretanto, foi levada ao bairro do Tatuapé, à frente do Ceret (Centro Esportivo, Recreativo e Educativo do Trabalhador), onde está localizada até hoje.

Acervo da Biblioteca da FAU/USP Acervo da Biblioteca da FAU/USP

A inauguração do Pacaembu foi marcada por uma festa que "sem precedentes na história do esporte do país", segundo relato da "Folha da Manhã" do dia seguinte. O estádio era o maior da América Latina, superando São Januário, no Rio. A inauguração foi marcada por um desfile com a presença de mais de 100 mil pessoas, entre atletas no gramado e público na assistência.

O Fluminense, dono do primeiro estádio do país, doou uma bandeira brasileira, carregada por corredores que se revezaram entre a então capital da República e São Paulo. Uma pira olímpica foi acesa, enquanto bandeiras brasileiras eram atiradas sobre a plateia.

A ditadura Vargas havia abolido as bandeiras estaduais. Para lembrar ao gaúcho que o estádio era uma obra de paulistas, o público local aplaudiu mais fortemente a delegação do São Paulo FC, que trazia em seu uniforme as cores do estado. A partir daí o clube passou a ser conhecido como "o mais querido".

Leandro Moraes/BOL Leandro Moraes/BOL

A inauguração do Pacaembu, há exatamente 80 anos, teve a presença de cerca de 100 mil pessoas, entre elas o ditador Getúlio Vargas, que governava o país com mãos de ferro, e Josefina Lang, uma estudante que naquela tarde usou suas mãos de outra forma.

Em 1940, o mundo estava à beira da Segunda Guerra Mundial, e Josefina foi uma das alunas do grupo escolar que abriram as gaiolas para as pombas brancas da paz sobrevoarem o estádio. "Sempre tive carinho pelo Pacaembu porque ela me contava essas histórias", lembra seu filho, Chico Lang.

Marcello Zambrana/AGIF Marcello Zambrana/AGIF

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