Pai de menina

A história de seis homens que moldaram suas vidas para investir no sonho das filhas, hoje na Copa do Mundo

Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Arquivo pessoal

Enquanto João acordava às madrugadas com a filhinha de pé no berço, desferindo chutes e rindo sozinha, Waldemar trabalhava na roça e sequer imaginava que, um dia, seria pai de menina. Enquanto Dino deixava a periferia de São Luís, no Maranhão, para trabalhar em São Paulo, o rebento ficava sob cuidado dos avós. A ideia era esperar os pais se estruturarem no Sudeste, se firmarem num emprego, para que não houvesse mais separação.

Enquanto Romano deixava os Estados Unidos de volta para o Brasil, carregando a menina num braço e a casa no outro, Lekão montava na moto, botava a filhinha na garupa e percorria mil quilômetros por semana para que ela pudesse jogar bola. Os anos se cruzam. As histórias se cruzam. Esses homens se cruzam décadas depois, e compartilham da mesma alegria à mesma ansiedade. Eles são pais de jogadoras da seleção brasileira, que estão na Austrália para a Copa do Mundo feminina.

O UOL conta a história de seis jogadoras da seleção na perspectiva de seus pais, que abriram mão de rotinas e despistaram chefes para investir no sonho das filhas: jogar bola num país em que o futebol feminino permanece desvalorizado.

Waldemar é o homem que chora quando Ana Vitória ouve seu nome saindo da boca de Pia Sundhage, no anúncio da lista de convocadas para representar o Brasil em 2023. João é a figura que chacoalha Andressa Alves quando ela pensa em desistir do futebol.

Dino é testemunha dos dizeres da filha Ary, que, aos 10 anos, prometeu ao pai que um dia jogaria na seleção brasileira com Marta. Romano dá colo à filha Angelina desde quando ela recebeu sua primeira negativa dentro do futebol.

Lekão grita a cada lance de Lauren, como gritava aos amigos do trabalho quando a moto em que ele levava a filha para os treinos quebrava. Os amigos socorriam, e Lauren chegava a tempo. Edilson vê sua cidade, no interior do Rio Grande do Norte, decretar ponto facultativo em dias de jogos da filha, Antonia.

Eles não são só pais de menina. São os pais das meninas da seleção brasileira.

Arquivo Pessoal

Jogadoras vibram com convocação para a Copa

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'Angelina nasceu pronta'

Angelina foi convocada como meio-campista suplente, o que não amenizou a ansiedade e o orgulho de Romano, seu pai. Poucos dias antes de a Copa do Mundo começar, entretanto, Nycole sofreu uma lesão e foi cortada. Angelina foi inserida oficialmente ao elenco.

Meia do OL Reign, de Seattle, Angelina tem 23 anos — até os seis morou em Nova Jérsei, onde nasceu. Os pais voltaram para o Brasil em 2006, para trabalhar nos negócios escolares da família, mas Angelina não desencanou do futebol. Desde menina, pirava no esporte, paixão muito incentivada pelo pai.

Destaque da escola, Angelina foi notada por um olheiro do Vasco e levada para fazer um teste no sub-15 do clube fluminense. "Confesso que fiquei receoso, achei que ela não iria se encaixar. As meninas eram mais velhas, Angelina tinha 12 anos", conta Romano. Mesmo inseguro, com medo de uma possível negativa por parte do clube, o pai de Angelina a acompanhou na peneira — e se surpreendeu com o talento da filha.

Enquanto atleta do Vasco, Romano era o principal aliado da filha. "Era eu quem a levava aos treinos, três vezes por semana. A Angelina participou de todos os campeonatos, nós rodamos bastante. Eu a acompanhava por todo lado, até ser contratada pelo Santos. Quando isso aconteceu, eu perdi um pouco desse espaço na vida dela. Ela começou a ser independente, estava em outro estado, já não precisava de mim tão perto", relembra.

Do Santos, Angelina foi para o São Paulo e jogou pelo Palmeiras antes de voltar para os Estados Unidos — dessa vez, como atleta do time de Seattle.

"Hoje, ela tem um agente e eu a acompanho de longe. Mas fui eu o primeiro agente da Angelina, de corpo e alma. Jogávamos bola juntos. Eu ficava grudado na tela, sem piscar os olhos, quando ela estava em campo. Foi bom ter estado perto porque, principalmente no começo, ela precisou de apoio emocional em vários momentos, e contou comigo. Conseguimos, juntos, que ela se recuperasse e continuasse firme sempre que a insegurança batia".

Ainda parte do elenco sub-15 do Vasco, Angelina acompanhava as convocações para mudança de categoria, e tinha expectativas de subir para o sub-17 aos 15 anos. A cada seletiva que terminava sem seu nome entre as jogadoras que subiriam, o choro vinha, e Angelina se aninhava no colo do pai. "Me lembro de uma dessas vezes, quando ela ouviu do técnico que precisava se esforçar mais para subir. Foi uma pancada na cabeça da minha filha. Do clube até nossa casa, demorávamos 2h30. Foi o tempo que precisei para acolhê-la e aconselhá-la", diz Romano.

"Eu era só um pai falando sobre a vida e sobre fé, não tinha conhecimento técnico. Mas, de algum modo, a acalmava. Dois dias depois, ela foi convocada para a seleção brasileira sub-15. Dali, foi uma alegria. Quando ela voltou a treinar, no dia seguinte, entrou diferente no Vasco. Foi vista com outros olhos, e é merecimento. Ela se anulou, abandonou a adolescência em prol do futebol."

Romano explicou à filha adolescente que dividir o coração era impossível. Perguntou a ela sobre o que mais amava, que era quem definiria seu futuro a partir de então. Ele dizia que, se fosse o futebol o objeto desse amor, o foco da filha deveria ser totalmente o esporte. Que, se fosse outra coisa, não teria problema. Ela só precisaria definir. E Angelina definiu. Abriu mão da diversão que a idade pedia para se dedicar ao futebol.

"Quando Angelina está de férias comigo, acorda cedo para treinar. Pode estar frio, calor, o que for. Ela está de férias, mas treina todos os dias. Tem a disciplina de uma atleta de ponta, e deve ser reconhecida por isso. Ela nasceu pronta. Quem a viu jogar desde o início, como eu vi, sabe quão excepcional ela é. Eu até posso ter influenciado de alguma forma, mas ela nasceu com essa paixão."

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'Ana Vitória, o amor da minha vida'

Waldemar descreve a sensação de ouvir o nome da filha, Ana Vitória, entre as convocadas por Pia Sundhage como algo 'melhor que ganhar na Mega Sena'. O amor da filhinha pelo futebol vem desde cedo, quando aos 3 anos acordava o pai com o barulho dos chutes na bola atingindo a parede do quarto. Era o futebol, também, o programa preferido de Ana Vitória, na rua e na televisão. Waldemar percebeu que a filha não só gostava do esporte, mas também compreendia detalhes técnicos que passavam despercebidos até por ele.

O pai, então, matriculou a filha em uma escolinha de futebol, onde Ana Vitória só podia jogar com os meninos pela ausência de uma categoria feminina. Isso se manteve quando Waldemar levou a filha até o clube da cidade, o Rondonópolis, para que tentasse vaga em uma peneira. Ana Vitória não faltava. Sua presença nos treinos era certa, e a dedicação deu espaço para que ela fizesse parte das categorias de base masculinas daquele clube.

"Eu acompanhava a Ana em todas as competições, a gente rodava o Mato Grosso inteiro. Quando ela completou 12 anos, perguntei: 'Filhinha, você quer ganhar a vida jogando futebol?'. Ela disse que queria. Então, falei: 'Ok. O pai não vai deixar você faltar em nenhum treino; eu vou te levar em todos os treinos e, quando você fizer 15 anos, vou te levar até a CBF para ver se eles gostam de você. Se não gostarem, te levo para os Estados Unidos'", conta Waldemar.

Quando Ana completou 13 anos, entretanto, a então técnica da seleção brasileira feminina Emily Lima esteve em Cuiabá para avaliar atletas para o sub-17. Emily selecionou apenas Ana Vitória em toda a cidade naquele dia, e, aos 13 anos, ela se firmou como parte da categoria sub-17 do Brasil.

Ana Vitória, conta Waldemar, dividiu o Rondonópolis, dos meninos, com a amarelinha das meninas. Treinou na base do clube mato-grossense até os 16 anos, quando foi apresentada a Arthur Elias, treinador do Corinthians, que mandou um contundente 'a guria fica' após ver as habilidades de Ana Vitória. O Corinthians, no entanto, já havia fechado o orçamento daquele ano e não tinha como contratar a atleta pagando mais que R$ 500.

"Ela foi. Morou com o irmão em São Paulo, ele levava a Ana para os treinos todos os dias. No ano seguinte, já foi regulamentado o salário, e ela ficou dois anos no Corinthians, até vir a proposta do Benfica", conta o pai, que se programava para visitar a filha em Portugal duas vezes ao ano.

Ana Vitória foi a única menina de uma base masculina e não vivenciou qualquer tipo de preconceito. Pelo contrário. Fez laços e grandes amigos, e na única vez em que um torneio impediu que a menina jogasse contra meninos, ela não entendeu o motivo. Waldemar, então, precisou explicar para a filha pela primeira vez o que era a desigualdade de um mundo machista.

"Tomei o homem que organizou esse torneio como inimigo. Ele proibiu que a Ana jogasse por ela ser menina. Comprei até uma máquina fotográfica para tirar fotos da Ana naquele torneio, e ele não a deixou entrar em campo. Viajamos 400 quilômetros para esse campeonato, mas os organizadores foram contundentes: se ela entrasse, o time estaria desclassificado. Ela era novinha, não entendeu o que estava acontecendo. Ficou triste por não poder jogar. Eu disse 'deixa, filha. A resposta a gente dá crescendo na vida. Ele vai engolir seco o que fez com a gente'".

Waldemar dormia com a filha nos alojamentos das competições. Segurava a filha quando rolava briga em campo e ela queria entrar no meio — aconteceu em um torneio em Três Lagoas (MG) contra um time da Bolívia. "Foi uma briga generalizada, e ela queria porque queria entrar", relembra o pai. Anos depois, quando Ana Vitória foi convocada para a Copa do Mundo de 2023, era o mesmo Waldemar a estar ao lado dela. Ela pulou no colo do pai, e o choro veio, como veio quando ele deu esta entrevista ao UOL.

Líder nata, diz o pai sobre a filha, e exemplifica com o que já ouviu: "Ô volante, cê tá passando os meias. Segura. Todo mundo respeitava", diz Waldemar. Ana vencia os amigos no baralho. Fora de campo, mantinha a determinação que levava para dentro: sempre foi boa aluna, inteligente e perspicaz, ótima em matemática, mas com o gênio forte.

Ana tem dois irmãos, ambos longe do futebol, para a surpresa (grata) de Waldemar — que, por ser fanático pelo esporte, achava inconscientemente que seria um dos meninos a seguir seu caminho. "Gosto de ir ao estádio com a Ana porque ela faz comentários pertinentes sobre coisas que nem eu percebo. É minha companheira de estádio desde pequena".

"Mas quando ela perde, eu fico mal. Quando a Pia começou a falar os nomes, fechei os olhos. Estava rezando, na expectativa. Quando me sinto assim, tento me apegar em algo transcendente. Não perco os jogos dela. Sempre dou um jeito de assistir. Minha filha, Ana Vitória, é o amor da minha vida."

Na garupa, Lauren

Céu desabando, calor faz do respirar, cansativo, ou frio de congelar os dedos: nenhuma dessas adversidades impedia Lauren Leal de treinar. Ela era atleta do Centro Olímpico, e tinha como seu maior aliado o papai Lekão, apelido carinhoso de Erymar Alexandre. O percurso era longo, tinha cem quilômetros; começava em Votorantim, no interior de São Paulo, rumo à capital.

Pai e filha fizeram o percurso pela Rodovia Castello Branco por cinco anos, entre situações adversas que Lekão tinha de driblar para que o sonho da filha — que também já foi seu sonho — saísse do papel. Ele não tinha grana para fazer esse percurso duas vezes ao dia de carro, então botava a zagueira da seleção brasileira na garupa e pegava a estrada.

Ao UOL, Lekão viu os olhos marejarem ao lembrar do esforço feito para investir na filha. Mas o choro de verdade caiu quando citou que o esforço de Lauren foi imensamente maior, e que hoje ela colhe os frutos que plantou.

"Eu tinha o sonho de ser jogador de futebol, mas nunca forcei a Lauren a nada. Desde pequenininha ela queria jogar, queria se divertir e sabia se divertir. A gente achava que seria só por diversão, e incentivava", conta.

Mas o pai percebeu que a menina não só levava jeito, como queria viver do futebol. Foi quando Lauren começou na escolinha de futebol de Votorantim, aos 9 anos. Uma escolinha de futebol masculino. Foram dois anos na escola até Lekão descobrir o Centro Olímpico, focado no futebol feminino. Lauren quis tentar uma peneira por lá, e passou. Foi quando começou a saga de pai e filha, em cima de uma moto, a fim de realizar o sonho que ambos tinham.

"Às vezes, minha moto quebrava, e colegas do trabalho iam até mim, pegavam minha moto quebrada e botavam num guincho. Eu pegava a moto de um deles e corria para que a Lauren não perdesse os treinos. Me emociona ver essa dedicação. Ela participou de diversos jogos pela seleção sub-17, e eu e minha esposa indo atrás, de carro, pela América do Sul. Já chegamos a viajar 17 horas para vê-la jogar, e nesse dia especificamente ela não entrou em campo."

No ano passado, entretanto, o pai acompanhou a filha em jogos pela seleção sub-20 e, aí sim, a emoção de ver a menininha em campo foi possível: "Ela comprou as passagens, eu estava de férias do trabalho. Catei minha mochilinha, uma sacola de roupa e fui. Quando ela entrou em campo e tocou o hino, nossa. Foi uma emoção tamanha. Vê-la perfilada antes do jogo oficial é indescritível. Passa um filme na cabeça."

Agora, Lauren está na Austrália aos 20 anos. Ao pai, sobra orgulho.

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Andressa e os chutes do berço

Os primeiros chutes de Andressa Alves aconteceram enquanto ela, com 2 anos, segurava nas bordas do berço e gritava pelos pais. A bebê Andressa chutava com força e balançava a cama para que todo mundo acordasse junto com ela, às 4h da manhã, segundo o pai, João.

À medida que a idade passava, os chutes ganharam forma e equilíbrio, e, aos 4 anos, a meia-atacante deu seus primeiros chutes em um campinho. Natural de Taipas, na periferia de São Paulo, Andressa arrancava a cabeça das bonecas da irmã e batia pra lá e pra cá. Em casa, na rua, no campo.

O pai levava a filhinha até um terreno baldio próximo à casa em que moravam, e foi ali que o futebol de Andressa Alves começou a se desenrolar. "Se chamasse para jogar bola, ela largava o que estivesse fazendo e corria. Até mesmo se estivesse comendo, deixava o prato e ia jogar bola", conta.

Mesmo menina, Andressa jogava com homens de 18 a 20 anos, e o pai incentivava. Ele tinha medo de a filha se machucar, pela idade avançada dos rapazes em comparação à dela, mas evitava brecar.

"Um dia, Andressa voltou para casa com um bilhetinho da professora pedindo que a mãe dela e eu fôssemos até a escola. Pensei 'ai, ai, ai'. Fomos. Ouvimos que não era nada grave, que Andressa era boa aluna, mas que tinha um defeito: se sentava beirando a janela e era só ouvir barulho de bola na quadra que o mundo acabava. Esquecia a aula, virava os olhos para a quadra e não havia quem recuperasse a atenção da menina. A diretora sugeriu, então, que colocássemos Andressa numa escolinha", conta.

João, com a ajuda do professor de educação física da filha, descobriu uma peneira no Juventus da Mooca. "Pedi liberação no trabalho para ir com ela. Quando vi o tamanho daquele campo, achei que ela não iria passar. Nós jogávamos num campinho pequeno, era muito diferente. Mas confiei. O professor a instruiu, pediu que fizesse o que sabia sem exagerar. Ao fim do treino, ela poderia fazer uma gracinha. Mas só quando estivesse acabando", relembra João. "Minha filha deu uns toques na bola, uns lançamentos precisos. Nem eu acreditava. Deixou a menina na cara do gol, foi muito bem. E, ao fim, fez as gracinhas que quase acabaram em gol. Aprovada".

Andressa Alves acorda cedo desde que nasceu — vide os chutes às 4h da manhã. No dia da peneira, madrugou de ansiedade, foi um alvoroço matinal. A peneira no Juventus, aos 17 anos, foi a primeira vitória de uma carreira que se solidificaria. João autorizou que a filha morasse no alojamento do clube, onde treinava e estudava. Nas folgas, voltava para casa. "Quase tirei ela de lá de tanta saudade, mas como era o sonho da minha filha, segurei".

João abraçou a filha quando, no meio do percurso, ela pensou em desistir do futebol. Disse a Andressa que ela já tinha percorrido uma caminhada importante e que não era momento de desistir. Ela confiou no pai.

"Não imaginava que minha filha chegaria à seleção, mas quando fui percebendo a evolução dela, foi ficando tudo mais claro. Sempre a acompanhei, e vou ficar acordado para acompanhar a Copa do Mundo. Na convocação, quase morri. Ficou todo mundo nervoso. Depois que a Pia falou o nome dela, não lembro de mais nada. O mundo parou."

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Ary Borges, uma despedida e um reencontro

O desencontro entre pai e filha foi breve, doloroso e necessário quando a meia da seleção brasileira Ary Borges tinha 3 anos. Dino teve de deixar São Luís, no Maranhão, em busca de oportunidades de trabalho no Sudeste. Ary ficou com os avós até que os pais se firmassem em São Paulo, e logo foi levada ao encontro deles.

No reencontro, Dino conheceu uma nova menina. Mais madura, seis anos mais velha e com uma paixão que ele não conhecia: o futebol. Um dia, ao voltar do trabalho, se deparou com a filha na rua de casa jogando bola. "Percebi que ela tinha um domínio, que levava jeito. Então, decidi procurar uma escolinha para ela. Achei a escolinha do Santos, que não era tão específica para futebol feminino, mas tinha algumas meninas que jogavam ali".

O horário das meninas era à tarde, mas Dino não viu muito investimento ali. Decidiu colocar a filha para treinar com os meninos, e ela abraçou a ideia. "Disse à minha filha que ela treinaria aos sábados de manhã, no horário dos meninos. Levava, buscava, e pagava R$ 50 mensais. Até que o pai descobriu o Centro Olímpico. Ficou no clube focado em futebol feminino dos 15 aos 17 anos.

"Ela precisou aprender a ser independente. A gente sentava, em casa, e eu ensinava o trajeto do ônibus que ela precisaria pegar, mostrava os pontos de referência. Dizia 'filha, não conversa com ninguém, senta ao lado do cobrador, que você fica mais segura'. Eu não podia acompanhá-la nos campeonatos, mas deixava com ela o mapa do metrô. Ia ensinando, e ela ia".

"Quando ela chegava em casa, a gente conversava. Ela me contava sobre como tinha sido o treino, me dava detalhes do dia dela. Era um momento especial. No dia da convocação para a Copa do Mundo, estávamos juntos em casa. Eu sentia que ela seria convocada, mas sempre vinha aquela pulguinha atrás da orelha, um medo de não acontecer. São muitas atletas boas. A Pia começou com zagueira, lateral, meia? A ordem alfabética começando pelo A começou a se encaminhar para o fim, e aquela tensão. Até que veio o nome da Ariadina, foi um misto de emoção e alívio."

"Eu imaginava que ela chegaria à seleção. Quando tinha 9 anos, antes de ir para a escolinha do Santos, minha filha batia bola na rua e dizia que, um dia, jogaria com a Marta na seleção brasileira. Eu sempre concordei. Ela colocou isso no coração e nunca abriu mão. Foi campeã da Copa América e, agora, vai disputar uma Copa do Mundo. Minha menininha profetizou seu futuro em 2009 e hoje está onde sempre sonhou."

Dino é contundente aos chefes em dias de jogos da filha. Ele trabalha com móveis planejados, e pede folga sempre que a menina entra em campo. O ritual para assistir à filha, ele conta, envolve ficar sozinho e concentrado. "Na Copa, eu vou parar, não tem como. Não consigo trabalhar com tanta ansiedade. Desculpa aí, patrão, mas não vou trabalhar não."

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Ronnycleide para o papai, Antonia para o Brasil

"Ah, a história da Ronnycleide é muito comprida? Digo, da Antonia. Aqui, a gente só a conhece como Ronnycleide". A fala mansa de Edilson, pai de Antonia, zagueira/lateral da seleção brasileira na Copa do Mundo.

"Pois bem, a história da Antonia é muito longa, se eu for contar todinha, vixe! A gente fica o dia inteiro aqui." A história começa com Antonia brincando com os veteranos do futebol em Riacho de Santana, cidade do Rio Grande do Norte que fica a 420 quilômetros de Natal. A menininha de cabelos pretos, lisos, de fenótipo indígena, se misturava aos marmanjos pelos terreiros da vila. Sempre com a bola nos pés.

Edilson era quem levava a filha para os campinhos, e ouvida um monte de bobagem de vizinhos enfurecidos: 'Sua filha está no meio dos homens, jogando bola, e você não faz nada', diziam por aí. "Eu fingia que nem ouvia. Ou então dizia 'pois bem, vou lá buscá-la'. E nunca ia", ri.

Edilson percebia que uma menina jogando bola incomodava — ainda falava-se pouco sobre futebol feminino. Mas a ele, nunca incomodou ter uma filha jogadora. Ele próprio tentou se profissionalizar sem sucesso, tendo a várzea como seu palco até um passado recente.

"Antonia foi campeã dos jogos escolares da cidade, e ganhou uma bolsa numa escola em Natal como recompensa. No primeiro ano, a gente não quis se mudar para a capital. Mas, no ano seguinte, ela ganhou de novo, então decidimos ir. Ela foi campeã pela escola que ficou nove anos sem ganhar um título interescolar de futebol. Ela fazia uma diferença impressionante."

Edilson morava com mais um filho, com a esposa e com outras duas meninas que também foram selecionadas pela escola para jogar em Natal. A família de Antonia se mudou, sob tutela de Edilson, e as colegas dela foram junto. Não durou muito. Logo, as meninas voltaram para a cidadezinha, e só Antonia continuou no time. Por ter tido os pais por perto.

"Em um desses campeonatos, ela foi vista por um olheiro da Portuguesa, e foi convidada para jogar pelo clube. Antonia foi morar em São Paulo, e só vinha para casa nas férias. Quando ela chegava, nossa. Era aquela alegria. O povo sempre organizava amistosos para que ela jogasse com as outras meninas daqui, e ela vinha, pois sempre priorizou as férias com a gente."

"Para a convocação, nossa família se reuniu em Natal. Quando ouvi o nome dela, foi uma sensação inexplicável, uma alegria muito grande. Choramos muito, passou um filme na minha cabeça. Eu nunca almejei uma alegria dessas. Imaginava que ela cresceria muito, é claro, mas nunca que chegaria ao topo. Foi mérito dela, do esforço dela."

"Fico imaginando, sabe? Minha filha, de origem pobre, humilde, morando no interior do Rio Grande do Norte, hoje, está na seleção brasileira. A gente às vezes pensa que é um sonho. Mas é só um grande motivo para comemorar."

A cidade continua reunida em torno do sucesso de Antonia: a prefeitura decretou ponto facultativo nos dias de jogos da seleção, e vai ter um tipo de fan fest no campinho em que Antonia começou a jogar, com telões, para quem quiser se reunir e assistir às partidas do Brasil.

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