Waldemar descreve a sensação de ouvir o nome da filha, Ana Vitória, entre as convocadas por Pia Sundhage como algo 'melhor que ganhar na Mega Sena'. O amor da filhinha pelo futebol vem desde cedo, quando aos 3 anos acordava o pai com o barulho dos chutes na bola atingindo a parede do quarto. Era o futebol, também, o programa preferido de Ana Vitória, na rua e na televisão. Waldemar percebeu que a filha não só gostava do esporte, mas também compreendia detalhes técnicos que passavam despercebidos até por ele.
O pai, então, matriculou a filha em uma escolinha de futebol, onde Ana Vitória só podia jogar com os meninos pela ausência de uma categoria feminina. Isso se manteve quando Waldemar levou a filha até o clube da cidade, o Rondonópolis, para que tentasse vaga em uma peneira. Ana Vitória não faltava. Sua presença nos treinos era certa, e a dedicação deu espaço para que ela fizesse parte das categorias de base masculinas daquele clube.
"Eu acompanhava a Ana em todas as competições, a gente rodava o Mato Grosso inteiro. Quando ela completou 12 anos, perguntei: 'Filhinha, você quer ganhar a vida jogando futebol?'. Ela disse que queria. Então, falei: 'Ok. O pai não vai deixar você faltar em nenhum treino; eu vou te levar em todos os treinos e, quando você fizer 15 anos, vou te levar até a CBF para ver se eles gostam de você. Se não gostarem, te levo para os Estados Unidos'", conta Waldemar.
Quando Ana completou 13 anos, entretanto, a então técnica da seleção brasileira feminina Emily Lima esteve em Cuiabá para avaliar atletas para o sub-17. Emily selecionou apenas Ana Vitória em toda a cidade naquele dia, e, aos 13 anos, ela se firmou como parte da categoria sub-17 do Brasil.
Ana Vitória, conta Waldemar, dividiu o Rondonópolis, dos meninos, com a amarelinha das meninas. Treinou na base do clube mato-grossense até os 16 anos, quando foi apresentada a Arthur Elias, treinador do Corinthians, que mandou um contundente 'a guria fica' após ver as habilidades de Ana Vitória. O Corinthians, no entanto, já havia fechado o orçamento daquele ano e não tinha como contratar a atleta pagando mais que R$ 500.
"Ela foi. Morou com o irmão em São Paulo, ele levava a Ana para os treinos todos os dias. No ano seguinte, já foi regulamentado o salário, e ela ficou dois anos no Corinthians, até vir a proposta do Benfica", conta o pai, que se programava para visitar a filha em Portugal duas vezes ao ano.
Ana Vitória foi a única menina de uma base masculina e não vivenciou qualquer tipo de preconceito. Pelo contrário. Fez laços e grandes amigos, e na única vez em que um torneio impediu que a menina jogasse contra meninos, ela não entendeu o motivo. Waldemar, então, precisou explicar para a filha pela primeira vez o que era a desigualdade de um mundo machista.
"Tomei o homem que organizou esse torneio como inimigo. Ele proibiu que a Ana jogasse por ela ser menina. Comprei até uma máquina fotográfica para tirar fotos da Ana naquele torneio, e ele não a deixou entrar em campo. Viajamos 400 quilômetros para esse campeonato, mas os organizadores foram contundentes: se ela entrasse, o time estaria desclassificado. Ela era novinha, não entendeu o que estava acontecendo. Ficou triste por não poder jogar. Eu disse 'deixa, filha. A resposta a gente dá crescendo na vida. Ele vai engolir seco o que fez com a gente'".
Waldemar dormia com a filha nos alojamentos das competições. Segurava a filha quando rolava briga em campo e ela queria entrar no meio — aconteceu em um torneio em Três Lagoas (MG) contra um time da Bolívia. "Foi uma briga generalizada, e ela queria porque queria entrar", relembra o pai. Anos depois, quando Ana Vitória foi convocada para a Copa do Mundo de 2023, era o mesmo Waldemar a estar ao lado dela. Ela pulou no colo do pai, e o choro veio, como veio quando ele deu esta entrevista ao UOL.
Líder nata, diz o pai sobre a filha, e exemplifica com o que já ouviu: "Ô volante, cê tá passando os meias. Segura. Todo mundo respeitava", diz Waldemar. Ana vencia os amigos no baralho. Fora de campo, mantinha a determinação que levava para dentro: sempre foi boa aluna, inteligente e perspicaz, ótima em matemática, mas com o gênio forte.
Ana tem dois irmãos, ambos longe do futebol, para a surpresa (grata) de Waldemar — que, por ser fanático pelo esporte, achava inconscientemente que seria um dos meninos a seguir seu caminho. "Gosto de ir ao estádio com a Ana porque ela faz comentários pertinentes sobre coisas que nem eu percebo. É minha companheira de estádio desde pequena".
"Mas quando ela perde, eu fico mal. Quando a Pia começou a falar os nomes, fechei os olhos. Estava rezando, na expectativa. Quando me sinto assim, tento me apegar em algo transcendente. Não perco os jogos dela. Sempre dou um jeito de assistir. Minha filha, Ana Vitória, é o amor da minha vida."