O Diabo veste Tricolor

Como Paulo Nunes, o Diabo Loiro, superou desconfiança no Flamengo para levar Grêmio ao bi da Libertadores

Bruno Grossi Colaboração para o UOL, em São Paulo J. F. Diorio/Agência Estado

Nos anos 1990, a camisa 7 do Grêmio ganhou novas formas e cores. O legado do ídolo Renato Gaúcho foi transferido a um menino de cabelos loiros, que misturava a extravagância fora de campo e as diabruras com a bola no pé para arrancar largos sorrisos até do sisudo Luiz Felipe Scolari.

Paulo Nunes faturou dois títulos do Campeonato Gaúcho, um Campeonato Brasileiro e uma Copa do Brasil pelo Grêmio ao longo de três temporadas. Mas essa jornada vitoriosa pelo Olímpico teve como ponto mais alto a Copa Libertadores da América de 1995. Ali, o garoto de Pontalina, interior de Goiás, se descobriu gente grande - sem imaginar que ainda havia muito a conquistar na carreira.

"Eu saí do Flamengo em janeiro de 1995, fui praticamente dado, jogado pro Grêmio. Mas isso acabou sendo meu recomeço. Eu vinha de uma contusão seríssima de joelho, ligamento cruzado. Ou arrebentava ou só ia cair no futebol. Eu estava totalmente mentalizado para triunfar", relembra o agora comentarista do Grupo Globo, em um papo especial com o UOL Esporte.

No fim, tudo correu perfeitamente bem. Do medo de fracassar se formou o Paulo Nunes "Diabo Loiro", craque de bola, multicampeão por Grêmio e Palmeiras e um personagem histórico, carismático tanto pelas danças e máscaras que apareciam em suas comemorações de gols como pela agitada vida fora dos gramados.

"Na minha vida, uni o útil ao agradável. E tudo começou em Porto Alegre, uma cidade nova para conhecer festas e ser extrovertido como sempre fui. O povo gaúcho me abraçou e esse carinho é recíproco até hoje. Eu trabalhava muito, mas também aproveitava bastante. Sempre achei tempo para me divertir, nunca fui um workaholic. E saber a hora certa para fazer as coisas é bom demais", receita.

J. F. Diorio/Agência Estado

Não dá para sair e quebrar tudo perto de um dia de jogo grande. Aí parece que o jogador sai todos os dias, mas nem tempo a gente tem. A gente vive em aeroporto, hotel, jogo. Às vezes sobra um dia para um churrasco, uma festa, um bar. Só que quando sai parece que valeu por um ano todo (risos)

Paulo Nunes, sobre a fama de amante das festas fora dos gramados

Rogério Assis/Folhapress

Felipão, o segundo pai e o melhor da carreira

Quando desembarcou em Porto Alegre emprestado pelo Flamengo, Paulo Nunes tinha 24 anos. Não era mais um novato e carregava no currículo títulos importantes pelo time carioca, como a Copa do Brasil de 1990 e o Brasileirão de 1992, mas já sem o brilho e a expectativa dos tempos de jovem revelação na Gávea. Até que Felipão entrou em sua vida.

"Felipão foi meu segundo pai. E foi o melhor treinador com quem trabalhei, de forma indiscutível. Talvez na parte tática o Vanderlei Luxemburgo iguale, mas no contexto geral é Felipão. Ele foi o responsável pela virada de chave na minha carreira e também como pessoa", conta.

A gratidão, no entanto, não impede que Paulo Nunes mostre sua face brincalhona para tirar uma casquinha do atual técnico do Athletico Paranaense e com quem viveria grandes glórias também pelo Palmeiras no fim dos anos 1990: "Ele foi para a seleção brasileira, para Portugal e para o Chelsea por minha causa. Uns 40% do que ganhou ele deveria me pagar, tinha que pingar um depósito todo mês!"

É foda dizer quem era o melhor do time, porque era algo muito coletivo, com todos se entregando, juntando força com qualidade. Mas não vou fugir de dizer: o melhor daquele Grêmio era o Felipão. Não fujo da raia, foi ele quem armou aquele time tão forte mentalmente e fisicamente

Paulo Nunes, ao ser perguntado sobre quem era o craque do Grêmio de 1995

Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem

Perigo em dose dupla

Ao longo da carreira, Felipão passou a ser conhecido por um estilo de jogo bem definido, combinando em uma dupla um pivô com um segundo atacante de velocidade. A Libertadores de 1995 teve papel fundamental nessa construção. A parceria entre Paulo Nunes e Jardel entrou para o hall da fama de duplas de ataque do futebol brasileiro com risadas, tabelas e - muitos - gols.

"Ele sempre quis essa junção e achou esses dois caras que ajudaram ele demais a conquistar o que conquistou, mas ele também nos ajudou muito. E o mais legal é que o Jardel precisava de mim para fazer os gols, mas eu precisava muito dos pivôs, da inteligência de jogo para movimentar e abrir diagonal", relata Paulo Nunes, que ainda morre de amores pela sintonia com o centroavante:

"A parceria foi ficando tão forte que eu não precisava mais olhar, já imaginava o ponto que ele iria estar. E, além da sintonia, tínhamos a humildade de entender que um não existiria sem o outro. Não existia vaidade, ciúme, ego. Existiu, sim, uma sinergia, uma química, uma simbiose. E olha que eu sou da terra do sertanejo e de dupla eu entendo muito!".

AFP Photo
Jardel na final do Mundial contra o Ajax

Dupla com Jardel sobrevive à distância e dura até hoje

A sintonia em campo fez de Paulo Nunes e Jardel grandes amigos. Até hoje, apesar da distância entre o Rio de Janeiro e o Ceará, mantêm laços fortes e conversas quase diárias. A admiração é sincera, a ponto de Paulo Nunes cravar sem medo e com "o coração aberto" que Jardel foi o herói gremista no título da Libertadores de 1995, quando foi artilheiro com 12 gols.

Mas Paulo Nunes não seria Paulo Nunes sem mais uma saudável provocação: "Ele fez gol de tudo quanto é jeito naquela Libertadores, jogou muito mais, mas no geral, pelo Grêmio, óbvio que fui eu (risos). O que importa é que formamos uma dupla muito chamativa, midiática e que rendeu muitos gols e títulos".

"Quando eu saía, o Jardel estava sempre junto. Fui padrinho do casamento dele e sempre estávamos brincando na concentração. Todo mundo pegava no pé dele, combinava para roubar dele até no 2 ou 1 só para dar peteleco e chamar ele de burro. Sempre foi um cara muito alegre, feliz, do bem. Hoje a gente se vê menos do que precisava, mas fala muito por telefone e aproveita os eventos do Grêmio para matar a saudade, porque, não sobra muito tempo pelo trabalho de cada um. Mas a amizade permanece do mesmo jeito", se declara o ídolo gremista.

Se você estivesse triste era só andar com o Jardel. O Adilson (Batista) era nosso capitão e anotava todas as pérolas. Uma vez, o Jardel disse que formava uma dupla maravilhosa comigo e o Carlos Miguel. Todo mundo caiu de rir. São muitas histórias e são todas verdade, eu juro que nada foi inventado

Paulo Nunes, sobre uma das várias frases folclóricas atribuídas ao amigo Jardel

"Um 7 e um 9": as duplas de ataque ressurgem no futebol brasileiro

  • Gabigol e Pedro

    Foram quase três temporadas com Pedro na reserva de Gabigol, até que Dorival Júnior encontrou uma maneira de usá-los juntos no comando de ataque do Flamengo.

    Imagem: Mateus Bonomi/AGIF
  • Vargas e Hulk

    A parceria entre o chileno e Hulk rendeu grandes conquistas para o Atlético-MG no ano passado, com títulos do Brasileirão e da Copa do Brasil sob o comando de Cuca.

    Imagem: Fernando Moreno/AGIF
  • Luciano e Calleri

    O São Paulo foi um dos times a retomar as duplas de ataque recentemente e hoje Rogério Ceni conta com dois artilheiros muito queridos pela torcida: Luciano e Calleri.

    Imagem: Ettore Chiereguini/AGIF

É um ciclo, os momentos do futebol mudam, as características dos jogadores também. Para jogar com uma dupla de ataque é preciso qualidade e intuição para desequilibrar, ter meias corajosos para quebrar as linhas, e não só jogar para trás

Paulo Nunes, sobre como se formam as grandes duplas de ataque

O título da Libertadores de 1995

Uma conquista em quatro atos

Reuters

O jogo mais 'fácil'

É difícil falar em jogo fácil na Libertadores, ainda mais nos anos 1990. Só lembrar que a gente classificou em segundo só na última rodada e que o mata-mata, mesmo contra times teoricamente mais fáceis em alguns momentos, foi muito complicado - e eu fiz um dos gols mais bonitos da minha carreira na semifinal contra o Emelec. Mas, para ser direto, o mais fácil dentro de toda essa dificuldade talvez tenha sido contra o El Nacional, do Equador, na primeira fase. Tinha altitude, mas tecnicamente ficou uma diferença grande e ganhamos as duas partidas.

Domício Pinheiro / ESTADÃO CONTEÚDO

O jogo mais difícil

Para mim, o mais difícil foi pegar o Palmeiras. Aquele Palmeiras foi um calo que a gente teve que enfrentar para ser campeão. Jogamos quatro vezes. Duas na primeira fase e duas no mata-mata, com aqueles jogos que ficaram famosos pelo 5 a 0 (para o Grêmio, no Olímpico) e 5 a 1 (para o Palmeiras, no Palestra Itália). Era um time muito forte, base da seleção brasileira. Tivemos que jogar muito pra tirar o Palmeiras e ainda eram quartas de final, imagina? Precisamos lutar muito e ainda jogar semifinal e final. Era uma das maiores rivalidades da época.

Pisco del Gaiso/Folhapress

O marcador mais duro

Sem dúvida nenhuma os zagueiros daquele time do Palmeiras ganham de qualquer um nesse quesito. Nunca apanhei tanto na minha vida como contra o Palmeiras naquela Libertadores, com Antônio Carlos e Clebão. Era um absurdo, juro. Eu já ia me preparando durante a semana. Ainda por cima, esses dois jogavam muito, tinham muita qualidade e sabiam bater. Eram inteligentes, o juiz nem via. O pior é que depois fui jogar com o Clebão e achava que ia ser só pancada, mas ele é um dos caras mais educados que conheci. Se soubesse antes, teria passado menos medo.

Folhapress

O momento mais tenso

É engraçado, porque eram vários momentos tensos quando você jogava Libertadores naquela época. Era ônibus sendo quebrado em todo lugar, vestiário despreparado, com tinta, sujeira para atrapalhar... Mas o que mais mexeu comigo foi no Brasil mesmo, naquele 5 a 1 contra o Palmeiras. Apanhei de gandula, de tudo quanto é jeito. A pressão que sofremos no antigo Parque Antártica foi maior que qualquer uma que passei na Argentina, Uruguai ou Colômbia. Foram jogos muito fortes física e mentalmente. O que nós passamos naqueles duelos foi o extremo do cansaço.

Reprodução

O pupilo de Zico escreveu sua história no Sul

Cria e torcedor do Flamengo, Paulo Nunes aprendeu a idolatrar Zico desde cedo. Via de longe os títulos do Brasileirão, da Libertadores e do Mundial estrelados pelo Galinho e jura que não imaginava um dia repetir alguns dos feitos de seu herói. Até que, em 30 de agosto de 1995, o árbitro chileno Salvador Imperatore encerrou a partida no estádio Atanasio Girardot, em Medellín, e decretou o título do Grêmio sobre os colombianos do Atlético Nacional. Era o bi tricolor na Libertadores.

"Quando o Zico ganhou a Libertadores pelo Flamengo, pensar que eu poderia viver algo parecido era impossível demais lá no interior de Goiás. De repente estou lá em uma final, fazendo gol no Higuita no primeiro jogo... Fiz um gol de titulo, cara! Isso me levou a um patamar inexplicável. Lembrei na hora que o Zico tinha ganhado e eu também! Você não imagina o tamanho que me senti naquele momento. Meu único ídolo e eu conquistei o título que ele tinha ganhado", gargalha, com prazer.

Como o próprio Paulo Nunes diz, depois desse título "a fila andou de vez, papai". Mas títulos como Campeonato Gaúcho, Recopa Sul-America, Campeonato Brasileiro e Copa do Brasil pelo Grêmio, Libertadores, Mercosul e Copa do Brasil pelo Palmeiras e Copa América pela seleção brasileira não mudaram um fato: o ex-atacante continua sendo um tiete de Zico. "Eu sou apaixonado por ele e ele fala que não aguenta mais tirar foto comigo (risos). É meu único ídolo na vida e sou muito grato a ele, principalmente pela forma como me ajudou quando eu estava subindo ao profissional do Flamengo", explica.

Previsões sobre o futuro e o destino do Grêmio em 2022

Com duas Libertadores no currículo, Paulo Nunes pode se considerar um especialista no assunto e acredita que a competição terá uma final brasileira pela terceira vez consecutiva. Dos cinco brasileiros vivos na competição até as quartas de final, apenas o Corinthians não inspira muita confiança no comentarista, apesar dos elogios ao técnico Vitor Pereira.

"O bicho vai pegar. Com o Cuca voltando, mesmo sem muito tempo, ele pode arrumar o Atlético-MG. Ele conhece muito o clube. Mas do outro lado está o Palmeiras, que é o melhor time da América Latina, disparado. Além da qualidade dos jogadores, tem um treinador muito bom que é o Abel Ferreira. Não só dentro, mas fora de campo. A gente fala pouco da parte mental dos atletas e ele trabalha muito isso, assim como o Felipão sempre fez e faz agora no Athletico, que se reforçou muito bem. Inclui aí o Flamengo, e vai ser difícil o campeão sair daí. O Corinthians está em uma situação peculiar. Se estiver com todos jogadores, pode dar problema, ainda mais pelo baita treinador que tem, mas está com muitos desfalques e vai pegar o Flamengo, que é muito forte", projeta.

E as previsões para o Grêmio, onde é ídolo? Bom, as expectativas não são as melhores: "Vou te falar, viu... Fiz um jogo esses dias e tá doido, irmão. O Grêmio tem muita dificuldade. Em casa faz pressão com a torcida, tem volume, mas fora é duro de ver. Até pela Série B ser fácil pelo nível das outras equipes, que está baixo neste ano, acho que vai subir tranquilo, mas tem que repensar o mais rápido possível para o próximo ano. Não pode perigar bater e voltar".

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