O dicionário de Pia

Técnica da seleção feminina se apega à música e diz que aprendeu com os erros para sonhar alto na Copa

Luiza Sá Do UOL, no Rio Mariana Sá/UOL

Quanto tempo o tempo tem?
Eu não sei, não lembro muito bem
Mas aquele sentimento eu não esqueço
Foi pensando em alguém
Que eu quis fazer uma canção
E as palavras só agora eu entendo
Deixa o pensamento livre para imaginar
Qualquer coisa que você quiser cantar
Sei lá, é só deixar
A canção vai te levar
Onde você quer chegar"

Marisa Monte, Pretinho da Serrinha e Pedro Baby

Mariana Sá/UOL

Língua portuguesa

A cada entrevista o português de Pia Sundhage está melhor. Apesar de fazer questão de falar em inglês, para se sentir mais confortável durante o papo, a técnica sueca da seleção feminina de futebol escolhe bem as palavras que norteiam seu trabalho na CBF. E gosta de cantar músicas em português, com sotaque, mas muita afinação. Foi assim quando pegou seu violão e fez acordes de Anunciação, de Alceu Valença, e agora quando arriscou uma canção de Marisa Monte. "Estou trabalhando nesta aqui agora", disse ao UOL.

Ela chegou ao Brasil com a missão de revolucionar o futebol feminino no país, mas sem ser "muito radical", como prometeu na época. Três anos e meio depois e às vésperas da primeira Copa do Mundo, a treinadora admite desafios e tenta diminuir as limitações impostas às mulheres.

Desde 2019, a sueca teve como "chefes" na CBF Rogério Caboclo, destituído por acusações de assédio sexual e moral, Coronel Nunes como interino e agora Ednaldo Rodrigues. Os constantes problemas influenciam inclusive na montagem de seleções de base, uma das frustrações da treinadora.

Duas vezes campeã olímpica à frente dos Estados Unidos - Pequim-2008, vencendo o Brasil na final, e Londres-2012 -, a técnica sueca recebeu o UOL. Contou sobre a infância onde era chamada de Pelé ao invés de Pia e as motivações que ainda a fazem viver de futebol feminino mesmo nas dificuldades.

A menos de 100 dias para o Mundial, Pia diz que a queda na Olimpíada ainda dói, mas garante que a seleção está aprendendo com os erros. "A canção vai te levar onde você quer chegar", indica a letra de Marisa Monte.

Mariana Sá/UOL Pia explica sua visão sobre futebol na sede da CBF

Pia explica sua visão sobre futebol na sede da CBF

Palavra 1: PACIÊNCIA

Pia entende que os principais desafios não foram dentro do campo, apesar de ter vivido vários nesse âmbito. A empolgação inicial acabou sendo freada não só pela pandemia em 2020, mas também pelas limitações que o futebol brasileiro apresenta.

"Tem sido muito interessante e eu sempre tive curiosidade sobre como eu lidaria com um novo ambiente. A grande diferença e desafio é um pouco da cultura. No comecinho eu estava muito empolgada e fiquei um pouco cansada. Tem uma palavra que eu aprendi muito rápido que é 'paciência'. Isso é importante se você quer ir pelas palavras, porque tem algumas ótimas palavras aqui."

"Depois, eu precisava acompanhar. Precisava ser paciente. Venho de um país que é muito organizado, então eu preciso ajustar meu jeito de trabalhar certas coisas no campo. Eu acho que tem sido fantástico. Aprendi tantas coisas. O jeito que jogamos, como se reflete, o feedback das jogadoras. É mais fora do campo, esse tem sido o maior desafio, eu diria."

Estresse por mudanças na CBF e problemas na base

'É preciso paciência para ter sucesso'

Palavra 2: IGUALDADE

Em 2022, a federação dos Estados Unidos anunciou que as seleções masculina e feminina receberiam pagamentos idênticos por partida. Além disso, também houve uma compensação de cerca de R$ 121,5 milhões a várias atletas pelos anos de desigualdade. Isso aconteceu depois de diversos protestos, inclusive quando as mulheres ganharam o título da Copa de 2019.

Antes, em 2020, a CBF anunciou a igualdade de valores em relação a prêmios e diárias entre homens e mulheres. Para Pia, o debate sobre pagamento igual é muito maior: é sobre tratamento.

"Eu diria que é a mesma história de sempre. Você pode pegar praticamente qualquer país no mundo. Tem futebol, mas quando diz futebol, em muitos países é sobre o masculino. Especialmente nos clubes. E eles decidiram que vão apoiar os homens. É um pouco de dinheiro, um pouco de polícia, muito sobre atitude. É um longo caminho para percorrer. Você tem que admitir."

"Se pensar em como se trata as mulheres de modo geral na sociedade. Olhar para uma federação quando você representa os brasileiros, todos estão falando sobre pagamentos iguais, certo? Estou falando sobre tratamento igual. Temos o mesmo tipo de apoio em relação a todas as coisas que você precisa ser profissional e ganhar o próximo jogo, digamos assim. Se quer fazer isso acontecer nos clubes também, precisa trabalhar por isso sempre e apontar. Acho que a melhor coisa é falar sobre atitude. O que você realmente pensa? Tem uma família com um menino e uma menina. Os dois amam futebol. Você pode ajudar eles e ter certeza de que vão fazer o que amam. Eles jogam e se quiserem tentar o melhor para serem profissionais, tem chance? Você precisa dar oportunidades. E hoje não é igual."

Se você ama futebol, ama o de mulheres e homens. Se é um verdadeiro fã do esporte. Vai ser diferente. Se eu assistir a um jogo aqui de homens e outro na Europa, na Suécia, serão diferentes, mas ainda assim é futebol, 11 contra 11"

Pia Sundhage, técnica da seleção feminina de futebol

Para o pagamento igual, temos apenas de fazer as perguntas de novo e de novo. Por que você coloca mais dinheiro aqui e não ali? Vai levar um tempo. Mas se tivermos muitas vozes, teremos um coral. E um coral soa muito bem"

Pia Sundhage, técnica da seleção feminina de futebol

Palavra 3: LIÇÕES

Palavra 4: CORAGEM

Um dos maiores trabalhos de Pia foi conduzir a transição entre a maior geração do futebol feminino do país e a nova leva de jogadoras que pediam passagem. Formiga se aposentou da seleção logo depois da Olimpíada. Marta enfrentou grave lesão, mas pode fazer sua última Copa do Mundo. Cristiane, porém, ficou fora dos planos.

Dos 53 jogos comandados por Pia ao longo de três anos e meio, Cris esteve em somente oito. "É difícil. Mas aprendi uma coisa porque vivi o mesmo nos Estados Unidos e na Suécia também. Quando você não traz - e isso vêm do não subestimar nada - jogadoras experientes, você tem jornalistas perguntando sobre isso ou aquilo. Se terá conversa com as jogadoras ou coisas assim".

"Eu sou uma pessoa de equipe, quero o melhor para o time. Se você olhar para o tempo que tivemos antes da Copa do Mundo e a transição de novas jogadoras, tomamos uma decisão ali. Não acho que todos gostaram, mas não importa. Fizemos uma decisão, ok, se vamos competir no maior nível, e eu estou falando daqueles dez países que vão tentar ganhar a Copa, precisamos ter coragem. E essa é uma palavra importante. Coragem para tomar as decisões e nos manter com elas."

"Bem no início com as jogadoras mais novas, e eu tenho um bom exemplo com a Ary. Demorou um pouco até ela realmente começar a brilhar. Agora ela está nos Estados Unidos, joga, tem muita energia, é boa jogadora. Tem que ser paciente, porque você abriu mão de muitos anos e a Formiga nem está aqui. Então, ao invés disso, você traz muito entusiasmo."

"Elas ficam um pouco nervosas, mas você tem que lidar com isso porque se a atleta mais jovem crescer, também vão contagiar o time. É um equilíbrio. Você não pode simplesmente se desfazer de todas as jogadoras, as experientes, mas acho que é importante ter uma mistura. Gostaria de ter um pouco mais de experiência, mas, por outro lado, olho para a Ary, Kerolin ou a Tainara e acho que elas vão ficar bem."

Pode ser um bom caminho, com certeza. Mas precisa de alguém para acompanhar. Porque se você só decide algo, serão apenas palavras se não seguir com ações. É importante que entendam o quão importante é para a sociedade"

Pia Sundhage, técnica da seleção feminina de futebol

Você tem uma família com meninos e meninas. Se eles quiserem jogar futebol, deveria ter diferenças? É preciso acompanhar com ações. Se você compartilha essa palavra, precisa ter o coração junto também. De outro jeito são só palavras"

Pia Sundhage, técnica da seleção feminina de futebol

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Palavra 5: GRIT (FORÇA DE VONTADE)

Nascida em Ulricehamn, uma cidade pequena na Suécia, Pia se aposentou como artilheira da seleção de seu país. Ela treinou os Estados Unidos entre 2008 e 2012, quando foi bicampeã olímpica e vice da Copa de 2011. Pelo sucesso, levou o prêmio da Fifa de melhor do mundo.

Depois de deixar as norte-americanas, Pia treinou a Suécia entre 2012 e 2017, sendo prata na Olimpíada do Rio em 2016. Ela chegou ao Brasil em 2019 e acabou caindo nas quartas de final em Tóquio. Apesar dos problemas, a treinadora garante ter motivação.

"Ainda existem dificuldades. Você precisa lutar pelas coisas sempre. Quando encontro dificuldades, olho para trás e para frente. Porque o que quer que esteja fazendo com todas as mulheres e homens pelo futebol feminino é pela nova geração. Algumas vezes é difícil. Tenho que admitir isso. Algumas vezes até insultante. Mas se você só respira um pouco, olha para a palavra "paciência". Aí é um caminho.

"Depois vem essa palavra "grit" [em português definido como força de vontade] e fazemos coisas juntos. Eu sei que quem vier depois de mim terá oportunidades melhores. É como foi quando eu era jogadora. Sim, fui jogadora profissional na Itália por um ano, mas olha como as profissionais de lá estão hoje. É uma diferença grande. Tive alguns bons treinadores e olha para os técnicos atualmente, muito melhores. Quem quer que assuma essa cadeira depois de mim não terá que passar pelos mesmos obstáculos que eu tive nesses três anos e meio. É um lugar onde você pode fazer a diferença e isso me motiva."

Montagem em fotos de Daniela Porcelli, Thais Magalhães e Sam Robles/ CBF Pia Sundhage em imagens de 2019, quando chegou ao Brasil, a 2023, ano a ano

Pia Sundhage em imagens de 2019, quando chegou ao Brasil, a 2023, ano a ano

Quando estou no campo e vejo uma das jogadoras, elas começam a driblar, fazer uma jogada ou a decisão que tomam. Elas me surpreendem de um jeito positivo e rápido. Você realmente sente o quão rápido é no campo. Eu amo isso, faz meu dia"

Pia Sundhage, técnica da seleção feminina de futebol

'Coragem é uma palavra importante. Precisamos disso'

Pia Sundhage fala sobre a seleção feminina de futebol

Palavra 6: FÉ

A menos de 100 dias para a Copa do Mundo feminina, Pia colheu dois bons resultados recentes (empate com a Inglaterra e vitória sobre a Alemanha). Agora, renovou as esperanças de o Brasil fazer um bom papel no evento na Austrália e Nova Zelândia.

Brasil tem chance de ser campeão?

"Temos a chance. Se você acredita em algo, repete e compartilha seus pensamentos. Também o fato de tentar fazer o melhor a cada dia. Eu tento fazer um pouco melhor, diferente ou comunicar isso. E eu acho que são 10 times, 10 países, talvez até mais. E o Brasil é um deles. Se com a qualidade que temos no campo, pudermos trazer o melhor futebol sempre que jogarmos, também do lado de fora. Porque quando você acredita em algo, tem uma chance de acontecer. Estou ansiosa para os próximos dias."

Será a melhor Copa do Mundo tecnicamente?

"Sim, se você olhar para trás desde que eu joguei a Copa do Mundo da China em 1991, e analisar tudo que aconteceu nos últimos quatro anos. Muitas coisas mudaram e evoluíram no futebol feminino. Acho que hoje não há tanta diferença entre o melhor time, a melhor jogadora e o pior time e a pior jogadora. Se você comparar com 91, por exemplo, o que está acontecendo é a velocidade de jogo. Quando você fala da parte técnica, talvez, mas é mais sobre a tomada de decisão. Acho que isso vai fazer a diferença. Eu olho para a Eurocopa, a Inglaterra jogou contra a Alemanha. Foi um jogo muito bom. E isso nos diz "ok, é esse tipo de futebol que veremos na Austrália"."

A França viveu crise meses antes da Copa. O que esperar?

"Jogamos contra a França duas vezes. Quando olhamos para o jogo das francesas é a dinâmica delas no um contra um, temos que lidar com isso e com as laterais defensivamente ao mesmo tempo em que mantemos a posse e decidimos se vamos para o contra-ataque ou não. A situação que elas estão passando, pode ser difícil, mas também totalmente o oposto. Não dá para saber. Fizemos nosso dever de casa, não sei quantos jogos eu assisti. Mas agora elas têm um novo treinador. Você precisa reiniciar e olhar. O que está fazendo de diferente? Está trazendo novas jogadoras e também outro estilo de jogo? Temos muito trabalho pela frente, trabalho de casa para fazer. Vamos ver."

Pia fala da preparação do Brasil para a Copa

Confira a entrevista exclusiva na íntegra

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