A Fórmula nada secreta

Piloto dedo-duro, morte mal explicada, sadomasoquismo e os dois anos mais escandalosos da Fórmula 1

Julianne Cerasoli Especial para o UOL, em São Paulo Arte/UOL

Quem acompanhou toda a saga da decisão do campeonato de 2021 sabe que a Fórmula 1 se acostumou com as polêmicas ao longo dos anos. Mas nada se compara ao que aconteceu entre 2007 e 2009. Piloto dedurando a própria equipe, polícia envolvida, uma morte misteriosa e uma orgia sadomasoquista que estampou capa de jornal. E, para deixar tudo mais escandaloso, muitos dos envolvidos continuam no paddock da categoria como se nada tivesse acontecido...

Um piloto dedo-duro e a morte mal explicada

Espionagem industrial é um dos grandes medos das equipes de F1. Elas costumam pagar meses de salário para seus engenheiros mais importantes para que o conhecimento sobre novidades que seu ex-time está testando já estejam obsoletas quando eles mudarem de emprego.

Mas nem mesmo as longas quarentenas industriais evitaram que esses temores virassem realidade quando o mecânico chefe da Ferrari, Nigel Stepney, passou o equivalente a 800 páginas de dados com segredos da equipe para a McLaren. Isso foi em pleno abril de 2007, quando as equipes lutavam pelo mundial. Essas informações estavam sendo passadas para o desenhista chefe da McLaren, Mike Coughlan.

As chances de a espionagem funcionar diminuíram quando Coughlan encarregou sua esposa de levar o material para ser copiado. O local escolhido foi uma loja na cidade de Woking, onde fica a sede da equipe inglesa. A pessoa que fez as cópias na tal loja achou o conteúdo do material estranho e fez com que a investigação fosse iniciada. Quando a polícia foi envolvida, o material na casa do desenhista foi descoberto.

Internamente, a McLaren determinou que as informações não tinham sido incorporadas nos carros. A primeira investigação da FIA também chegou a essa conclusão. Então, em julho de 2007, parecia que tudo acabaria em pizza.

REUTERS/Nikola Solic

O rival da McLaren no spygate estava dentro de Woking

É aí que a história tem um plot-twist. Internamente, a McLaren não vivia seus melhores momentos. O time tinha contratado o bicampeão em 2005 e 2006 Fernando Alonso a peso de ouro, e o espanhol não estava contente com o tratamento que estava tendo como companheiro do novato Lewis Hamilton. Então aos 22 anos, o inglês tinha estreado sob enorme expectativa e vinha fazendo um campeonato excelente, com pódios em suas nove primeiras corridas.

O clima entre os dois pilotos era péssimo.

Naquele momento, Alonso não era o único desafeto de Ron Dennis, então chefe da McLaren. Max Mosley, então presidente da Federação Internacional de Automobilismo, também odiava o dirigente da equipe inglesa.

E então chega o GP da Hungria de 2007. As tensões dentro da McLaren são evidentes. Na última tentativa de volta rápida na classificação, Alonso segurou Hamilton nos boxes para que ele não tivesse tempo de abrir volta rápida. O espanhol argumentava que o inglês não tinha seguido regras internas do time durante a sessão. No pitwall, Dennis atirava seu fone de ouvido no ar.

Alonso não pararia por aí. Ele disse a Dennis que tinha evidências de que a equipe estava mentindo no caso de espionagem e que enviaria cópias de e-mails que comprovavam isso para a FIA. Era uma conversa dele com o piloto de testes da McLaren, Pedro de la Rosa, em que eles discutiam o uso de informações vindas da Ferrari.

Dito e feito. As evidências de Alonso chegaram a Mosley. O espanhol ganhou imunidade e manteve seus pontos. Mas o mesmo não aconteceu com a equipe, que perdeu o campeonato de construtores e ainda levou uma multa de US$ 100 milhões.

Personagens do spygate:

  • Nigel Stepney

    Era um dos remanescentes da equipe que levou Michael Schumacher a cinco títulos com a Scuderia. Morreu atropelado em uma rodovia na Inglaterra em outubro de 2014. Embora o caso não tenha sido tratado como suicídio, o motorista do caminhão que o atropelou disse que um vulto pulou em direção à estrada e não conseguiu evitá-lo. O laudo da polícia comprova que Stepney foi atingido como o motorista descreveu.

    Imagem: Mark Thompson/Getty Images
  • Ron Dennis

    Começou como mecânico, mas fez carreira na F1 como homem de negócios, ajudando a levantar a McLaren e a torná-la o McLaren Group, junto do magnata Mansour Ojjeh. A parceria durou décadas, mas azedou e culminou na saída de Dennis do grupo em 2016. Em 2009, já estava afastado da chefia da equipe de F1.

    Imagem: Divulgação
  • Fernando Alonso

    Era considerado o sucessor de Schumacher como o grande astro da categoria quando foi para a McLaren em 2007. Depois, voltou à Renault e foi para a Ferrari em 2010. Ele retornaria à McLaren em 2015 e à Renault (agora Alpine) em 2021, sempre saindo com algum tipo de rusga. O mesmo se repete com a ida da Alpine para a Aston Martin em 2023, fechada às escuras.

    Imagem: Martin Rickett/PA Images via Getty Images
  • Mike Coughlan

    Foi suspenso pelo time no meio das investigações. Retornou à F1 com a Williams em 2011 e se envolveu em mais polêmicas por uso de gases do escapamento para fins aerodinâmicos. No meio da temporada 2013, foi substituído por Pat Symonds.

    Imagem: Peter J Fox/Getty Images
EFE/DIEGO AZUBEL

Outros do alto escalão

  • Paddy Lowe: depois passou pela Williams e foi um dos chefões da Mercedes.
  • Jonathan Neale: segue no comando operacional da McLaren.
  • Rob Taylor: depois foi para a Red Bull e Haas.
  • Martin Whitmarsh (foto): assumiu a chefia da equipe quando Dennis se afastou. Em 2023 voltará a trabalhar com Alonso, pois é o CEO da Aston Martin na F1 desde 2021.
Reuters/Reuters

Alonso saiu ileso de outro escândalo

Quando Alonso entrou na McLaren em 2007, estava claro que ele não ficaria na equipe por muito tempo. O espanhol retornaria à Renault, que vivia um momento bem diferente de quando o piloto tinha conquistado seus dois títulos em 2005 e 2006. Os resultados custavam a aparecer e a montadora francesa reconsiderava seu futuro na F1 em meio à crise financeira de 2008.

Eles precisavam de resultados. Alonso vinha batendo na trave, com três quartos lugares em quatro provas, até que a F1 chega pela primeira vez em Singapura e o espanhol está voando. Ele foi o mais rápido da sexta-feira e liderou também o último treino livre antes da classificação. Porém, na hora de definir o grid de largada, teve um problema na bomba de combustível e não passou do 15º lugar.

Como ganhar uma corrida numa pista de rua largando lá atrás?

Reuters/Reuters Reuters/Reuters

A resposta estava na outra Renault, guiada por Nelsinho Piquet. O brasileiro estava em sua primeira temporada na F1 e vinha bastante pressionado por sua performance. O brasileiro foi instruído por Pat Symonds a bater logo depois que Alonso fizesse sua parada, ajudando o espanhol a ir para a ponta da prova. Alonso ainda seria ajudado por algumas punições para chegar à improvável vitória, que gerou suspeição logo após a bandeirada.

Isso porque não era comum para um piloto que estava largando fora de posição começar a prova com pouco combustível e parar logo na volta 12, como o espanhol fez. O normal seria largar pesado e parar só na segunda metade da prova. Mas a história parecia tão absurda que ficou por isso mesmo.

France Presse: AFP/France Presse- AFP

A denúncia de Piquet e a testemunha misteriosa

Quer dizer, até que Piquet foi demitido pela Renault no meio da temporada 2009 e resolveu falar. Ele já havia confidenciado o ocorrido a algumas pessoas no paddock, inclusive jornalistas, mas foi instruído a ficar quieto pois isso acabaria com sua carreira.

O piloto contou à FIA em setembro de 2009 que Symonds, que depois admitiu ter tramado o acidente, e seu ex-chefe Flavio Briatore, tinham pedido que ele batesse de propósito. Mas a investigação só engrenou de vez quando uma testemunha não identificada até hoje confirmou a versão do piloto. Nos documentos da FIA, essa pessoa é identificada como "testemunha X".

Na época, chegou a ser especulado que o próprio Alonso tivesse colaborado em troca de imunidade mais uma vez, mas o piloto sempre sustentou que não sabia nada sobre o plano. A suspeita acabou recaindo sobre Alan Permane, engenheiro chefe da Renault e que continua na equipe, hoje Alpine, até hoje.

Os personagens do crashgate

  • Nelsinho Piquet

    Mesmo sendo aquele que denunciou a trama, Nelsinho foi o mais afetado pela polêmica. O brasileiro fez uma aparição bastante discreta no GP de Miami deste ano, esquivando-se de entrevistas, enquanto acompanhava a irmã Kelly, namorada de Max Verstappen. O piloto correu em várias categorias após a F1 (Nascar, Formula E, Rallycross, endurance) e atualmente está na Stock Car.

    Imagem: Charles Coates/Getty Images Sport
  • Pat Symonds

    O então diretor técnico da Renault foi banido da F1 por cinco anos, em decisão que foi revogada. Symonds voltou à categoria como consultor da Virgin/Manor em 2011, mas seu retorno ao paddock só se deu em 2013, quando ele assumiu o cargo de Coughlan na Williams. O inglês ainda teria um cargo alto na própria F1, ao lado de Ross Brawn no comando da parte técnica da categoria dentro da Liberty Media. Agora, ele está se preparando para se aposentar neste ano.

    Imagem: Mark Thompson/Getty Images
  • Flavio Briatore

    O poderoso chefe da equipe e empresário de Alonso chegou a ser banido por toda a vida, mas a decisão também foi revertida. O italiano Briatore apareceu em algumas corridas nos últimos anos, mas voltou a ser figurinha carimbada no paddock nesta temporada. Ele não é mais empresário de Alonso, mas continua ajudando o espanhol em suas negociações.

    Imagem: EFE/Luca Zennaro

Chefão da F1 flagrado em uma orgia nazista

Em uma época na qual a F1 parecia atraída a grandes polêmicas, a mais inusitada delas aconteceu quando o tabloide britânico News of the World estampou na capa fotos e publicou em sua versão online um vídeo do então todo-poderoso presidente da FIA, Max Mosley, em uma orgia com prostitutas com tema nazista.

Seria o início do fim para o britânico, que tentou ser piloto nos anos 1960, foi um dos fundadores da equipe March nos anos 1970 e chegou à presidência da FIA em 1991, cargo que ocupou até 2008, quando a matéria foi publicada.

A data da publicação sempre levantou suspeitas no paddock.

Isso porque o envolvimento de Mosley com orgias não era exatamente novidade. O nazismo foi parte integrante da sua formação, o que era um fato conhecido. Seu pai, Oswald, era líder do partido fascista no Reino Unido e, um mês antes de Mosley nascer, ele tinha sido preso, sua mãe teria o mesmo destino algumas semanas depois de dar à luz. Eles só foram soltos três anos depois.

AFP PHOTO/Pablo PORCIUNCULA

Mosley usou educação aristocrática para reinar na F1

A maneira articulada e a educação de alto nível no meio aristocrático de onde sua família vinha acabou fazendo de Mosley um aliado fundamental para Bernie Ecclestone, um homem de pouca formação e muita visão, tomar o controle da F1 e fazer a categoria se tornar um negócio mundialmente lucrativo. Não foi por acaso que os dois passaram mais de uma década juntos no poder.

Pelos mesmos motivos, Mosley colecionou desafetos no paddock. Um deles foi Ron Dennis, da McLaren. Os dois mantinham uma relação conturbada porque Mosley tinha poder para prejudicar Dennis, que por sua vez era o chefão de uma das maiores equipes da F1. E o tal vídeo veio a público meses depois da punição dura que a McLaren recebeu pelo spygate.

Mosley continuou na presidência da FIA até o final de seu mandato, mas as polêmicas só se somaram a partir dali. Ele tentou impor um teto orçamentário de 40 milhões de libras por ano (para se ter uma ideia, o teto só foi aprovado mais de dez anos depois, no valor de 145 milhões de dólares, equivalente a 122 milhões de libras) e as equipes grandes chegaram a formar um campeonato paralelo, ameaçando não competir na F1 em 2010. Com a desistência de Mosley de disputar a presidência da FIA mais uma vez, a paz foi selada.

Reuters

Que fim levou Max Mosley?

Após o escândalo do vídeo, Mosley se tornou ativista pela privacidade de pessoas públicas, e ganhou a causa contra o News of the World. Ele morreu em maio de 2021. Uma investigação concluiu que o britânico, então com 81 anos, se matou com uma arma de fogo depois de receber a notícia de que tinha um câncer terminal.

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