O piloto do agreste

Treinando e competindo em simulador virtual, e indo à corridas de Uno, jovem sonha com elite do automobilismo

Bruno Fernandes e Josué Seixas Em colaboração para o UOL Esporte, em Maceió Bruno Fernandes, em Colaboração para o UOL Esporte

O ritual é diário. O piloto Elísio Netto, de 20 anos, sai do quarto com um travesseiro debaixo do braço, ajeita a cadeira de plástico no meio da sala de casa e liga o ventilador. Ele coloca o travesseiro nas costas e senta-se. O computador inicia rápido, já no simulador de corrida que indica quase 800 horas de treinos durante os seis meses de pandemia.

Ao piloto, faltam pistas, pneus e carros reais. Todo treinamento tem sido feito virtualmente. Elísio sequer tem um kart. Para competir, a família aluga um veículo e paga entre R$ 4 mil e 6 mil, dependendo da região. Mal dá para conhecer o veículo. É alugar, colocar na pista e correr, torcendo para não quebrar ou bater, já que o prejuízo fica por conta do piloto. Se vem o pódio, ótimo. É uma medalha ou um troféu a mais para enfeitar a sala de casa.

Mas resultado (ainda) não vira dinheiro. E Elísio não tem o "dólar no motor", que é como chamam nas pistas de corrida quem tem verba para bancar a carreira. Para o alagoano, existe o "paitrocínio" do seu Francisco Elisberto, que não tem nem de perto o poder de investimento que os rivais do filho, "que chegam de BMW e helicóptero", têm. Ex-funcionário dos Correios, ele investiu o que tinha e o que não tinha para o filho alcançar sucesso no automobilismo.

Chamado de "promessa" por Wilsinho Fittipali, irmão de Emerson e ex-piloto de F1, o jovem vive com os pais em Belém, cidade com 5 mil habitantes no interior de Alagoas. Já foi vice-campeão paulista de F-Vee Junior, uma categoria escola de monopostos, em 2018. Nesse ano, ganhou uma das corridas na única etapa que disputou do torneio, já na categoria principal. Mas isso foi em fevereiro. Além da falta de dinheiro para ir às competições, a pandemia prejudicou os planos. Hoje, ele só compete pela internet — ainda assim, é o vice-líder da Copa Sul-Americana de Fórmula Truck (virtual) usando um setup (conjunto de computador, volante e caixa de acelerador e marchas) doado.

Bruno Fernandes, em Colaboração para o UOL Esporte

"Kartossauro" penhorado

A paixão pela velocidade surgiu quando ele era criança. Aos 8 anos, começou a correr em uma pista de kart montada em uma praça de Arapiraca, a segunda maior cidade de Alagoas. O primeiro kart veio aos 12. Originalmente vermelho, o veículo foi pintado de verde e amarelo pelo próprio Elísio. Eram as cores do Brasil que ele sempre reproduzia nos brinquedos quando era criança. Hoje, carrega o orgulho de ser nordestino em todas as competições online. A frase "Sou Nordestino" está à frente do seu veículo e mostra para todos que o assistem de onde ele é.

"Ele ganhou esse kart e ficava com ele para cima e para baixo. Próximo à nossa casa, há uma ladeira e ele costumava fugir da gente para testar o carro nela", conta o pai de Elísio.

Quando ele tinha 13 anos, o pai, com dívidas, vendeu o kart, que de tão velho foi apelidado de "Kartossauro", por R$ 1.800. Perdia-se o carro para engatar a marcha.

"Nós vendemos para um amigo [o mecânico e primeiro treinador do jovem] e ele o mantém guardado até hoje. Garantiu a mim que não vai vendê-lo. Ele aluga uma vez ou outra para algumas pessoas, mas diz que espera o dia em que vamos ter dinheiro suficiente para recuperar o primeiro kart do meu menino. Esse é um dos meus grandes objetivos", conta.

Bruno Fernandes, em colaboração para o UOL Esporte

O sonho do pai realizado no filho

Funcionário dos Correios durante quase toda a vida, Elisberto formou-se em Direito, mas não passou na prova da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Ele construiu sua história na cidade de Belém junto à esposa e ao único filho. Desde novo, Elisberto sempre foi um entusiasta do automobilismo e assistia às competições pela televisão na hora que fossem, até de madrugada. Com o nascimento de Elísio, nada mudou. Entre choros e trocas de fralda, sobrava um espacinho para as provas.

Quando criança, o menino nunca fez a ligação entre os carrinhos que ganhava e a paixão do pai. Mas passou a ficar curioso: onde o seu pai estava durante a noite? Enquanto investigava, ganhava consciência do que era o automobilismo, Elísio passou a compartilhar com o pai o amor pelo esporte.

"Ele sempre dormia antes. Eu ficava lá assistindo, pensando nele. Era meu sonho colocá-lo num daqueles carros para competir. Nunca quis acordá-lo, mas ele deu um jeito. Ficávamos nós dois juntos assistindo à TV e comentando as provas", lembra o pai.

A vontade de assistir às provas independe de tempo e ocasião. Durante a visita da equipe do UOL, Elísio pediu uma pausa de dez minutos para assistir à largada de Le Mans, uma das mais tradicionais corridas automobilísticas do mundo. "É coisa rápida, mas eu preciso ver. Tem problema para vocês?", perguntou.

Arquivo pessoal

Amor por velocidade ajuda na recuperação após acidente

O amor pela velocidade desde a infância, aliás, foi a grande responsável pela recuperação de Elísio após um grave acidente. Quando ele tinha apenas três anos, foi atropelado por um carro na BR-316, no povoado Cabeça Dantas, em Belém, e ficou internado em uma UTI por cerca de 30 dias. Não bastasse o acidente, sete dias depois ele foi diagnosticado com meningite. Um lado do corpo ficou paralisado por mais de um ano. A recuperação contou com um aliado conhecido: o velocípede da infância.

Ele gostava muito de pedalar no brinquedo e isso não mudou nem mesmo após o acidente. Os médicos que acompanhavam o garoto afirmam que a brincadeira infantil foi fundamental para a recuperação dos movimentos. Conhecendo a história e todas dificuldades enfrentadas por Elísio para se manter nas pistas, o locutor e amigo Carire Cross o apelidou de "Garoto Superação".

Meu filho foi um lutador desde o começo. Nós éramos muito novos quando isso aconteceu, ainda estávamos estudando, e cuidar de um filho que sofreu um acidente desses era muito difícil. Felizmente, ele se recuperou e há muito tempo não sente nada. Ainda lembro dele andando em cima do velocípede dentro de casa

Maria Inês Gomes de Oliveira, mãe de Elísio Netto, sobre acidente na infância

Bruno Fernandes, em colaboração para o UOL Esporte

Bens à venda e sandálias para pagar gasolina

Além do primeiro kart, a família precisou vender terrenos e carros para pagar viagens pelo Brasil para o filho competir. Em Alagoas sequer existem competições de automobilismo, por exemplo. "Já fomos para campeonatos sem saber como faríamos para nos manter lá", diz Felisberto.

Economizamos em tudo: levamos nossa comida, nossa água e chegamos nos locais em nosso carro Uno. Os outros pilotos, que tinham aquele 'dólar no motor', chegavam para competir em BMWs ou até mesmo em helicópteros. Imagina: a gente saindo de Alagoas para competir contra gente que era levado e buscado de helicóptero".

Nos dias de competição, não era só Elísio quem se dedicava ao trabalho. Enquanto o pai o ajudava a barganhar o melhor valor para alugar o veículo para correr, a mãe, Maria Inês, ficava do lado de fora do autódromo, vendendo sandálias e outros objetos para arrecadar a renda que pagaria um pernoite em um quarto de motel após a competição.

"É difícil [não saber onde vão dormir]. As sandálias artesanais foram a alternativa para que possamos ter onde dormir ou até mesmo para o dinheiro do combustível da volta, quando viajamos pelo Nordeste. Já aconteceu de voltarmos com o carro já na reserva e com o risco de ficarmos parados no meio da estrada porque não tínhamos dinheiro para abastecer", conta Maria Inês, emocionada. "Era aproveitar as descidas para desligar o motor e economizar a gasolina".

Equipamento de treino doado e planos de voltar a correr

Já que não tem carro para treinar, Elísio precisou de ajuda para conseguir os equipamentos para competir no automobilismo virtual. Segundo o pai, seriam necessários mais de R$ 10 mil para construir um setup de nível básico, com um computador rápido, volante, acelerador, freio e embreagem. Estava fora de cogitação para a família.

No entanto, a ajuda veio de um amigo da família, que usa as competições para se divertir. Ele doou os equipamentos para Elísio, que não consegue passar um dia sem repetir rito narrado no início deste texto. Enquanto a reportagem conversava com Elisberto, o garoto competia. Pedia só mais um "tempinho" para poder dar atenção. Precisava ser mais rápido que outro competidor.

O automobilismo é um esporte caro, e a realização do sonho depende de muito mais dinheiro do que a família tem. "Eu peço R$ 100, R$ 200 mensais às empresas aqui de Alagoas e ninguém me dá nada. Não me respondem, às vezes. E isso entristece, sabe? Hoje eu estou devendo dinheiro para banco e até para agiota, não tenho mais recursos. Gastei tudo o que tinha em fazer do Elísio um grande piloto e ele mostrou que tem talento. No começo, eu só não imaginava que fosse um esporte tão caro", desabafou Elisberto, que nem pensa em desistir.

Ainda há chances de competir no ano que vem, mas depende de uma recuperação nas condições financeiras da família após a pandemia. Além disso, Elisberto não vê possibilidade de reconhecimento em território brasileiro. "Esse menino tem que sair do país. A Europa é muito cara, então temos os Estados Unidos como uma opção. Mesmo assim, com a economia [em baixa] e a alta do dólar, é muito difícil. Só me resta ficar correndo atrás de pessoas que podem ajudá-lo, porque eu, infelizmente, não posso mais", lamentou.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Equipe de um homem só

Apesar de dar uns pitacos nos treinos online do filho, Elisberto aprendeu a deixá-lo sozinho. Elísio coloca pressão em cada volta que faz, sente que precisa ser o melhor e faz das corridas virtuais um mundo para ele. Só divide o tempo para comer, dormir, beber água e estudar. Disciplinado, o jovem também é o próprio nutricionista e perdeu 8kg durante a pandemia. Quer se manter em forma para quando voltar às pistas.

No asfalto, a equipe de um homem só faz ainda mais sentido. Ao contrário dos pilotos das grandes escuderias, Elísio não tem à disposição engenheiros e nem quem analise as voltas ou lhe explique o funcionamento do carro durante a prova. Sequer há equipe de rádio. Ninguém chega junto por conta da falta de dinheiro.

Mas eu até prefiro esse silêncio. Não tem ninguém na minha cabeça na hora que estou correndo. Nas provas, é só chegar e competir. Não passa muito disso. Seria bom ter um pouco mais de suporte, mas entendo que as condições não ajudam".

O piloto chegou a receber algumas dicas de Wilsinho Fittipaldi, mas a distância e a falta de recursos atrapalham até na hora de conseguir esse contato. "Ele disse que eu tinha grandes chances de ir à Formula 1, mas é difícil que consigam me ver fora das corridas. Recebi muitas dicas no começo dessas conversas em 2018, mas hoje é muito difícil. Todos os meus treinos e competições agora são online e dificilmente vou competir presencialmente nesse ano. Como conseguiria ter a orientação?"

Há dois anos, o ex-piloto de Fórmula 1 chegou a dizer que Elísio era uma grande revelação da FVee.

Esse menino já demonstrou muito talento, é rápido e, mais importante, consegue levar o carro até o final das corridas. Ele já merecia essa vitória há algum tempo e agora deve buscar sempre a evolução

Wilsinho Fittipaldi, ex-piloto da Fórmula 1

Bruno Fernandes, em colaboração para o UOL Esporte

Troféus não dão dinheiro

A frase "dólar no motor" perde um pouco o sentido ao entrar na sala do piloto, lotada de troféus e medalhas das mais variadas modalidades. Competindo oficialmente desde 2015, Elísio tem mais de 30 premiações. "Uma pena que troféu e medalha não dão dinheiro", lamenta o jovem.

"Tínhamos uma secretária aqui em casa antes das coisas começarem a apertar. Ela sempre via a gente viajando, voltando com prêmios e várias outras coisas e pensou que fôssemos ricos", conta aos risos Elisberto.

Em março deste ano, em sua terceira temporada na FVee, o alagoano conquistou sua primeira vitória na classificação geral antes da paralisação das competições. Ele já havia vencido quatro provas na FVee Júnior nos últimos anos treinando apenas com seu simulador. O resultado aconteceu depois de um susto. "Eu estava na briga pela liderança quando perdi o controle do carro porque tinha óleo na pista", lembra o piloto. "Mas consegui me recuperar e garantir esse resultado muito importante para mim e para o automobilismo de Alagoas", diz Elísio.

Em 2018, ele foi vice-campeão na FVee Júnior e em 2019 ficou com o terceiro lugar. O alagoano ainda se destacou por marcar a pole position no treino classificatório, a primeira em sua carreira, e registrou as voltas mais rápidas nas duas provas durante o mês de março. Pela Copa Sul-americana de Fórmula Truck, modalidade que começou a disputar neste ano, Elísio é o atual líder do campeonato, vencendo as etapas de Goiânia e de Buenos Aires das corridas virtuais.

Infelizmente, essas competições não dão dinheiro, elas servem apenas como degrau para chegar nas que realmente dão lucro, mas até para ganhar dinheiro tem que investir antes. Tem que ter o dólar.

Francisco Elisberto, Pai de Elísio Netto

Torcer para não faltar luz e para internet não cair

Assim como nas pistas, o treinamento e as competições online têm problemas que fogem ao controle de Elísio. Se no asfalto, há chances de o carro falhar ou quebrar, durante uma competição pela internet há um grande risco de faltar energia ou de haver problemas de conexão. Em uma cidade pequena como Belém, isso é o usual.

"Eu sempre fico muito triste quando tenho provas e as perco porque faltou energia. Nós trocamos a provedora de internet três vezes e mesmo assim continuamos tendo problemas. Às vezes o jogo demora para iniciar ou não conseguimos nos conectar nas competições. É eliminação na hora", diz Elísio.

Segundo Elisberto, a frustração do piloto é muito grande quando esse tipo de coisa acontece. Por sorte, durante as últimas competições não houve esse tipo de problema. Entretanto, quando a equipe do UOL estava na casa, assistindo a uma das voltas simuladas, faltou energia.

A família toda se entristeceu. Não só porque havia sido perdido um progresso, mas porque uma queda de energia também poderia significar a perda de algum dos equipamentos.

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