Quando Morumbi era de todos

Briga entre Juvenal e Andrés Sanchez pôs fim às grandes finais no estádio que já foi "Maracanã paulista"

Eder Traskini e Vanderlei Lima Do UOL, em Santos e São Paulo Ricardo Nogueira/Folha Imagem

Andrés Sanchez, então presidente do Corinthians, tentou nove vezes ligar para Juvenal Juvêncio, que ocupava a presidência do São Paulo. Nas nove vezes, a ligação caiu na caixa postal. Nenhuma das tentativas foi retornada. "Enquanto eu for presidente, o Corinthians não joga mais no Morumbi. A não ser, claro, quando for mando do São Paulo", disse Andrés Sanchez em 14 de fevereiro de 2009 após ser reeleito presidente do Corinthians.

As nove ligações e a vitória da eleição foram marcantes: terminava ali a era do Morumbi como um estádio de todos no futebol paulista. Foi assim que a cidade de São Paulo perdeu o seu Maracanã.

A frase de Andrés e a ruptura tiveram origem em um clássico entre Corinthians e São Paulo que ainda não tinha sido realizado. Dias antes, o Tricolor anunciou que não liberaria 50% da carga de ingressos para o clássico que ocorreria no dia seguinte à eleição do Timão no Morumbi. Os corintianos teriam de se contentar com os 10% do regulamento.

A decisão partira de Juvenal e ia contra um acordo entre os rivais: o Corinthians mandava seus grandes jogos no Morumbi, pagando aluguel ao São Paulo, e, em troca, tinha direito a 50% da carga de ingressos para seu torcedor nos clássicos realizados no estádio.

Com apenas 10% dos ingressos, o Timão abandonou de vez o Morumbi em favor do Pacaembu — movimento que seria seguido pelos demais rivais.

A partir dali, o estádio perdeu a cara de campo neutro que tinha. E virou a casa, apenas, do São Paulo.

Ricardo Nogueira/Folha Imagem
Guilherme Lara Campos/Folhapress Guilherme Lara Campos/Folhapress

Os clássicos eram realizados no Morumbi porque o estádio do Palmeiras era pequenininho (Palestra Itália) e o Corinthians nem estádio tinha. Boa parte era no Pacaembu, mas depois o Pacaembu também ficou pequeno com a população aumentando. E o Pacaembu também ficou velho e várias vezes foi interditado pra reformas. Ficamos um período aqui em São Paulo só com o Morumbi. Tinha jogo todos os dias. Eram tantos que até prejudicou o gramado. E para o São Paulo era interessante porque estava tentando se recuperar, não tinha dinheiro."

José Silvério, narrador, explicando como o Morumbi virou o estádio de todos nos anos 70

Rubens Cavallari/Folha Imagem
Sinais de depredação após a partida entre São Paulo e Corinthians do dia 15 de fevereiro de 2009, a primeira depois da ruptura entre Andrés e Juvenal e que acabou com o "Morumbi de todos"

Por que Juvenal agiu assim?

Juvenal Juvêncio tinha uma personalidade marcante tanto para polêmicas quanto para episódios divertidos. No capítulo da quebra do acordo com Andrés Sanchez, há um raciocínio lógico e uma pressão interna que explicam a decisão muito além do "perfil Juvenal".

"Não é que ele acordou de mau humor e decidiu fazer isso com o Corinthians. Não foi uma decisão tomada do dia para noite, entende?", contou Marco Aurélio Cunha, ex-superintendente de Futebol do São Paulo, ao UOL Esporte. Segundo ele, a depredação do estádio após cada partida tinha um custo elevado e que acabava fazendo o Tricolor ter prejuízo. "Quebravam o banheiro, você cobrava do clube mandante e não queriam ressarcir", lembrou.

Além disso, havia pressão da própria torcida são-paulina, que via o estádio como muito neutro para os principais rivais. Outro fator que pressionava a cúpula são-paulino era a falta de reciprocidade: a torcida meio a meio ocorria em clássicos no Morumbi com o São Paulo como mandante, mas não quando o Tricolor visitava Pacaembu ou Parque Antártica. "Alegavam que era uma questão de segurança, porque o Morumbi era seguro para dividir igualmente e os outros estádios não eram", disse Cunha.

Mário Gobbi, diretor de futebol do Corinthians na época, lembra que o episódio do rompimento do acordo revoltou Andrés Sanchez e o fez prometer nunca mais atuar ali.

O Corinthians sempre mandava os seus grandes jogos no Morumbi e jogos corriqueiros no Pacaembu. Quando o Andrés assumiu a presidência, fez um acordo com o presidente Juvenal para que o Corinthians mandasse todos os jogos no Morumbi. Nos clássicos Corinthians x São Paulo, teria torcidas meio a meio. Quando foi o primeiro Corinthians x São Paulo, o Juvenal fez valer a regra dos 10% de ingressos. Andrés ficou indignado porque tinha um acordo que seria 50%. Ali houve uma cisão e a partir daquela data o Corinthians nunca mais mandou jogos no Morumbi."

Mário Gobbi, ex-diretor de futebol do Corinthians

Folhapress O gol de Basílio em 1977, para 93 mil torcedores no Morumbi

O gol de Basílio em 1977, para 93 mil torcedores no Morumbi

Grandes finais no Morumbi (sem o São Paulo)

  • Paulistão de 1977

    Os três jogos da final do torneio ocorreram no Morumbi. O Corinthians venceu o primeiro por 1 a 0, perdeu o segundo por 2 a 1 com 146.082 pessoas presentes -- até hoje o recorde do estádio. Na terceira partida, com 93 mil torcedores presentes, o Timão venceu com o histórico gol de Basílio e encerrou um jejum de 22 anos sem títulos relevantes.

  • Paulistão de 1984

    Na última rodada do torneio estadual que fora disputado por pontos corridos, Santos e Corinthians decidiram o título com 111.345 pessoas no Morumbi. Serginho Chulapa marcou o único gol do jogo e deu o título ao Peixe -- que depois ficaria 22 anos sem conquistar o estadual, até quebrar o jejum em 2006.

  • Brasileirão de 1978

    O Morumbi foi palco do primeiro jogo da final entre Guarani e Palmeiras. O Bugre venceu o Verdão por 1 a 0, gol de Zenon, com 104.526 pessoas no estádio. No jogo de volta, o time do interior confirmou o título no estádio Brinco de Ouro da Princesa, em Campinas.

  • Brasileirão de 1983

    114.481 pessoas foram ao Morumbi para ver o primeiro jogo da final do Brasileirão entre Santos x Flamengo, vencida pelo Peixe por 2 a 1, gols de Pita e Serginho Chulapa. Na volta, o Maracanã registrou o maior público da história do Brasileirão, quando 155.523 torcedores viram os cariocas vencerem por 3 a 0 e conquistarem o título.

  • Libertadores de 2000

    Naquele ano, o estádio sediou as duas semifinais entre Corinthians e Palmeiras, quando o Verdão avançou nos pênaltis, e também a final contra o Boca Juniors. Com 75 mil pessoas presentes, os argentinos venceram nos pênaltis após empate durante o tempo normal e levantaram o troféu.

  • Brasileirão de 2002

    Na última final de Brasileirão antes do formato pontos corridos, Santos e Corinthians decidiram o título com dois jogos no Morumbi. O Peixe venceu o primeiro por 2 a 0, gols de Alberto e Renato, com 58.534 torcedores presentes. A segunda partida confirmou a quebra do jejum santista com o título após vitória por 3 a 2 para um público de 74.592 pessoas.

  • Libertadores de 2003

    O Santos mandou a partida decisiva da final da Libertadores daquele ano no estádio e colocou 74.395 pessoas nas arquibancadas, mas saiu de campo derrotado por 3 a 1 após já ter perdido a partida de ida, em La Bombonera, por 2 a 0, ficando com o vice-campeonato.

  • Copa do Brasil de 2008

    O Corinthians mandou o primeiro jogo da final contra o Sport no Morumbi, venceu por 3 a 1 com 63.871 torcedores no estádio. Na volta, acabou derrotado por 2 a 0 e perdeu o título na Ilha do Retiro. Foi a última vez que o Timão mandou um jogo grande no estádio.

Jorge Araújo e Evelson de Freitas/Folhapress Serginho Chulapa comemora gol na final do Paulistão de 1984 e Dinei, na decisão do Brasileirão de 1998

Serginho Chulapa comemora gol na final do Paulistão de 1984 e Dinei, na decisão do Brasileirão de 1998

Durante muitos anos, o Morumbi foi o maior palco do futebol paulista. Eu gostava muito de jogar lá quando o Santos era o mandante. Ver o estádio dividido nos clássicos com o Corinthians e com o Palmeiras era lindo. Com certeza, o jogo mais especial foi aquela decisão do Campeonato Brasileiro de 2002. Marcar o último gol da campanha em que levantamos o título e ver a festa da torcida do Peixe é uma lembrança que jamais sairá da minha cabeça".

Léo, ex-lateral do Santos

Ayrton Vignola / FOLHA IMAGEM Ayrton Vignola / FOLHA IMAGEM

Custos aumentaram, capacidade diminuiu

Se jogar no Morumbi era interessante para os rivais pela capacidade altíssima de público, isso começou a deixar de compensar conforme as exigências de segurança do Corpo de Bombeiros (AVCB) obrigaram a diminuição da capacidade total. Em 1977 o Corinthians colocou 146 mil pessoas no Morumbi para a final de Paulistão contra a Ponte Preta, mas, hoje, a capacidade total é de 66.795 torcedores.

"Era o estádio que abrangia todos os grandes jogos por conta da capacidade. Já couberam 150 mil pessoas no Morumbi. Então, óbvio, quem queria arrecadar e ter mais público mandava no Morumbi. Isso fazia o estádio ser quase neutro, até por conta do espaço que havia. Mas era o que havia de melhor: o espaço que cabia todo mundo em uma época em que outros clubes não tinham estádio desse tamanho. Foi um período muito marcante do futebol paulista", enfatizou Marco Aurélio Cunha.

O êxodo dos rivais do Morumbi também passou pelo aspecto financeiro. Após o desentendimento entre Andrés Sanchez e Juvenal Juvêncio, o São Paulo aumentou os valores cobrados e tornou inviável o aluguel do estádio para a maioria das partidas. "O São Paulo cobrava alto, mas aumentou um pouco após essa briga. Estavam convictos que os clubes continuariam a optar pelo Morumbi, o que não aconteceu. Os valores eram muito altos, maiores até que do Pacaembu. O local no Morumbi também era desfavorável pela distância e pela falta de transportes, principalmente em jogos noturnos. Pacaembu era central. Só compensava jogar no Morumbi para públicos acima de 50 a 60 mil pessoas", lembrou Marcelo Teixeira, ex-presidente do Santos, ao UOL Esporte.

Havia a questão do aluguel, mesmo. Combinei com o Sanchez de jogarmos sempre no Pacaembu. Criamos o troféu Oswaldo Brandão, que mudaria de mãos a cada vitória (no dérbi). Ademais, promovemos uma homenagem ao Rivelino e ao Ademir da Guia".

Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-presidente do Palmeiras

Leonardo Wen/Folhapress
Foto mostra um dos encontros do G4, com Peres (Santos) à esquerda, conversando com o ex-diretor do Corinthians Luís Paulo Rosemberg, e os então presidentes de São Paulo (Juvenal Juvêncio), Palmeiras (Luiz Gonzaga Belluzzo) e Corinthians (Andrés Sanchez)

O que amenizou briga

Menos de seis meses após a briga entre Juvenal e Andrés Sanchez, os presidentes dos quatro grandes clubes de São Paulo anunciaram a criação do G4 paulista. O grupo foi criado com objetivos financeiros. O intuito era explorar a marca dos quatro grandes de forma unificada, mas acabou servindo, também, para reaproximar André e Juvenal.

O primeiro passo para a constituição do grupo foi dado em uma reunião do CT Rei Pelé, em Santos. Nessa reunião, Juvenal e Andrés ainda eram desafetos. "Eles nem queriam sentar na mesma mesa. Tive muito trabalho, mas com habilidade e diálogo eles participaram bem. Brinquei que o peixe aqui em Santos não tem espinha e ninguém iria se engasgar (risos). Existe até uma foto registrando o dia em que todos já estavam bem. No início, nem foto queriam tirar", lembrou Marcelo Teixeira.

O grupo era comandado por quatro representantes, um indicado por cada equipe. José Carlos Peres, que posteriormente seria presidente do Santos, era o representante do Peixe e também tem lembranças das noites em que a briga entre Juvenal e Andrés já tinha ficado no passado. "Tínhamos encontro dos quatro clubes e Andrés e Juvenal tomavam vinho juntos e riam muito. Quando o Juvenal morreu, fui avisar o Andrés e ele chorou", contou Peres ao UOL Esporte.

Staff Images / CONMEBOL Staff Images / CONMEBOL

Tem volta?

Se na capital paulista Corinthians e Palmeiras agora tem suas modernas arenas com alta capacidade de público, o Morumbi ainda é uma opção para o Santos. O Peixe conversa com a WTorre para a construção de uma arena, mas o martelo ainda não foi batido.

Assim, o clube alvinegro tem apenas a Vila Belmiro para mandar seus jogos e já indicou o Morumbi à Conmebol como possível caminho para disputa das oitavas de final da Copa Sul-Americana. A entidade exige capacidade para 20 mil pessoas e o último laudo da Vila aponta apenas 18 mil. A Arena Barueri também é uma opção.

O clube costumava mandar jogos com exigência maior do que a capacidade da Vila no Pacaembu, mas o estádio está indisponível desde fevereiro de 2020 — fechado para reformas após ser concedido à iniciativa privada. A prioridade santista neste momento é fechar o acordo para também ter um estádio com maior capacidade.

Ayrton Vignola / FOLHA IMAGEM Ayrton Vignola / FOLHA IMAGEM

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