Brincadeira de gente grande

Quarenta anos depois, Futebol Cards ainda movimentam dinheiro e paixões. Preparado para a nostalgia?

Gabriel Carneiro e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo Arte/UOL

Você já tentou fazer coleção de alguma coisa? Já avisando que vale tudo: moedas, camisas de times, selos, figurinhas, miniaturas, brinquedos, livros, bottons, garrafas, chaveiros, gibis e até cartões de futebol lançados no fim dos anos 70. E aí?

Não existem estatísticas oficiais no Brasil sobre o colecionismo, como é chamada essa prática de conseguir, guardar e organizar objetos a partir dos seus interesses pessoais. Mas tem uma coisa que é fato: o ato de colecionar é da natureza humana e visto por pesquisadores, como o psicanalista Caetano Fenner Oliveira, como a "última autorização social para um adulto poder brincar."

Essa brincadeira de gente grande é coisa séria, movimenta dinheiro e paixões mesmo com o passar do tempo. É assim que acontece com os "Futebol Cards", lançados no Brasil depois da Copa do Mundo de 1978 e que circularam em novas edições até 1980. Mesmo 40 anos depois, o UOL Esporte mostra que há brasileiros que tratam a coleção como divertimento, tesouro, herança.

Na época, a embalagem onde vinham os chicletes Ping Pong era acompanhada por três cartões promocionais. Na parte da frente de cada um destes cartões, nome, foto e o time de um grande jogador brasileiro. Atrás, informações e curiosidades sobre tal craque, um modelo inspirado no marketing dos esportes americanos. Foram 486 cards destes, que a criançada comprava, trocava, disputava e guardava. Mais 104 da série "Grandes Jogos", que não fez o mesmo sucesso.

Esse culto ainda está vivo, e aqui você conhecerá histórias nostálgicas —com cheirinho de mofo— sobre os colecionadores, suas coleções e até o fetiche pelos cards impressos com erros. Tem quem pague até R$ 150 em um único cartão se ele for raro, sabia? A brincadeira da infância virou hobby na vida adulta.

Arte/UOL

Quem é o colecionador?

O primeiro chiclete vendido no Brasil foi o Ping Pong, fabricado pela Kibon (a marca de sorvete, mesmo). O nome trocou de mãos ao longo dos anos e foi extinto pela Mondelez depois de passar por Kraft Foods, Adams e Cadbury. Aquele chiclete borrachudo que exigia esforço do maxilar do cliente e dava lucro aos dentistas não é mais vendido, mas fez história.

Na época da concorrência com os chicletes Ploc, que prometiam mais maciez e bolas maiores, é que novos atrativos foram pensados para encantar as crianças. Um dos primeiros foram os "Futebol Cards", mas também houve coleções de figurinhas de outros esportes, animais, personalidades e mais tarde sucessos da Disney, como "O Rei Leão" e "Aladdin", e até da dupla Sandy & Júnior.

Mas aqui vamos deixar o "Dig-Dig-Joy" de lado e nos atentar aos Futebol Cards, que foram criados em meio à euforia da Copa do Mundo de 1978. No evento de lançamento da promoção do "chiclé dos bons de bola" craques da época compareceram, como Sócrates e Chicão. Também teve show de "Os Originais do Samba" com Mussum. As crianças que viveram o furor dessa época são os colecionadores de hoje.

É possível traçar um perfil desta categoria na atualidade: homens, porque era um tempo de pouca aceitação às mulheres no universo esportivo, perto dos 50 anos, e que estão financeiramente estabelecidos na vida. Assim, o investimento na coleção é uma diversão resgatada da infância.

Acervo pessoal

A jornada de Eder

Os olhos do menino de 13 anos apaixonado por futebol brilharam com a novidade que vinha junto com os chicletes. A vontade de mascar era infinitamente menor que a de colecionar os cartões com fotos dos craques brasileiros. Então, família e amigos eram presenteados com os de sabor tutti-frutti.

E Eder ia juntando os tais cards. Chegava da escola e passava na mercearia perto de casa para achar novos e conseguir trocar os repetidos com colegas. Até que chegou um dia em que o vendedor disse que tinham acabado os chicletes com cards de futebol. Um caminhão passou e recolheu o que restava, simples assim. "Pô, acabou minha brincadeira?", lembra de ter questionado, nervoso.

"Eu saí correndo e pensei: 'eu vou lá na padaria e vai dar tempo, vou chegar antes do caminhão passar'. Mas eu cheguei lá e também já tinham levado. Andei mais um pouco e nada. Eu acabei passando em quatro mercados, uma padaria e já não tinha mais."

A brincadeira acabou do mesmo jeito que começou: do nada. O menino ainda brincou mais um pouco, mas por fim abandonou os cards em casa, assim como abandonou jogos de botão, soldadinhos de chumbo e demais brinquedos antigos. Cresceu, estudou Informática, se formou como analista de sistemas, foi morar sozinho, formou família. O tempo passou. E um dia recebeu uma ligação.

"Vinte anos depois dessa época, certo dia eu fui visitar a minha mãe. Minha irmã mais nova comentou que ela tinha feito uma limpeza no sótão e achou um saquinho com 150, 200 cards da época. Aquilo me despertou alguma coisa, era muito tempo daquilo tudo parado. Eu comecei a relembrar a história, coletei informações, conversei com pessoas de outros Estados e, quando fui ver, acabei montando um site para falar sobre os Futebol Cards", diverte-se.

O menino Eder agora é o professor univesitário Eder Daniel Corvalão, 55 anos. Dono de nove coleções completas de Futebol Cards.

Como a magia se mantém

O culto aos Futebol Cards se mantém pela numerosa quantidade de Ederes espalhados pelo Brasil.

Há grupos de venda dos cartões nas redes sociais e em diversas lojas virtuais. Todo mundo quer completar sua coleção —ou começar outra. Quando ainda eram permitidas aglomerações, havia encontro de colecionadores para compra, venda e troca. Também há os fãs que sonham com seus cards autografados, então frequentam jogos de futebol master pelo interior para conseguir contato com os ídolos.

Eder, que administra um site sobre a coleção, pensava até em escrever um livro, mas esbarrou na falta de informações: "Mandei um e-mail para a Kibon perguntando sobre a coleção, a Kibon me respondeu muito gentilmente que a marca Ping Pong foi vendida para a Adams e quem tinha que dar informação sobre isso era a Adams. Eu entrei em contato com a Adams e o que eles me responderam? Que em 1978 a marca era da Kibon, então eu teria que entrar em contato com a Kibon. Aí eu acabei desistindo."

O plano do colecionador era descobrir o publicitário ou agência de marketing responsáveis pela idealização do produto que conquistou sua geração. Mas o herói, por enquanto, é anônimo.

Como forma de homenagem ao criador desconhecido e também aos fãs, o departamento de arte do UOL recriou dois Futebol Cards com design antigo e jogadores importantes da atualidade. Olha aí como ficaram:

Arte/UOL Arte/UOL
Arte/UOL Arte/UOL

E os boleiros, também colecionavam os cards?

Reprodução

Pita

"Na época, eu botei naquela parte de curiosidades que queria ser cantor, aí os companheiros ficavam tirando sarro (risos). Mas foi uma coisa que todo mundo gostou. Lembro bem da minha figurinha com a camisa branca do Santos, eu estava começando a carreira. Meu pai tinha irmãos no Rio e no Recife e eles ligavam para dizer que estavam comprando o chiclete só para me achar. Foi uma época especial."

Reprodução

Reinaldo

"Naquela época quase todo mundo colecionava. E para nós jogadores era uma exposição nacional, né? Cada time vinha com seus jogadores, tinha um alcance no país inteiro. Eu comprei muito chiclete, mas nunca tirei a mim mesmo (risos). Eu era figurinha carimbada e a gente comentava isso no vestiário. Também falávamos quem estava feio nas fotos, trocávamos cards. Era gostoso, bem legal."

Reprodução

Amaral

"Quando os cards foram lançados em jogava no Guarani. Depois fui para o Corinthians e vi que o pessoal colecionava muito mais (risos). Eu saí pelo Guarani e pelo Corinthians. Estive até no lançamento, foi uma festa de arromba. De vez em quando recebia ligação de amigos em casa, naquela época não tinha celular: 'pô, tirei você, quando te encontrar te entrego'. Era uma diversão para todos."

Passado e presente

A coleção dos Futebol Cards não tinha álbum. Era possível pedir à Ping Pong uma espécie de fichário para organização com o envio de dez embalagens por correio. Esse tal fichário era chamado de "Porta Craques" e hoje em dia é um item ainda mais raro entre os colecionadores, assim como os displays de papelão que expunham os envelopes em mercados, padarias e mercearias. Quem tem não vende.

Também existia um cartão de controle com os nomes dos jogadores de todos os cards para você riscar os que já tinha. A primeira coleção, dos craques de 22 times, vai do número 1 ao 526, mas 40 jamais foram publicados por erros de numeração. A teoria dos colecionadores é que o atleta pode ter faltado no dia do ensaio de fotos —o card 115 do Flamengo, por exemplo, não existe. E é um "vizinho" de Adílio, 116, e Zico, 117.

Alguns jogadores também aparecem em mais de um card. O próprio Zico, Falcão, Pedro Rocha e Sócrates são alguns exemplos. O último cartão da coleção é do ponta-direita Zair, da Portuguesa, número 526. É peça rara. No "Mercado Livre", custa R$ 160.

Com o tempo, é claro, as coisas mudaram. A Panini, que hoje domina este mercado, lança no fim de setembro o álbum de figurinhas do Campeonato Brasileiro de 2020, que terá cromos das Séries A e B. Já estão disponíveis o álbum da Copa América de 2021 e um comemorativo sobre a temporada 2019 do Flamengo que, além das figurinhas, dispõe de cards especiais —o que também rolou na Copa do Mundo de 2018, com direito a um fichário para organização dos cartões, como nos velhos tempos.

Uma das diferenças mais notáveis da compra de cards nos anos 70 e em 2020 é o preço. Antigamente, algumas moedas garantiam os chicletes com três cartões de material bom. No caso do álbum do Flamengo, cinco figurinhas e um card saem por R$ 3. A brincadeira está mais cara porque o futebol está mais profissionalizado e agora existe a necessidade de pagamento de direitos de imagem às federações, clubes e atletas. O custo da licença cresce exponencialmente. Uma preocupação que a Ping Pong simplesmente não tinha na época.

De acordo com relatos, a empresa pagou somente a alguns jogadores pela participação no evento de lançamento dos Futebol Cards, nada mais.

O modelo de negociação destes direitos de imagem também varia. Em 2011, por exemplo, a Panini produziu o álbum do Campeonato Brasileiro sem figurinhas de Ronaldo e Roberto Carlos, do Corinthians, que não aceitaram os valores oferecidos. Há diversas ações na Justiça de jogadores que alegam não ter autorizado o uso da imagem em álbuns, e isso só amplia a preocupação.

Para resumir: alguma editora bancar hoje em dia uma coleção como foi dos Futebol Cards é muito difícil.

Reprodução/Facebook

"Vou ali e já volto, amor"

Eram as férias do sonho do casal, uma viagem por várias cidades da Espanha durante longos dias.

Mas para Manoel de Mello Júnior, de Jundiaí, foi mais do que um simples passeio de namorados por praias e monumentos históricos. Ele aproveitou a estada em cidades como Sevilha e Madri para um objetivo pessoal: conseguir autógrafos de jogadores brasileiros residentes no país europeu em seus Futebol Cards. Primeiro, Carlos Alberto Pintinho (ex-Fluminense). Depois, Guina (ex-Vasco).

"Esses cards são meu xodó", diz o colecionador.

Para Manoel não bastava completar a coleção. Por isso é que ele vive essa aventura atrás dos autógrafos, interrompida pela pandemia. Ele já tem mais de 200 assinaturas e calcula que faltam apenas 79 entre os que são possíveis —ou seja, de ex-jogadores ainda vivos. O destino das próximas férias com Tatiana ainda está pendente.

"Na minha opinião é a melhor coleção de figurinhas de todos os tempos, e a gente gosta de mostrar aos amigos que vêm em casa. Guardo num bauzinho e mexo muito nelas, o tempo todo. Eu já falei para os colegas que quando eu ficar velhinho vou doar para algum museu, é minha herança", conta o torcedor do Corinthians.

Reprodução

Cards invertidos, raros e inexistentes: bora colecionar?

As coleções de Futebol Cards não foram muito regulares ao longo dos três anos de edição. Na primeira tiragem só havia cartões de times de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Mas deu certo e ampliaram para outros Estados até o total de 22 clubes —inclusive alguns longe dos holofotes da atualidade, como Caldense, Portuguesa e Londrina.

Essa falta de simetria provocou distorções. Existem envelopes diferentes, por exemplo. E mais do que isso: existem cards fáceis de encontrar e cards extremamente raros. Os de Minas Gerais e Paraná, que só vieram numa terceira edição, já perto do fim da coleção, tiveram menos cartões em circulação. Quanto mais alto o número, mais custoso encontrar. Esses são disputados com mais interesse pelos colecionadores.

Outras duas curiosidades: cinco cards de jogadores que estão no cartão de controle nunca foram publicados: Carlos Alberto Garcia (Vasco), Ivo Wortmann (Palmeiras), Alexandre Bueno (Guarani), Beto (Botafogo) e Gilberto (Caldense). "De vez em quando aparece alguém pelo site avisando que tem erro, que essa pessoa tinha a figurinha do Carlos Alberto, do Vasco da Gama, jura de pés juntos que tinha e que o amigo dele viu (risos). Então eu tenho que explicar que não saiu, que ninguém tem. Se me mandarem a imagem eu acredito", brinca Eder Corvalão.

Existe um fetiche dos colecionadores por cards com erros, também. No Guarani, as fotos de Capitão e Bozó estão trocadas. Na Ponte Preta, a foto de Osvaldo na verdade é de Toninho Costa. No Atlético-MG, Luizinho aparece com o nome errado. E por aí vai. Alguns tiveram correção em novas tiragens, o que aumenta a raridade (e o desejo) por cartões com defeitos. Aliás, é melhor não chamar de defeito perto deles...

O card corrigido é um card comum, o pessoal paga R$ 2 no mercado. O card invertido, no caso, é um card raro, que circulou pouco tempo, então é vendido em torno de R$ 100."

A flutuação dos preços mostra o seguinte: dos 486 cards, cerca de 400 são considerados comuns, de R$ 1 a R$ 6, e os outros têm algum nível de raridade, podendo custar até R$ 150. Tem quem venda a coleção completa, a depender do estado de conservação, por valores entre R$ 3 mil e R$ 3,5 mil. É um hobby caro.

Mas que dá vontade, dá.

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