Jesualdo chegou ao Brasil em janeiro. Zulmira já não acreditava em um novo clube. Afinal, o marido, aos 74 anos, falava há tempos em diminuir o ritmo de trabalho. "Mais uma vez surgiu o convite do Santos e a aposentadoria ficou para mais tarde [risos]. Mas como era o Brasil, eu aceitei de bom grado. Fui cheia de vontade, cheia de sonhos e na torcida para o Santos vencer. Com muito carinho. Mas infelizmente veio essa maldita dessa pandemia", diz Zulmira ao UOL Esporte.

"Adoro o Brasil e o povo brasileiro. Foi uma grande alegria [estar no Brasil], apesar de tudo. Eu já estava pensando nas mudanças que aconteceriam com o Jesualdo. Há muito tempo analisamos 'vai aposentar... vai aposentar'. Até pensei que nunca chegaria esse momento", conta.

Na nova cidade, ela aproveitou para buscar sua própria brasilidade. "Santos é uma cidade com muito encanto e muita vida. Então ficávamos muito entretidos. Ora a ver navios e embarcações, verdade. Ora a cozinhar e a tratar da vida da casa, que é uma coisa que me dá prazer. Sempre amei cozinhar. Aprendi alguns pratos brasileiros. Amo a vossa cozinha também. Aprendi a fazer feijoada, cozinho praticamente como brasileira [risos]. O Jesualdo também ama".

Zulmira até já "importou" a receita. "Já fiz um jantar aqui em casa [em Portugal]. Será um dos pratos frequentes na minha mesa, com certeza. Aprendi a fazer peixe com molho, muito à vossa maneira. Aprendi a fazer uma sopa completamente diferente da nossa. A vossa leva carne, não tem nada a ver. A nossa é muito característica, jamais irá carne na sopa. Aprendi várias coisas da gastronomia brasileira e estou muito feliz por isso."

Como bom amante do futebol, Jesualdo mantém uma rotina de estudos do campo-bola. Desde que chegou, no início do ano, assistiu ao jogo do tricampeonato do Santos na Libertadores, aquele time de Neymar e Ganso treinado por Muricy Ramalho que venceu o torneio sul-americano em 2011. Ele também procurou por partidas mais antigas na internet, desde a década de 70.

Essa rotina só se intensificou com a quarentena. Enquanto assistiam a jogos variados, Jesualdo e sua comissão técnica criavam um plano de atividade física e buscavam referências de comportamento nos adversários do Santo e em times europeus. A intenção é moldar o Santos a seus pontos fortes e se adaptar ao que os rivais fazem de melhor.

Essas conversas são feitas por chamadas de vídeo — nem todos da comissão estão no Brasil. Apenas Jesualdo e Rui Águas foram ao CT Rei Pelé neste período. A dupla, além de manter a forma física pelas dependências do local, também se reuniu para debater sobre o retorno do Santos após a pandemia.

Nem Zulmira escapou do debate. Fã de futebol, a esposa do treinador confessa que frequentemente dá pitacos, mesmo sem Jesualdo pedir.

"Adoro futebol, independentemente de ser a mulher do treinador. Tenho minha equipe do coração. Eu dou muita dica, muita dica mesmo. Ele me chama pra conversar, pergunta opiniões muitas vezes. Mas independentemente dele pedir ou não, eu dou minha opinião mesmo assim [risos]. Se bem que deve entrar por um ouvido e sair a milhão pelo outro. Ele não deve ligar. Mas eu dou minha opinião."

Em meio a muitos momentos de alegria, a tristeza bateu à porta de Jesualdo. Sua irmã, Maria Manuela, morreu em um incêndio aos 80 anos em Portugal há dois meses, enquanto ele esteve confinado no Brasil. O treinador sequer conseguiu comparecer ao velório. Não havia voos disponíveis em abril para Portugal, consequência do novo coronavírus.

Longe de casa, a notícia veio por telefone. Maria Manuela saiu do prédio com vida, mas resolveu retornar ao apartamento para pegar alguns pertences e não conseguiu sair novamente. Foi encontrada por bombeiros desacordada. Levada ao hospital ainda com sinais vitais, não resistiu.

"Não tenho palavras para definir o momento em que recebemos o telefonema. Ninguém esperava uma tragédia daquelas, ainda mais como foi. Sendo uma relação de irmãos como vejo muito poucas. Ela tinha uma paixão louca por ele. Eram só os dois. Ela havia sido um pouco mãe dele. Vivia para a filha e para o irmão. Foi muito duro, muito duro para ele. Tive medo que algo pudesse acontecer ao Jesualdo. Foi de fato horrível, não pudemos comparecer", diz Zulmira.

"Não comparecemos porque não tínhamos maneira de sair daí [Santos]. Não havia voos. Não tínhamos como, com a pandemia... No velório, também só poderia ter um número limitado de pessoas, o corpo não podia estar muitos dias, portanto foi muito rápido. É cruel. Foi em um incêndio em sua própria casa. Ela havia saído, estava na rua, a casa estava a arder, mas ela resolveu voltar atrás de alguns pertences e não conseguiu sair depois disso."

De acordo com Jesualdo, sim. O técnico não vê chances de o esporte voltar a ser o que era antes e crê que jornalistas, torcedores e até os próprios clubes terão que entender as dificuldades de viver pós-pandemia. Ele fala em um possível "nivelamento" entre as equipes após a retomada dos campeonatos e utiliza o futebol alemão e português para exemplificar.

"Sempre disse que a Bundesliga iria servir de balão de ensaio para os outros campeonatos. E aquilo que aconteceu na retomada do Campeonato Português enquadra-se nessa ideia. Os quatro primeiros classificados não venceram. Dois deles até perderam. É a tal diluição do fosso de que falei atrás. Avisei para isto: as equipes não vão ter o mesmo comportamento, porque estão a lidar com uma situação que é inédita para todos. Nenhum treinador ou jogador pode dizer: 'Eu já passei por isso'", escreveu Jesualdo, em sua coluna no jornal "O Jogo", de Portugal.

"As equipes não vão ter a mesma facilidade para vencer porque as mais modestas vão ter melhores resultados também. E se não houver bom senso de todos, de jogadores a torcedores, se não compreenderem que as coisas nunca mais serão como eram, infelizmente vamos ter mais reações estúpidas e violentas como aquela que acontece por esses dias com o Benfica."

A situação citada pelo treinador ocorreu depois do empate do Benfica por 0 a 0 com o Tondela, semana passada. Insatisfeitos com o resultado, alguns torcedores apedrejaram o ônibus da delegação, na saída do estádio. Dois jogadores, Julian Weigl e Andrija Zivkovic, foram atingidos por estilhaços de vidro e foram atendidos por médicos.

Jesualdo lembrou que São Paulo é o epicentro do coronavírus no Brasil, que, por sua vez, é o epicentro da doença no planeta. Consequentemente, o futebol por aqui demorará mais para retomar. E isso o incomoda diante do tempo maior que times como Flamengo e Grêmio, de estados que iniciaram o relaxamento mais cedo, para treinar.

"Há equipes de alguns estados já trabalhando, e ninguém fica indiferente ao fato de quando recomeçarem as competições nacionais haver umas equipes com mais tempo de preparação do que outras. Sabe-se como São Paulo é um dos estados mais atingidos, logo as equipes deste estado como o meu Santos, o Palmeiras, o Corinthians e o São Paulo vão com certeza ter de combater essa realidade. E não será fácil para ninguém", explicou.

Falta pouco para a rotina de treinos voltar, afinal, o Santos já se planeja para realizar exames do novo coronavírus nos funcionários, elenco e comissão. Mas enquanto isso não acontece, Jesualdo continuará com suas caminhadas matinais na companhia de Rui. E aguardando ansioso pelo retorno de sua esposa ao Brasil para repetir a feijoada ao som de um pagodinho. Jesu e sua rotina à brasileira.