Solidão em campo

O jogador que passou dois meses em quarentena sozinho, dormindo embaixo das arquibancadas de um estádio no RS

Jeremias Wernek Do UOL, em Porto Alegre (RS) Tiago Coelho/UOL

Made in Colômbia

Diego Bustos nasceu em Cali, viveu dois anos da infância em Porto Alegre — quando o pai jogava primeiro no Grêmio e depois no Inter — e voltou ao Brasil no final de 2019. Em janeiro, assinou contrato com o São José embalando o sonho de ser jogador profissional.

A experiência no futebol verde e amarelo sempre foi tratada perfeita para dar uma turbinada na ascensão de um lateral com talento nas bolas paradas e de família renomada. Dario, o pai de Diego, atuou pelo Deportivo Cali e foi um dos destaques do Cúcuta-COL que surpreendeu na Libertadores de 2007. O patriarca foi um dos entusiastas do negócio com o 'Zequinha', que anunciou o reforço colombiano com pompa.

Mas no início de janeiro, o herdeiro da família Bustos teve uma lesão muscular e viu a estreia no Gauchão ser adiada. Quando o primeiro jogo parecia marcado, veio a pandemia do novo coronavírus, a suspensão do futebol e as fronteiras foram se fechando, uma a uma.

Uma ligação para a Colômbia no início de março selou a decisão: Diego ficaria em Porto Alegre para fugir de aeroportos, problemas de conexão e portas fechadas pelo receio do vírus. O que já era uma situação estranha ficou ainda mais incomum quando ele tomou a decisão de se acomodar no alojamento do clube.

Na zona norte de Porto Alegre, depois que todos os colegas de elenco saíram nas primeiras horas de isolamento, Diego ficou. Nem os jovens das categorias de base permaneceram na sede do clube. Em um estalo de dedos, o colombiano transformou um estádio em sua casa e passou a viver 24 horas na solidão das arquibancadas e de um gramado sintético.

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Estádio vazio, cabeça cheia

Quando o celular tocava às 8h30, Diego saltava da cama e ia para cozinha tentar vencer o duelo com as panelas. O café da manhã, preparado pelas próprias mãos, abria uma rotina moldada para ocupar corpo e mente com o trabalho.

A descrição do dia a dia é tão precisa que remete, inevitavelmente, à enorme quantidade de vezes que o lateral deve ter repetido mentalmente cada tarefa. O looping de acordar, comer, treinar, descansar, treinar, descansar se tornou hábito daqueles inegociáveis. Bustos ganhou autorização para usar o gramado, também recebeu aval para usar equipamentos simples que ajudam em trabalhos físicos e bolas.

Todo dia na quarentena do colombiano trancafiado em Porto Alegre foi de cuidado com músculos pela manhã e atenção à técnica no turno da tarde. A comissão técnica disparou uma cartilha de treinamentos físicos e fez moderação regularmente, com questionários sobre número de repetições e outras especificações.

Ao meio-dia, o almoço era sempre "by chef Bustos". E vinha acompanhado de um descanso para olhar TV, redes sociais e ler. O último livro foi um presente da tia, que ele ganhou no ano passado. Intitulado 'Sua Vida Melhor Agora', o exemplar de autoajuda tem mais de 340 páginas e foi importante na corrida contra os minutos.

No final do dia, jantar e cama. Deitado, ele se dividia entre chamadas para a família e séries. À noite, o telhado de zinco do resoluto pavilhão social do estádio Passo D'Areia fazia barulho só para Diego. A sinfonia metálica, que emerge de um zinco forte e reluzente, embalava o sono do garoto de 18 anos.

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Fogão é reforço de luxo

O alojamento que recebeu Diego tem paredes brancas que envolvem mesas de bar vermelhas. Nelas, utensílios domésticos e louças. A pia fica colada em um canto e é guardada por uma geladeira. Ao lado, o reforço trazido de fora: um fogão, presente de Walter Cirne, empresário de Bustos e que havia trabalhado com o pai do lateral nos anos 2000.

Foi esse fogão que salvou Digo de 100 dias à base de refeições de micro-ondas. O cardápio nascia com ajuda da mãe do jogador, consultada semanalmente via WhatsApp sobre dicas de temperos. Os mantimentos chegavam pelas mãos de Cirne ou por seguranças do clube, que se revezavam em turnos diurnos mesmo nos dias mais vazios. O contato entre jogador e funcionários, no período, era muito pequeno, quase nulo.

Debaixo das arquibancadas, corredores abertos levavam Bustos de um lado a outro do estádio. Percorrer o piso de poucos metros foi uma das distrações, que ajudava a 'esticar os ossos' nos minutos de ócio. Quando era hora de se recolher, Diego até podia escolher. Qualquer um dos oito quartos equipados com ar condicionado, TV à cabo e internet poderia virar dormitório.

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Saudade real x contato virtual

A obstinação de Bustos para jogar no Brasil tem um preço e ele sabe o tamanho. Longe da família, o jogador apelou para o WhatsApp. É a fria tela azul que encurta distância da mãe, irmã e primos.

A rotina é a mesma desde o final do ano passado. O problema é que, durante a pandemia, o sentimento de agonia galopante fica no ar. Uma ansiedade coletiva por saber quando o mundo vai voltar ao normal. Diego sequer consegue verbalizar isso, mas sente.

A saudade chegou a apertar no peito nos primeiros dias, pelo distanciamento absoluto do mundo debaixo de uma arquibancada. As lágrimas não são admitidas, nem citadas, mas...

Sentimento de voltar para casa? Não sei se é bem isso. Mas todos os dias senti saudade da família. Todos

Diego Bustos

Mas eu também entendi que o futebol é assim. Se você quer chegar, é preciso encarar coisas difíceis

Diego Bustos

Para fazer contato com alguém sem a carga emocional de ver a família, Diego chamava os amigos pela internet. Antigos colegas dos tempos de futebol colombiano compartilharam histórias, dicas de séries e filmes e alguns exercícios em uma incomum conexão entre Cali, Porto Alegre e Miami. Coisa que, agora, parece bem menos improvável que morar em estádio de futebol durante uma pandemia.

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Seleção também fica para depois

Diego Bustos começou a jogar futebol para valer nas categorias de base do América de Cali. O dom para bater na bola chamou atenção do pai, depois dos primos e na sequência de funcionários do clube colombiano. Veio também o olhar atento da seleção, que convocou o lateral para o time sub-15 e testes na equipe sub-20.

Uma nova prova era aguardada para os meses de abril e maio deste ano, a partir de convocatória nacional. A lista foi adiada em decorrência da covid-19. O nome de Bustos continua na relação de jovens que devem ser convocados para amistosos, resta saber quando.

No dia a dia com a equipe nacional, Diego fatalmente seria estimulado a mostrar a habilidade que mais gosta de cultivar: cobrar faltas. Inspirado no pai, o herdeiro também pratica batidas na bola. Foi esse um dos argumentos para convencer o São José a liberar, além do alojamento, a chave do armário onde ficam os equipamentos.

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Clube se encanta e aposta alto

Para os dirigentes e colegas de Bustos, a calma para encarar o cenário é o que mais surpreende. A tenra idade, a distância de casa e a solidão não fizeram o jogador mudar. O clube tem se encantado, também, com a aplicação do colombiano.

É justamente no fato de ele ser estrangeiro que mora a grande oportunidade. Em meio a um ciclo de estruturação e desenvolvimento, com boas campanhas no Gauchão e presença em campeonatos nacionais, o São José tem procurado garimpar talentos. Encontrar apostas fora do Brasil significa ampliar, em sem número, o leque de possibilidades dentro do princípio de prospectar, desenvolver, negociar.

"Ele tem uma força mental muito grande, além de ser bom jogador. Cobra muito bem faltas", diz Luciano Oliveira, diretor executivo do São José.

Em maio, Bustos ganhou companhia durante maio, com a chegada de mais dois jogadores para uso do alojamento. A solidão foi amenizada com os colegas, mas a distância da família segue. A rotina de treinos foi alterada por conta de recentes medidas públicas de prevenção ao novo coronavírus. Sem data para realizar o sonho de jogar no Brasil, Diego embala o amanhã em dias vividos dentro de um estádio vazio.

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