Muito além do basquete

Como o assassinato do pai transformou Steve Kerr, técnico dos Warriors, dentro e fora das quadras

Arthur Sandes Do UOL, em São Paulo Jamie Schwaberow/Getty Images

Era uma noite de jogo decisivo do Golden State Warriors nos playoffs da NBA, mas Steve Kerr entrou revoltado na sala de imprensa lotada. O treinador não quis saber de falar sobre basquete. Os EUA viviam o luto do massacre que havia deixado 21 mortos poucas horas antes, em uma escola do Texas, e Kerr não aguentava mais. Os dois minutos de fala inflamada, segurando as lágrimas, rodaram o mundo como um desabafo indignado contra a violência armada.

O treinador sabia do que estava falando. Ele teve o pai assassinado a tiros em um ataque terrorista no Líbano nos anos 1980, e a cicatriz moldou sua visão sobre armas de fogo. Hoje, Steve Kerr tem não só uma das carreiras de maior sucesso da história da NBA, mas também a consciência de que, na maioria das vezes, importa mais o que acontece do lado de fora das quadras.

"Quando faremos alguma coisa? Estou cansado de vir aqui oferecer minhas condolências às famílias devastadas. Me desculpe, mas estou cansado dos minutos de silêncio. Chega!"

A história de Steve Kerr mal cabe em sua própria vida. Ele nasceu no Líbano, de onde saiu praticamente fugido; perdeu o pai aos 18 anos e foi herói de um título do Chicago Bulls de Michael Jordan (com quem, aliás, chegou às vias de fato). Como treinador, é parte fundamental de um movimento mudou completamente a NBA com um jogo focado nos arremessos de três.

Kerr agora disputa a 11ª final de NBA de sua vida, a sexta como treinador dos Warriors. O jogo 1 contra o Boston Celtics começa às 22 horas (de Brasília) de hoje (2), em San Francisco. Os próximos são domingo (5), quarta (8) e sexta-feira (10).

Jamie Schwaberow/Getty Images

Pai assassinado marcou sua vida

Stephen Douglas Kerr teve uma infância incomum, para dizer o mínimo. Nasceu em Beirute, capital do Líbano, e passou boa parte da infância em países do Oriente Médio enquanto os pais davam aulas em faculdades da região. Apaixonou-se pelo basquete na visita a um jogo universitário em Los Angeles e começou a jogar a sério no Egito, aos 14 anos.

A carreira de Kerr evoluiu entre as idas e vindas de sua família. O retorno aos EUA o colocou no caminho certo para o basquete, mas os pais e o irmão caçula logo voltaram ao Líbano porque o pai tinha sido convidado a presidir a Universidade Americana de Beirute.

Malcolm Hooper Kerr passou 17 meses no cargo, em meio às imprevisibilidades da guerra civil libanesa. Ele ofereceu os prédios vagos a refugiados, confrontou oficiais israelitas e em janeiro de 1984 foi assassinado por dois tiros em um atentado terrorista na porta de seu escritório. O crime foi atribuído à milícia Jihad Islâmica, que alegou autoria em uma ligação telefônica à agência de notícias AFP.

Steve Kerr é a terceira geração de uma família politizada e cosmopolita. Os avós paternos haviam sido voluntários junto a refugiados do genocídio armênio, nos Anos 1910; o pai foi um pilar nos estudos sobre Oriente Médio; e ele, como jogador e treinador de basquete, usa o espaço que tem para lutar pelas causas em que acredita.

Reprodução/Twitter

Voz ativa por restrições à venda de armas

O apelo comovente na semana passada foi o pronunciamento mais recente, mas longe de ser o único de Steve Kerr sobre o perigo da facilidade para comprar uma arma de fogo nos Estados Unidos. Ele mesmo enumerou os casos recentes: dez mortos em um supermercado da cidade de Buffalo; um morto e cinco feridos dentro de uma igreja na Califórnia; dezenove crianças e dois adultos mortos em uma escola do Texas. Todos em apenas oito dias.

O treinador comprou esta briga em 2016, após um tiroteio no campus da UCLA (Universidade da Califórnia, em Los Angeles) na véspera do jogo 1 das finais da NBA entre Warriors e Cavaliers. Desde então, nunca se escondeu nos inúmeros casos de assassinato em massa por armas de fogo nos EUA.

Naturalmente, as críticas de Kerr ao armamento desenfreado nos EUA passaram a abranger críticas também ao então presidente Donald Trump, notório defensor das armas. O treinador chegou a caracterizar o governo como "liderança covarde" neste assunto e ao lado do mentor Gregg Popovich esteve na linha de frente na briga pública entre Trump e a NBA sobre a relação da liga com a China.

Deanne Fitzmaurice/San Francisco Chronicle via Getty Images

Universitário campeão do mundo e início na NBA

Armador de defesa frágil, mas especialista em bolas de três, Steve Kerr superou o luto dedicando-se às quadras. Foi o destaque da Universidade do Arizona por anos, ganhou prêmios individuais. Em um jogo emblemático contra a rival Universidade Estadual do Arizona, chorou em quadra após torcedores rivais cantarem "onde está o seu pai?" durante o aquecimento. Quando a bola rolou, acertou seis arremessos de três pontos consecutivos.

Ainda universitário, ele foi campeão do Mundial de Basquete de 1986 com os EUA, mas sofreu uma lesão no joelho que lhe tirou das quadras por vários meses. Dois anos depois, no entanto, formou-se bacharel de Estudos Gerais com ênfase em história, sociologia e inglês. Conquistou também uma vaga na NBA, draftado no segundo round pelo Phoenix Suns.

Ele seria reserva a vida inteira, mas um reserva útil, sempre confiável nos arremessos. Pouco aproveitado em Phoenix, foi trocado para o Cleveland Cavaliers e lapidado como um bom coadjuvante por quatro anos. Depois passou rapidamente pelo Orlando Magic e em 1993 finalmente chegou ao Chicago Bulls, time que o faria entrar para a história.

Nathaniel S. Butler/NBAE via Getty Images Nathaniel S. Butler/NBAE via Getty Images
Sam Forencich/NBAE via Getty Images

Coadjuvante no histórico Chicago Bulls

Aos 28 anos, o armador chegou aos Bulls animado, louco para jogar ao lado de Michael Jordan. O time parecia imbatível após os três títulos em sequência (1991-93), mas o anúncio da aposentadoria de Jordan pegou todo o mundo de surpresa.

A ausência do astro foi um golpe para a franquia. O time seguiu com Phil Jackson no comando e Scottie Pippen, Horace Grant e BJ Armstrong em quadra. Conseguiu ir aos playoffs, mas não era a mesma coisa. Curiosamente, aquela temporada 1993-94 foi a que Steve Kerr mais teve tempo em quadra em toda a carreira: média de 24 minutos por jogo, enquanto Michael Jordan tentava a sorte no beisebol.

MJ só voltou na metade do ano seguinte. Kerr perdeu alguns minutos em quadra, mas se manteve como um coadjuvante confiável, sempre certeiro de longa distância. Nas cinco temporadas com os Bulls, ganhou três títulos (1996, 97 e 98), teve médias de 8,2 pontos e 2,2 assistências em 23,2 minutos por partida e venceu o Torneio de 3 pontos do All-Star Game de 1997.

Nathaniel S. Butler/NBAE via Getty Images)

Troca de socos com Jordan e bola do título

Quando Jordan voltou da aposentadoria, em 1994, era Kerr quem o marcava nos treinamentos do Chicago Bulls. Em um deles, o clima esquentou: o camisa 23 estava irritado com o técnico Phil Jackson e descontou com uma falta de propósito em Kerr. O reserva não gostou e deu um soco no peito de Jordan, que revidou com um soco no olho. O desentendimento foi resolvido com uma ligação, e Kerr entendeu a briga como um teste de Jordan. "Ele confiou mais em mim dali para frente", lembrou, anos depois.

O torcedor do Chicago Bulls se acostumou a ver a bola parar sempre nas mãos de Michael Jordan em momentos decisivos. Em 1997, entretanto, foi diferente. Steve Kerr teve a bola do título: no finalzinho do jogo 6 contra o Jazz, ele avisou Jordan que estaria pronto se a marcação dobrasse no astro. Foi exatamente isso que aconteceu: marcado, MJ passou para Kerr, completamente livre, converter o arremesso e viver o momento que ele próprio considera o mais memorável de sua carreira.

Na festa do título, Kerr brincou com a situação em um discurso hilário que tirou gargalhadas do público, do técnico Phil Jackson e do próprio Michael Jordan.

"Muita gente tem me perguntado sobre o arremesso, então quero esclarecer: quando pedimos tempo a 25 segundos do fim, ali na conversa Phil pediu ao Michael: 'quero que você arremesse'. E Michael respondeu: 'sabe, não me sinto muito confortável em situações como esta, talvez devemos tentar outra coisa. Por que não o Steve?'. Então pensei comigo 'bom, acho que vou ter que salvar a pele do Michael de novo'. A bola entrou, esta é a minha versão, e vou mantê-la."

Já no chuveiro, fiquei pensando 'bati no menor cara da quadra', e me senti pequeno. Depois liguei de volta para o time e pedi o número de Steve Kerr. Liguei para ele e me desculpei, disse 'olha, cara, não tinha nada a ver com você. Me sinto mal'.

Michael Jordan, sobre o soco em Steve Kerr

Definitivamente ajudou na nossa relação, por mais estranho que pareça. Na época os treinos eram muito mais intensos do que hoje e eram uma parte importante para os Bulls e Michael estabelecerem um padrão para nosso jogo. Havia brigas em cada um dos times em que joguei, não era uma grande coisa.

Steve Kerr, sobre o soco de Jordan

Noah Graham/NBAE via Getty Images

Popovich foi técnico, mentor e antecessor

Kerr virou agente livre após o tricampeonato com os Bulls, assinou com o San Antonio Spurs de Tim Duncan e David Robinson e logo de cara venceu mais um título -seu quarto seguido. Foi o primeiro anel do técnico Gregg Popovich, que se tornaria mentor de Steve Kerr e seu antecessor no comando da seleção masculina de basquete dos EUA.

Ao todo foram quatro anos nos Spurs, com um hiato de uma temporada no Portland Trail Blazers. Ele se despediu da carreira de jogador em 2003, com mais um título e uma atuação de gala por San Antonio: aos 37 anos, acertou as quatro bolas de três que tentou contra o Dallas Mavericks, sendo fundamental para o título da Conferência Oeste e a vaga nas finais da NBA (título sobre os Nets em 6 jogos). Kerr tem até hoje a melhor porcentagem da história da NBA em bolas de três durante toda a carreira (45,4%).

Aposentado, Steve Kerr foi comentarista de TV por alguns meses até ser contratado pelo Phoenix Suns, do qual seria diretor geral por três anos (2007-10). Virou treinador do Golden State Warriors em 2014 e reencontrou Gregg Popovich na seleção: os dois foram campeões olímpicos juntos, em Tóquio-2020. Kerr agora assume o posto de Popovich para o Mundial de 2023 e os Jogos Olímpicos de 2024.

Tendo a oportunidade de trabalhar com ele por quatro temporadas, aprendi muito sobre o jogo, sobre as pessoas e a cultura. Muito do que fazemos no Golden State Warriors hoje eu aprendi com Pop. O mais importante que me ensinou foi que é preciso ser você mesmo. Ninguém pode ser outra pessoa, precisa ser você mesmo.
Steve Kerr, sobre aprendizado com Popovich

Gabrielle Lurie/San Francisco Chronicle via Getty Images Gabrielle Lurie/San Francisco Chronicle via Getty Images
Jim Poorten/NBAE via Getty Images

Mudando a NBA com os Warriors

Antes de Steve Kerr, o Golden State Warriors não vencia a NBA há 39 anos. Com ele, já são seis finais e três títulos em apenas oito temporadas -e contando, pois o quarto anel pode vir sobre o Boston Celtics nos próximos dias.

Seu início na liga foi avassalador: potencializou Stephen Curry e Klay Thompson, ganhou 21 de seus primeiros 23 jogos na profissão, fez o Warriors ter a melhor campanha, o ataque mais produtivo (média de 110 pontos) e mais coletivo (média de 27 assistências), além dos arremessos mais precisos da NBA (47,8% de acerto). Steve Kerr ainda hoje é o técnico estreante com mais vitórias na temporada regular (63).

Com o tempo, a excelência virou algo natural. Vendo em retrospectiva, não dá para se surpreender muito: Steve Kerr, um especialista em bolas de três nos tempos de jogador, acertou um time quase imparável nas bolas de três, um estilo que revolucionou a NBA por completo. Hoje cada time da liga se concentra nos arremessos longos e sonha em ter seu próprio Stephen Curry, enquanto Kerr mantém relação próxima com seu craque e faz a equipe funcionar uma e outra vez.

Houve quem previsse o ocaso dos Warriors na temporada passada, mas a franquia encontrou Jordan Poole com a 28ª escolha no draft, teve o retorno de Thompson após grave lesão e recriou uma equipe competitiva para voltar às finais. Resta saber se a dinastia fatura mais um troféu nos próximos dias.

Eu aprecio a liderança dele. Um treinador vir a público e dizer cada palavra que ele disse é poderoso e simbólico. Aceito o desafio de tentar usar minha voz para tentar fazer a diferença e aprecio a liderança dele neste assunto.

Stephen Curry, sobre o discurso de Kerr contra armas

Ele conhece demais o jogo, é um treinador muito inteligente. É capaz de fazer ajustes na quadra e faz isso o tempo todo. Trabalha duro, cria o melhor cenário para os jogadores e também foi um jogador inacreditável, então tem o pacote completo.

Anderson Varejão, jogou um ano com Kerr nos Warriors

O que faz Kerr ser um técnico tão bom é o equilíbrio. Claro que tem muito conhecimento de basquete, mas isso muitas pessoas também têm. Ele sempre sabe o que dizer e a hora certa de dizer, não importa a situação.

Draymond Green, tricampeão com os Warriors

+ Especiais

Naomi Baker/Getty Images

Como Luisa e Laura entraram de última hora na Olimpíada de Tóquio e conquistaram a primeira medalha do tênis do Brasil.

Ler mais
Cristiano Andujar

Do sertão para o mundo: Teliana Pereira e a última chance de vencer que o tênis lhe proporcionou.

Ler mais
Shaun Botterill/Getty Images

Marcelo Melo venceu mais que Guga, mas é menos conhecido até que homônimo ator da Globo.

Ler mais
Topo