É hora de ser radical

Denúncias de racismo se empilham no futebol brasileiro, mas mudanças da CBF apontam novo caminho no combate

Gabriel Carneiro e Igor Siqueira Do UOL, em São Paulo e Rio de Janeiro Pedro H. Tesch/AGIF

Racismo aqui hoje! Racismo! Ele viu. Teve um cara ali na torcida. Me chamou de macaco duas vezes!"

Não há ponto de exclamação suficientemente proporcional à — justificada — revolta do volante Fellipe Bastos, do Goiás, na saída do gramado do estádio Antônio Accioly, após o clássico com o Atlético-GO no dia 8 de maio.

Quem já sofreu injúria racial sabe o que o jogador sentiu naquele momento. Nos últimos tempos, chama a atenção como o racismo tem sido escancarado, expresso em palavras, nos campos de futebol.

As denúncias — em muitos casos com provas explícitas — estão aí. Tem na elite, como a de Edenilson, do Internacional, que disse ter sido chamado de macaco pelo lateral-direito Rafael Ramos, do Corinthians. Tem também na base da pirâmide, como apontou Edinho Rosa, técnico do Aimoré, ofendido por torcedor do próprio time em partida da Série D.

Investigações começam, a Polícia entra na história, tribunais desportivos também. Na Libertadores, parece que virou rotina quando há brasileiros em campo. A legislação brasileira diz que é crime. Mas esse enquadramento, por si só, não é suficiente. Um torcedor do Boca Juniors foi preso, mas voltou para casa após pagamento de fiança. E ainda fez piada na rede social no caminho rumo à Argentina.

No universo mais restrito do futebol — não só na sociedade, como um todo —, a questão é como estabelecer mecanismos eficazes de combate e punição. A CBF, pela primeira vez, tem um presidente negro. Seria esse o impulso que faltava para uma legislação desportiva mais dura a respeito do assunto?

Pedro H. Tesch/AGIF
Lucas Figueiredo/CBF

Dirigente quer perda de pontos e jogador suspenso por um ano

Não vai resolver se não for radical".

Ednaldo Rodrigues, presidente da CBF, na conversa com o UOL, dá o tom das propostas que virão a seguir. O dirigente já disse que é a favor da perda de pontos para o clube cujo torcedor cometa atos racistas nos estádios. E quer ir além para casos em que a injúria venha de jogadores.

"Quando ficar caracterizado, o atleta tem que ficar no mínimo um ano fora dos jogos. Tem que suspender o contrato durante o ano e nesse período ele fica sem atividade alguma", defende ele.

O baiano já mapeou para onde endereçar essas demandas. O momento é agora porque o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), que norteia como são as punições, está em fase de atualização. O governo federal criou uma comissão destinada a isso, mas ela não concluiu os trabalhos.

Paralelamente, a discussão sobre a atualização da Lei Pelé no Congresso deve resultar em outro movimento para mexer no CBJD — cada modalidade, segundo o relatório do deputado federal Felipe Carreras (PSB-PE), terá o seu.

"A CBF vai buscar essa proposição para uma reforma do código. Se isso já estivesse prevalecendo, você acha que teria essa continuidade? Difícil. Quando pune o clube, ele vai melhorar a cultura do torcedor, mais campanhas educativas. Se só tira o cara do estádio, dá uma multa ao clube, que recorre e paga metade?", completa Ednaldo.

Lucas Figueiredo/CBF

"Não é querer aparecer"

Além da discussão do assunto em Brasília, o presidente da CBF, ao mesmo tempo, vê um "atalho" para implementar sanções mais duras nos torneios nacionais: sugerir nos conselhos técnicos de cada uma das divisões do futebol brasileiro que a perda de pontos em caso de ofensa de torcedor entre nos regulamentos específicos.

A aceitação não é garantida. Adson Batista, presidente do Atlético-GO, por exemplo, já disse que "é um absurdo o clube ser culpado" pelo racismo.

"Posso ser voto vencido [quem vota, na verdade, são os clubes]. Mas aí é só colocar no Regulamento Geral de Competições [feito pela CBF] essa perda de pontos. Estou falando realmente para querer combater", disse Ednaldo Rodrigues.

O dirigente está em começo de mandato, veio de uma batalha política tensa para tomar o poder na CBF e sabe que pode ser acusado de tentar "surfar" em uma pauta importante como essa.

"Não é querer aparecer. É querer combater o racismo, com bastante ênfase. Não é um paliativo para no dia seguinte ter uma multa e tapinha nas costas. Se a pessoa atira para matar, mas não mata, é homicida de qualquer forma. Racismo é diferente de uma canelada. Fica na mente da pessoa", disse ele.

A CBF, nesse contexto, planeja um seminário sobre violência e combate racismo junto à Fifa. A ideia é organizar o evento em junho, em um combo de dois dias que terá esses temas e a liga. Ednaldo espera fechar a data em uma reunião em 30 de maio, em Paris, dois dias após a final da Liga dos Campeões.

'Não aguento mais ver racismo no futebol', diz colunista do UOL

Alguns casos recentes

Silvio Avila/Getty Images

Edenilson

O meio-campista Edenilson, do Internacional, acusou o lateral Rafael Ramos, do Corinthians, de injúria racial durante partida entre as equipes no dia 14. Edenilson disse que ouviu o jogador português o chamado de "macaco" durante uma dividida no segundo tempo do jogo. Foi prestada queixa à Polícia, e Ramos acabou preso em flagrante no Beira-Rio, liberado após pagamento de fiança de R$ 10 mil. O caso está sendo investigado.

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Roberto Zacarias/Ishoot/Estadão Conteúdo

Fellipe Bastos

O meio-campista Fellipe Bastos, do Goiás, afirmou que foi vítima de injúria racial na partida de seu time contra o Atlético-GO no dia 8. O jogador relatou que foi chamado duas vezes de "macaco" por um torcedor adversário quando estava indo para o vestiário. Bastos registrou Boletim de Ocorrência e foi aberto inquérito policial. O homem acusado ainda não foi identificado e a Polícia pediu 15 dias para analisar as imagens que estão disponíveis.

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Leonardo Oberherr/Divulgação

Edinho Rosa

O técnico Edinho Rosa, do Aimoré, afirmou ter sido alvo de injúria racial por parte de um torcedor de seu próprio time durante um jogo da Série D, no dia 14. O homem, encaminhado pela Brigada Militar para a delegacia, é sócio do clube e, como consta em súmula, teria dito "faz alguma coisa aí, negão". Edinho registrou Boletim de Ocorrência, mas não representou criminalmente. O prazo para isso é de seis meses.

Reprodução/Twitter

Futebol paraibano

Na final do Campeonato Paraibano entre Botafogo-PB e Campinense no dia 14, um grupo de torcedores do Botafogo acusou um torcedor do próprio time de cometer uma injúria racial durante o jogo. O homem teria chamado de "macaco" um integrante da delegação do time adversário. Ele é sócio do clube, foi identificado e houve abertura de Boletim de Ocorrência e inquérito no TJD.

Por que é racismo?

Chamar uma pessoa negra de macaco relaciona um humano a um animal, principalmente por causa da cor da pele. Além disso, a associação problemática bebe de um histórico em que a ciência foi usada para justificar a diferença de tratamento entre pessoas negras e brancas. Para eugenistas, negros possuíam compleição física e comportamento próximos aos de animais.

Também são considerados racistas manifestações, declarações ou comentários que atribuam aspectos raciais apenas a indivíduos negros. Isso pressupõe que pessoas brancas são a norma e todos que sejam diferentes devem ter suas características especificadas. Foi o que ocorreu quando o torcedor se referiu ao técnico dizendo "faz alguma coisa aí negão".??????

Infelizmente, é uma realidade que não está lincada apenas ao esporte, mas acontece todos os dias na farmácia, no ônibus, no supermercado, e muitas vezes os anônimos acabam ficando sem voz. Meu objetivo é tratar como crime. Tomei minha atitude respaldado pela lei, porque fui agredido, fui ofendido no meu local de trabalho. Meu conselho a todos é que procurem os seus direitos."

Edinho Rosa, técnico do Aimoré

Eu penso que essa é uma luta infelizmente perdida. Vamos ficar remoendo, retratando, conversando, trazendo à baila o mesmo assunto e amanhã vamos precisar falar novamente, só que de outro caso. Eu sou negro há 42 anos e sei bem como é que funciona. Não adianta levantar bandeira, porque nós fracassamos enquanto sociedade (...) É só lamentar."

Edinho Rosa, em entrevista à Web Rádio Índio Capilé

REUTERS/Sergio Moraes

Conmebol endureceu regras depois de eventos recentes

Uma série de atos racistas em sequência agitou as competições continentais sul-americanas nas últimas semanas e gerou reação por parte da Conmebol.

Um torcedor da Universidad Católica (CHI) imitou um macaco durante jogo contra o Flamengo; um torcedor do Emelec (EQU) foi flagrado dizendo "macaco, macaco, vocês são todos macacos" para a torcida do Palmeiras; um torcedor do Boca Juniors (ARG) imitou um macaco na direção da torcida do Corinthians (o que também aconteceu no jogo de volta); um torcedor do River Plate (ARG) atirou uma banana no setor da torcida do Fortaleza; e torcedores do Estudiantes (ARG) fizeram sons de macaco e gestos de descascar banana para os do Red Bull Bragantino.

Tudo isso em jogos válidos pela Libertadores no intervalo de duas semanas.

A pressão sobre a Conmebol cresceu, ainda mais depois da revelação de que a entidade punia com mais rigor infrações de marketing do que racismo. O resultado foi a alteração no Código Disciplinar da entidade, deixando mais duras as punições.

A multa mínima ao clube em decorrência de atos discriminatórios de torcedores em relação a outros torcedores, jogadores ou oficiais passa dos US$ 30 mil para US$ 100 mil (R$ 490 mil, na cotação atual). Além disso, será possível determinar que um clube tenha que jogar de portões fechados ou com interdição parcial do estádio. A mudança envolve o artigo 17 [leia mais aqui] e vale para jogos a partir de 9 de maio.

Reprodução/Instagram

No momento em que crescem as denúncias de racismo, que a gente está vendo esse crescente de atos racistas na sociedade e no futebol, precisamos ter a coragem de denunciar, ir até uma delegacia, registrar um B.O., precisamos levar esses casos para a Justiça cível e criminal. Não podemos ficar no registro de denúncias na internet, nas redes sociais e smartphones. Os racistas não podem se sentir livres e liberados, esse não é o mundo que a gente quer. Principalmente no futebol, um espaço tão negro, tão popular. O futebol e o estádio não podem ser palcos para que racistas se sintam à vontade de expressar seu preconceito e discriminação. Precisamos seguir juntos, unidos e, principalmente, denunciar esses casos."

Marcelo Carvalho, idealizador e diretor-executivo do Observatório da Discriminação Racial do Futebol.

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Como a Justiça Desportiva atua

Quando há um caso de racismo nas competições nacionais, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) é órgão responsável por analisar e, eventualmente, julgar a questão. Em geral, quando não há provas que estabeleçam uma ofensa flagrante, o rito é abertura de um inquérito para apurar se houve infração, antes da formalização de uma denúncia formal que leve a julgamento.

Para o inquérito, de fato, começar, a presidência do STJD precisa aceitar o pedido da procuradoria (uma formalidade) e um dos auditores do Pleno, a instância máxima, é designado como relator. Ele é responsável por colher os depoimentos das partes e receber provas de vídeo e documentais. Em casos de injúria racial, é comum que haja laudos de leitura labial.

A ideia é investigar se o jogador ou o clube (responsável solidário a um eventual crime do torcedor) vão ser enquadrados no seguinte artigo do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD):

  • Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
  • PENA: suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de cento e vinte a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código, além de multa, de R$ 100,00 a R$ 100 mil.

Em caso positivo, a denúncia vai a julgamento. Para casos de extrema gravidade, o tribunal pode ainda aplicar perda de pontos, perda de mando de campo ou exclusão do campeonato.

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