Não me desvirtuei

Raphinha recusou "caminho errado" na infância e pediu comida na rua por sonhos no futebol

Raphinha, em relato a Eder Traskini e Thiago Braga Do UOL, em Santos e São Paulo Craig Mercer/Getty Images

Eu preciso te contar uma verdade: é muito complicado. Para quem nasce dentro de uma comunidade, como eu, é difícil manter o foco. Sou da Restinga (bairro na Zona Sul de Porto Alegre). É difícil seguir o seu caminho e não se desvirtuar.

Algumas oportunidades aparecem - e são muitas. Prometem um jeito mais fácil de ganhar dinheiro. E é aí que as pessoas se perdem. Eu nunca saí do caminho, mas presenciei, andei junto com pessoas que estavam se perdendo.

São momentos, infelizmente, em que pessoas que não têm um foco grande, uma família para se apoiar, se perdem. Em momentos assim, perdi muitos amigos para o mundo do crime, para o tráfico... Amigos que jogavam até dez vezes mais que eu, que poderiam estar em um grande clube do mundo.

Ter esses exemplos tão próximos foi um fator importante para que mantivesse meu foco. Eu sabia o que queria desde muito pequeno: ser jogador de futebol. Conseguir esse objetivo saindo de uma comunidade é um sacrifício muito grande. Mas a minha ambição era ainda maior.

A minha família foi muito importante. Eles nunca me proibiram de fazer as coisas, mas sempre me mostraram qual era o caminho certo e o caminho errado. Foi por eles que nunca larguei a escola. Foi pelas conversas com eles que ignorei as oportunidades que tive de seguir pelo caminho errado. Por causa deles estou aqui.

O garoto da comunidade conseguiu passar por tudo isso rumo a grandes palcos. Se hoje falam da minha "magia" em campo, eu digo: essa é a verdadeira magia.

As memórias do meu início são duras. Para seguir meu sonho de jogar futebol, eu precisava treinar sério e o local para isso era longe da minha comunidade, onde vivi até ter mais ou menos 16 anos. Era tão distante que eu saía de casa meio-dia e voltava depois das oito da noite.

Se naquela época eu mal tinha dinheiro para o ônibus, você pode imaginar que eu não tinha condições para comer algo durante esse período. Só que a fome não espera, né? Quando ela apertava? Eu tinha que pedir.

Eu só queria comer, sabe? Seria injusto dizer que passei fome na minha vida. Não. Meus pais nunca deixaram faltar comida em casa. Só que durante oito horas ou mais eu estava bem longe de casa.

Então, depois do treino, no caminho até o ponto de ônibus, eu parava as pessoas na rua e pedia para comprarem um lanche, qualquer coisa para eu comer. Já aconteceu de me ajudarem, mas também já aconteceu de me chamarem de vagabundo para cima. E não tinha o que fazer: era esperar o ônibus chegar em casa para poder comer algo.

Hoje eu entendo. Querendo ou não, é assustador ser parado por alguém na rua te pedindo comida, dinheiro... é complicado. Eu tinha entre 12 e 14 anos na época, jogava na várzea em Porto Alegre e passei pela base do Porto Alegre FC. V

Eu acredito que os momentos ruins são obstáculos que são colocados ali para ver quem realmente quer, quem realmente consegue suportar e superar. Foi isso que me deu força para passar por eles nos momentos mais difíceis.

Depois da várzea e da base do Porto Alegre FC, surgiu uma chance no Audax (SP), que era comandado pelo Grupo Pão de Açúcar. Passei um ano ali, e os investidores decidiram vender o clube. Quando isso aconteceu, fizeram uma lista de dispensa e meu nome estava nela.

Felizmente, não tive tempo para lamentar. As mesmas pessoas que me ligaram para comunicar a dispensa, já me apresentaram outro projeto: um time em Imbituba (SC) em que o objetivo era disputar um torneio sub-20 como vitrine para vender os jogadores.

Eu topei na hora, e eles nem acreditaram. Pra mim, aquilo era uma oportunidade, e eu prometi pra mim mesmo que iria agarrar todas as oportunidades que me surgissem pelo caminho. Três meses depois, o Imbituba estava na final da segunda divisão do estadual sub-20. Não deu para ser campeão, mas foi o suficiente para chamar atenção dos olheiros dos maiores clubes catarinenses ali presentes.

Foi assim que fui parar no Avaí, o clube que mais se interessou no meu futebol. E foi aí que começou o sonho de jogar profissionalmente na Ressacada. Uma vez fui convocado para um jogo do profissional e viajei ao Rio de Janeiro para enfrentar o Fluminense. Não entrei em campo, mas a experiência foi muito marcante pra mim.

Queria muito ter jogado pelo clube que abriu as portas para mim, mas minha história era diferente. Muitos jogadores não têm oportunidade de jogar no Brasil, mas conseguem seu espaço na Europa. Eu sou um deles.

E durante toda essa trajetória, a música esteve comigo. Sempre falo que ela é meu refúgio. Meu pai é músico, é do pagode. Acho que essa relação herdei dele.

Sempre acompanhei ele nos grupos em que tocava. Eu cresci no meio do samba e também por meio do samba. Foi com a música que ele criou eu e meu irmão, junto com a minha mãe, que é pedagoga.

Muito por isso, a música está sempre comigo. Quando tenho um tempo, quando estou indo para o treino, ou mesmo antes das partidas, a música está comigo. Quase sempre ele: o pagode do meu pai. Pra mim, é como se fosse uma espécie de remédio relaxante que me ajuda a focar.

Eu sempre gostei de ir no pagode, de ouvir, de cantar, até de tocar. Eu, de origem pobre, mas com coração nobre, gosto muito de escutar aquela música do Zeca Pagodinho, "Deixa a Vida me Levar". Mas tem uma que talvez seja mais especial ainda. Meu pai gravou com o Ronaldinho Gaúcho e eu escuto bastante. Chama-se "Goleador" e canta assim:

"Muita gente acha que ser jogador
É uma facilidade viver no Esplendor
Não sabe que a arte é até mais
Difícil que ser um doutor
Driblar a vida encontrar a saída
Pra não ser mais um sofredor"

Se você chegou até aqui, já sabe que essas curtas estrofes contam muito da minha vida. Toda a dificuldade para ser um jogador, para chegar aqui... mas, com ajuda da minha família, eu driblei a vida, encontrei a saída para não ser mais um sofredor. E sigo driblando, agora no Barcelona, com a camisa que o parceiro do meu pai nessa música fez história.

Só que antes desse sonho se realizar, muita coisa aconteceu. Acho que o episódio mais marcante e importante foi a decisão de sair do Rennes (FRA) para o Leeds (ING).

Eu tive entre 20 e 30 minutos para decidir algo que mudaria a minha vida. Pouco, né? Eu tinha feito uma boa temporada 19/20 pelo Rennes (FRA) e tínhamos classificado o time pela primeira vez para a fase de grupos da Liga dos Campeões.

Infelizmente, eu estava ciente do interesse de outros clubes somente pelas notícias, pelas redes sociais, não por alguém do Rennes. Ninguém chegou em mim e explicou a situação, me contou o que estava acontecendo e o que poderia ocorrer. Eu fiquei no escuro, e confesso que aquilo me deixou um pouco chateado.

Logo depois do jogo contra o Reims, em que eu tinha feito uma boa partida e até marcado um gol, o presidente e o diretor me chamaram em uma salinha, me falaram o que estava acontecendo e me pediram para tomar uma decisão. Assim. Ali e naquele momento. Eu não poderia esperar o dia seguinte, pois a janela se fecharia.

Eles me disseram que ficariam felizes eu se ficasse no clube, mas também aceitariam e ficariam agradecidos se eu optasse por deixar o Rennes. Conversei com meu empresário e com minha família para rapidamente decidir meu futuro. Foi complicado sair de lá daquela maneira, mas cara... era a Premier League, o campeonato de tantos craques que eu sempre acompanhei com os olhos brilhando. Era meu sonho de criança.

E, olha, a minha escolha não poderia ter sido mais acertada. Fui muito feliz vestindo a camisa do Leeds. Trabalhei com o Bielsa, um cara muito exigente e que me recebeu de braços abertos. na verdade, eu gosto de trabalhar com pessoas exigentes.

Com ele, a gente sabia que tinha hora para brincar, sim, mas só nos intervalos dos treinos, porque no campo o bicho pega. A Premier League é um campeonato de jogadores de qualidade, mas mesmo assim eu consegui fazer aquilo que mais gosto: driblar. Nos treinos eu sou mais contido, não driblo os companheiros. Tento fazer o básico, focar mais no tático e deixar tudo guardado para o jogo, que é quando é mais gostoso, na verdade. Os marcadores eram difíceis, mas com minha magia consegui fazer algumas coisinhas em campo.

E foi nessa época que aconteceu aquilo que eu sempre sonhei. Não, não é essa a palavra correta: aquilo que sempre planejei.

Dificilmente algum jogador brasileiro não sonha em vestir a camisa da seleção. Eu venho planejando isso desde que eu tinha 10 anos de idade, me preparando a cada ano, a cada treino, a cada jogo. Não cabia a mim decidir, mas cabia a mim dar sempre o meu melhor.

Eu tinha comigo que se um dia acontecesse a convocação, e iria ficar muito feliz, mas acima de tudo estaria preparado. E as coisas aconteceram. Hoje estou vivendo não só o meu sonho, mas o sonho dos meus amigos de infância, de toda uma comunidade, de uma cidade.

Vestir a camisa da seleção brasileira ao lado de caras que eu sempre acompanhei já seria um sonho por si só, mas jogar e marcar gols? Eu nunca vou esquecer o jogo contra o Uruguai em que fiz meus dois primeiros gols pela seleção. Foi uma noite que eu não queria que acabasse nunca, por mim duraria para sempre.

Quando me perguntam se eu imaginava sair do Leeds para o maior clube do mundo, que é o Barcelona, e me firmar na seleção brasileira em coisa de um ano, eu respondo que eu não só imaginei, como também consegui realizar. Com muito esforço e dedicação eu alcancei aquilo que eu sempre quis.

Eu tive muitas propostas depois da minha temporada no Leeds, mas eu sabia exatamente o que eu queria. Meus ídolos de infância jogavam no Barcelona, então eu tinha o sonho de vir para cá e não medi esforços para conseguir.

Eu já falei da relação da minha família com o Ronaldinho Gaúcho e ele é um desses meus ídolos que vestiram essa camisa. Eu não cheguei a conversar com ele antes de vir para cá, mas tenho certeza que ele diria para eu seguir meu sonho.

E por falar em sonho, eu não estou nem esperando a convocação para focar só a partir daí na Copa do Mundo. Representa tudo pra mim, o auge da carreira e dos planos daquele garoto de 10 anos que já sonhava com a amarelinha.

No dia da convocação final, quero estar ao lado das pessoas que eu amo, é um momento único que quero estar perto delas. Depois, quero fazer um excelente mundial e trazer a taça para casa. Vou fazer de tudo para no dia 18 de dezembro estar comemorando o hexacampeonato mundial do Brasil.

Minha História - Copa

Jogadores da seleção explicam, em suas palavras, como chegaram ao ponto máximo da carreira no futebol

David Ramos/FIFA via Getty Images

Marquinhos

O filho da professora conta a ironia do destino que o levou a ser comprado pelo maior time da França por 35 milhões de euros.

Ler mais
Cesar Greco/SE Palmeiras

Weverton

"Por que sempre que volto ao Acre eu treino na lama? É para não esquecer de onde vim', diz o goleiro, a 3 meses da Copa.

Ler mais
Topo