Do Carandiru ao palácio

Ricardo Oliveira celebra carreira, da miséria a encontro com um rei, e diz que para quando chegar aos 400 gols

Guilherme Piu Do UOL, em Belo Horizonte Pedro Vilela/Getty Images

Coragem, persistência, fé e trabalho tiraram Ricardo Oliveira de uma comunidade na zona norte de São Paulo — onde pessoas próximas caíram na criminalidade — e levaram o menino simples da metrópole até palácios reais no exterior.

O atacante, que morou em um barraco de lona com a família, viveu a experiência de conhecer o temido Pavilhão 9 do Carandiru, um dos presídios mais perigosos do Brasil, onde o irmão esteve preso. E foi através da bola que conseguiu criar para si um novo e amplo horizonte de vida.

Oliveira superou dispensas de grandes clubes e, quando estava curando feridas na várzea, viu uma nova chance surgir na Portuguesa, de onde despontou para o mundo e vestiu pela primeira vez a camisa da seleção brasileira.

Hoje, estudando como encerrar sua trajetória nos gramados, que conta com passagens importantes por Milan, Betis, Valencia, Zaragoza e clubes árabes, além de Santos, São Paulo, Atlético-MG e Coritiba, o atacante busca um novo clube para atingir as metas que estipulou antes de pendurar as chuteiras.

O experimentado atacante ainda quer um pouco mais, aos 41 anos. Será que tem time precisando de camisa 9 daqueles bem clássicos?

Pedro Vilela/Getty Images

Ele ainda quer mais

Fernando Alves/AGIF

Meta: 400 gols antes de se aposentar

"Quero atingir números fechados antes de me aposentar". É o que diz Ricardo Oliveira. E o atacante, que soma 386 gols em 784 jogos na carreira, explica sua intenção.

"Esse é um dos meus principais objetivos, atingir a marca dos 400 gols, os 800 jogos na carreira."

O último clube de Ricardo Oliveira foi o Coritiba, de onde ele saiu após o fim do Campeonato Brasileiro de 2020, em fevereiro deste ano, numa temporada estendida pela crise do covid-19. Desde então o veterano jogador ainda não voltou aos gramados. No entanto, segundo o goleador, não foi por falta de de propostas, mas sim de um projeto que despertasse seu interesse neste ponto de sua trajetória.

"Tive algumas propostas de clubes para jogar, alguns da primeira divisão [no Brasil], muitos da segunda divisão. Conversei com todos eles, procurei entender o projeto do clube, se teria condição de atingir o meu objetivo e ajudar no objetivo da instituição, mas infelizmente não se desenrolou. Para o próximo ano fica ainda esse objetivo pessoal, que o clube que me contrate conquiste os seus objetivos, e eu os meus. Que possa me proporcionar chances de atingir os meus objetivos dando resultados em campo, e eu contribuir com a vasta experiência que tenho."

A minha carreira está mais perto do fim do que do início, são 21 anos jogando e poucos atletas chegam a esse número, uma carreira tão longa e longínqua como eu consegui. Disputar em alto nível é importante, sempre me cobrando, sempre indo para projetos desafiadores onde você pode se reinventar a cada ano.

Ricardo Oliveira, sobre como espera viver a temporada 2022

Thomas Santos/AGIF Thomas Santos/AGIF

A infância dentro de um barraquinho

Ricardo Oliveira foi criado no Carandiru, bairro pobre na Zona Norte de São Paulo. Viu o irmão se envolver com a criminalidade, mas conseguiu se manter distante das promessas perigosas do submundo, apostando no esporte como alternativa. Porém, até atingir o ápice da carreira passou por dificuldades, humilhação e até pensou que não conseguiria realizar o sonho de se tornar jogador.

"Foram 20 anos dentro do Carandiru, onde eu não escolhi nascer dentro desse contexto pobre, de dificuldade, de drogas, de criminalidade, de escassez, de fome. De perder tudo que tínhamos de mais precioso e valor, que era o nosso barraquinho, como se fosse uma cabana. Lembro que meus pais levantaram quatro madeiras e, de repente, colocaram lona por cima e fecharam do lado pra gente dormir, não tínhamos muita condição", relembrou Ricardo Oliveira.

Sem o pai desde muito cedo, falecido quando o jogador tinha oito anos, Oliveira teve na figura da mãe a grande incentivadora em busca do seu grande objetivo.

"Graças a Deus, à minha mãe, pois perdi meu pai aos oito anos, eu não desisti do futebol, não desisti da vida. Ela me educou de maneira ímpar e optei por ser um homem trabalhador, que sempre respeitou as pessoas e optou por crescer na vida de maneira honesta, sem passar por cima de ninguém, sem humilhar ninguém. Até por que, falar de humilhação eu posso falar com propriedade, sofri muitas humilhações nas redondezas daquele bairro."

Sérgio Andrade/Folhapress

Um gol no Canindé mudou tudo

Oliveira foi dispensado do Corinthians ainda com idade de Sub-20 e achou que não mais jogaria em um clube de futebol. Passou a usar os jogos na várzea como alternativa para a desilusão. Porém, depois de um teste na Portuguesa aos 19 anos, e de um gol memorável num treino no Canindé, chamou atenção de Lula Pereira, então técnico do time principal, que disputava a Copa João Havelange em 2000.

"Peguei uma bola no campo defensivo. Quando domino essa bola, olho e o gol estava muito longe, o campo estava muito longe. Falei que era a minha oportunidade. Peguei e fui encarando o zagueiro, fui driblando, naquele momento driblei todo mundo e fiz o gol. Quando faço o gol, o Lula Pereira me chama, me tira do treino e fala assim: 'não sabia de você aqui. Preciso de você para o jogo de domingo'", relatou.

O jogo que Lula Pereira se referia era Portuguesa x Sport, no dia 24 de setembro de 2000, no Canindé, pela 14ª rodada da Copa João Havelange, competição que naquele ano substituía o Campeonato Brasileiro. Ricardo Oliveira foi o autor do gol da vitória da Lusa naquela partida e ali inaugurava sua vencedora carreira.

Foi legal essa minha aproximação com a Portuguesa, porque todos os presidentes anteriores ao Antônio Carlos Castanheira, que é o atual, nenhum deles me procurou pra gente bater um papo, tentar fixar a pendência que o clube tinha comigo (...) Eu perdoei. Conversei com ele e disse que não queria ser pedra de tropeço para o clube que me revelou. Pedi desculpas se tinha ficado alguma coisa ruim da minha pessoa. Entendo que naquele momento tomei uma decisão, tinha 22 anos, era imaturo, tomei uma decisão precipitada, mas tomei, e acabei saindo dessa forma. Minha intenção nunca foi prejudicar o clube.

Ricardo Oliveira, sobre a saída da Lusa para o Santos em 2003 e pendência financeira que tinha a receber

Reprodução/Instagram

E Ricardo encontrou o rei Juan Carlos I

Quando jovem, Ricardo teve uma das piores experiências de sua vida. Esteve dentro do Pavilhão 9 na penitenciária do Carandiru, local do estopim de um massacre em que mais de cem detentos foram assassinados por policiais militares, em 1992. Lá, visitou o irmão, que havia sido preso.

"Tive a infelicidade de ter a experiência de entrar dentro da penitenciária do Carandiru para visitar o meu irmão, que por decisão dele, por erro dele, acabou caindo dentro do Pavilhão 9. Tive essa experiência que foi horrível, e falei para mim mesmo: 'nunca mais eu volto aqui'', disse.

"Meu irmão pegou um violão e começou a cantar um louvor. Eu olhava e perguntava: 'o que aconteceu com esse cara?' Via que o semblante dele estava diferente, a conversa dele era diferente, via que a conduta, o comportamento dele era outro. Assistimos a um culto lá dentro do Pavilhão 9. Nesse dia eu só sabia chorar, porque eu não conseguia entender o que estava acontecendo, como ele poderia ter sofrido essa transformação lá dentro."

A memória impactante do presídio contrasta com as lembranças de prêmios por conquistas. Uma delas, a visita que fez ao palácio do rei Juan Carlos I, da Espanha, em 2005, após conquistar a Copa do Rei pelo Betis. Antes, já havia sido campeão espanhol e da Copa da Uefa [temporada 2003/04], ambas conquistas com o Valencia.

Tive a experiência com o Juan Carlos, em que ele aperta minhas mãos. O protocolo previa não poder estender as mãos para o rei se antes ele não estendesse para você. De repente o rei vem, pega na minha mão, me chama pelo nome e fala que está feliz de me receber ali no palácio dele, que desejava para mim muito sucesso e que estava feliz pelo que eu estava fazendo no meu início na Espanha.

Ricardo Oliveira, sobre a cerimônia com o Betis no palácio real espanhol

AC Milan/Reprodução

Amizade com o Fenômeno

Ricardo tem um ídolo na carreira, um contemporâneo de época e colega de função: Ronaldo. Os dois jogaram juntos pela seleção e pelo Milan, período que Oliveira considera um marco na sua trajetória. "Pude ter a honra e a felicidade de realizar o meu sonho, de jogar ao lado do meu maior ídolo, meu maior referencial. Foi algo surreal para mim", celebra. "Confesso que espremi ele de todos os jeitos para aprender um pouco mais. Um cara que se mostrou totalmente receptivo, simples, humilde, de aconselhar, de ajudar, um cara hoje que tenho acesso a ele e, enfim, desfrutar desse carinho e amizade", acrescentou.

Getty Images

WhatsApp com lendas

O papo do atacante com Ronaldo rola pela web. A dupla faz parte de um grupo no Whatsapp com estrelas do futebol. "Participamos de alguns grupos de ex-atletas, de lendas de futebol mundial. Não só nacional, mas futebol mundial. Tem jogadores da Espanha, Itália, do Brasil. Tem o Rui Costa, hoje o presidente do Benfica, tem o Roberto Carlos, o Amoroso, treinadores do Brasil, um grupo bem seleto em que trocamos informações. Tem também o Zico", conta. "Dividimos conhecimento, vemos a área em que cada um está atuando, que todo mundo está de fato se reciclando, buscando novos objetivos."

Fernando Moreno/AGIF

Galo vetou 'sim' a Ronaldo

Mas nem mesmo a amizade de longa data possibilitou que o fã Ricardo Oliveira aceitasse um convite para mais uma vez trabalhar com o seu ídolo Ronaldo.

Em 2018, aos 38 anos, Ricardo Oliveira tinha acabado de chegar ao Atlético-MG para um projeto do então presidente Sérgio Sette Câmara. Naquela temporada, o atacante recebeu também um convite do Fenômeno que considerava irrecusável, mas dependia da liberação do Galo. Mas o aval atleticano não saiu.

"O Ronaldo tinha acabado de assumir o Valladolid [como presidente]. Ele entrou em contato comigo, me chamou, disse que estava me acompanhando, e falou que o que eu estava fazendo merecia o reconhecimento, pela performance, pelo exemplo que eu dava como atleta, E que gostaria de me fazer um convite, de participar do projeto do Valladolid, que gostaria muito de contar comigo. Eu não pensei duas vezes, não pensei mesmo."

Ricardo Oliveira havia terminado o Campeonato Mineiro como artilheiro [seis gols] e mantinha boa performance no Brasileirão. Como o goleador era importante naquele momento para o Atlético-MG, acabou tendo a liberação recusada.

"Era o pedido do meu maior ídolo, que se tornou um amigo. Lembro que peguei o telefone na hora, liguei para o Sérgio Sette Câmara, e falei que queria embora. Ele questionou o motivo, perguntou como que iria embora, se eu estava doido, porque eu era o artilheiro do time, tinha acabado de chegar para um projeto. Eu expliquei a situação para ele, mas fiquei chateado, porque eu queria ter ido para ajudar o Ronaldo nesse projeto", concluiu.

Foi uma das raras frustrações de uma carreira bem-sucedida, marcada por gols, títulos e protagonismo com camisas importantes de Brasil e Espanha.

O Valladolid não tinha condições financeiras para um aporte para contar comigo. Liguei para o Ronaldo, conversei com ele diretamente, falei que infelizmente o Atlético-MG não aceitaria me liberar de graça. O orçamento que tinha era muito baixo. Infelizmente não deu.

Ricardo Oliveira, sobre a frustração de não poder jogar no clube do presidente Ronaldo

EFE/Jorge Zapata EFE/Jorge Zapata

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