Gracias, Rincón

Lenda da Colômbia e ídolo do Corinthians morre aos 55 anos e deixa legado em campo e fora dele

Gabriel Carneiro e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo Eduardo Knapp/Folhapress

Morreu hoje (14) o ex-jogador colombiano Freddy Rincón, aos 55 anos.

Presente em três edições da Copa do Mundo (1990, 94 e 98), era uma das maiores estrelas da história do futebol de seu país: vestiu a camisa do Real Madrid e de quatro grandes clubes brasileiros. Virou ídolo do Corinthians, em que foi o capitão da conquista do primeiro Mundial de Clubes, em 2000.

Rincón não resistiu aos ferimentos causados por um acidente de carro na madrugada de domingo (10) para segunda-feira no bairro San Fernando, na cidade colombiana de Cali. O veículo em que o ex-jogador viajava ultrapassou um sinal vermelho e se chocou, mais ou menos às 4h30, com um ônibus em alta velocidade. Os dois veículos ficaram bastante danificados.

O ex-jogador foi hospitalizado com traumatismo craniano e passou por cirurgia, mas não houve evolução favorável do quadro durante a internação. Sua morte foi confirmada no início da madrugada de hoje pela Clínica Imbanaco, onde o ex-jogador estava internado.

Rincón deixa como legado uma carreira marcada por 169 gols em 675 jogos por oito clubes e por sua seleção, talento, liderança, títulos (muitos títulos) e um temperamento único, de quem não levava desaforo para casa e acumulou polêmicas ao longo dos anos —incluindo uma ligação com o narcotráfico, que atrapalhou sua carreira e o fez ser preso no Brasil (ele foi inocentado). Já está na história.

Eduardo Knapp/Folhapress

Rincón no futebol brasileiro

  • Palmeiras

    Foram 76 partidas em 1994 e entre 1996 e 1997, com 22 gols e um título conquistado.

    Imagem: Reprodução
  • Corinthians

    Foram 158 partidas em duas passagens (1997 a 2000 e 2004), 11 gols e quatro títulos ao todo.

    Imagem: Shaun Botterill /Allsport
  • Santos

    Foram 54 partidas entre 2000 e 2001 e seis gols marcados.

    Imagem: Márcio Fernandes/Folhapress
  • Cruzeiro

    Foram 22 partidas entre julho e outubro de 2001 e um gol feito.

    Imagem: Acervo Folha
Ricardo Nogueira/Folha Imagem

Foram vários títulos no Corinthians. Eu tenho uma foto guardada do primeiro jogo das Eliminatórias de 2002. Foi Brasil e Colômbia, em Bogotá, se não me engano. Ele jogando pela seleção colombiana, eu pela brasileira. A gente dividiu uma bola. Nós dois éramos do Corinthians. São várias lembranças, mas eu vou deixar essa: ele representando o país dele, eu, o meu. Não tenho mais o que falar. Que Deus conforte a família dele".

Vampeta, que jogou com Rincón no Corinthians.

Cesar Itiberê/Folha Imagem

Mas como ele parou no Brasil?

Rincón foi contratado pelo Palmeiras em janeiro de 1994, quando já brilhava há anos no futebol colombiano. Era a época de investimentos da Parmalat e a negociação só aconteceu depois de muita insistência.

O jogador queria ter saído da Colômbia antes, com possibilidades de jogar no Boca Juniors e na Europa. Só que o América de Cali nunca liberava. O presidente do clube na época era Miguel Rodríguez Orejuela, um dos chefes do tráfico de drogas no país. Um cara com quem ninguém queria mexer. Rincón insistia para ser negociado e chegou a ter o salário reduzido por isso. Suas vontades só se concretizarem em 1994. Orejuela foi preso no ano seguinte — ele segue encarcerado até hoje.

O meio-campista ficou menos de seis meses no Brasil nesta primeira passagem. Foi campeão paulista, mas durante a Copa do Mundo já disse que queria sair do Palmeiras porque a relação não era boa com torcedores. Foi vendido para o Napoli, passou pelo Real Madrid e voltou ao Parque Antártica em agosto de 1996.

Menos de um ano depois, o Corinthians tirou Rincón do Palmeiras num movimento de mercado raro, quase único. O colombiano estava emprestado ao time verde e os alvinegros foram direto ao Real Madrid para negociar. Outro rival regional também estava na parada: na época Rincón tinha acordo com o Santos. Ele rompeu com Palmeiras e Santos para jogar no Parque São Jorge. Foi uma grande decisão.

Juca Varella/Folhapress

Acabamos de perder um dos maiores jogadores de todos os tempos do futebol mundial. Talento puro, profissionalismo sensacional, responsabilidade, comprometimento tático... Além de tudo, um ser humano fantástico. Era meia-esquerda e veio a se transformar no melhor volante com quem eu trabalhei na minha vida. Uma perda lamentável para o futebol. Vai com Deus, Rincón".

Vanderlei Luxemburgo, técnico de Rincón no Corinthians.

Vanderlei Almeida/AFP

Redescoberta, auge e idolatria quase inabalável no Corinthians

Rincón virou um dos nomes mais importantes da história do Corinthians ao conquistar os títulos de campeão paulista (1999), brasileiro (1998 e 1999) e mundial (2000). Mais do que campeão, virou referência. É o que diz Oswaldo de Oliveira, seu técnico na maior parte da passagem pelo Parque São Jorge: "O Rincón foi meu capitão, um exemplo, um cara sensacional. Profissionalismo no último grau, uma pessoa ótima".

Foi lá que o então meio-campista avançado — às vezes até atacante — foi recuado para atuar como volante numa dupla com Vampeta. Já depois dos 30 anos de idade, uma redescoberta. E como se diz hoje, deu match. Além da técnica, chamou atenção por características de liderança e jogo aguerrido que o fizeram ídolo da torcida e capitão do time.

Entre os momentos marcantes, o golaço de fora da área contra o Grêmio numa vitória por 1 a 0 na ida das quartas de final do Brasileirão de 1998, o fato de ter jogado machucado as finais do torneio no ano seguinte, o gol diante do Al Nassr, da Arábia Saudita, que classificou o Corinthians para a final do Mundial de 2000 no saldo de gols, e o pênalti convertido na final contra o Vasco, que bateu cruelmente na trave antes de entrar.

Duas semanas depois de ser campeão mundial, Rincón trocou o Corinthians pelo Santos, que ofereceu um salário mais ou menos 70% maior do que ele recebia. Ficou famosa durante a passagem pela Vila Belmiro sua camisa 35 formada por "3 + 5", porque a 8 estava ocupada quando foi contratado. Vice-campeão paulista em 2000.

Ormuzd Alves/Folhapress

Hoje é um dos piores dias. Perdi um irmão. Foi o cara mais honesto que eu vi dentro do futebol, o mais justo. Companheiro leal que queria o bem de todos, pensava no grupo, no coletivo, um homem na concepção da palavra. Perdemos um cara do bem, um homem leal, que tinha três Copas do Mundo. Ele tinha aquela cara de bravão, mas não era bravo, não. Deveria ter mais Rincóns no mundo".

Dinei, que jogou com Rincón no Corinthians.

Marcelo Salinas/AFP

Na Colômbia, entre os maiores

Na história do futebol, Rincón é mais do que um ídolo de determinado clube. Para os colombianos, ele é o autor do gol mais importante da história da seleção nacional. Foi na Copa do Mundo de 1990, um empate em 1 a 1 contra a poderosa [e futura campeã] Alemanha de Matthaus e Klinsmann. Era o terceiro jogo da fase de grupos.

O gol foi aos 47 minutos do segundo tempo e, sem ele, a Colômbia estaria eliminada no seu primeiro Mundial depois de 28 anos. Valia muito. Rincón balançou as redes num chute por baixo das pernas do goleiro Illgner depois de passe de Valderrama. Correram o mundo as imagens de seus gritos, lágrimas e punhos no ar. De cinema.

Rincón ainda jogou as Copas do Mundo de 1994 e 1998, quando a Colômbia caiu duas vezes na primeira fase. Atuou em todas as partidas de todas as edições e ainda participou de mais momentos épicos da sua seleção. O maior exemplo é a goleada por 5 a 0 sobre a Argentina em 1993, pelas Eliminatórias, em Buenos Aires. É outro dia que a Colômbia não esquece pelos gols, dribles desconcertantes e futebol ofensivo do time que também tinha Asprilla e Valencia.

Naquele dia, Rincón fez dois gols diante de mais de 75 mil argentinos. O jogo inspirou comerciais, cultura popular e até um livro no país: "O incrível relato da partida que mudou para sempre a história do futebol colombiano".

De um jogo como esse, que é histórico, você lembra de tudo. Eu lembro de tudo, a começar pela tensão e pela expectativa, que eram muito grandes. O significado daquilo foi grande, porque era um país que estava sentindo falta de uma alegria e nós demos."

Freddy Rincón, sobre o gol em Alemanha 1 x 1 Colômbia de 1990

Algumas polêmicas

Juca Varella/Folhapress

Xingamentos

Rincón foi mal recebido pela torcida do Corinthians após deixar o clube. No primeiro encontro, foi distribuída uma reprodução de nota de dólar com seu rosto, além de gritos de "mercenário", "o meu Corinthians não precisa de você" e "Edu", o nome de seu substituto. Também houve moedas atiradas e uma tentativa de invasão no gramado. Apesar de tudo, o colombiano voltou ao Corinthians para se aposentar em 2004, já aos 37 anos.

Evelson de Freitas/Folha Imagem

Brigas

Rincón jogou no Corinthians numa época de elenco estrelado e se envolveu em brigas. Há registros de troca de socos com Mirandinha, que gerou o afastamento de ambos, e com Gilmar Fubá, xingamentos com Edilson e, em especial, uma treta com Marcelinho Carioca em que arremessou o companheiro nos armários de ferro do vestiário. Anos depois, o colombiano a explicou: "Em jogador como ele, às vezes você tem que bater, né?"

Robson Ventura/Folhapress

Prisão

Acusado no Panamá de lavagem de dinheiro associada ao tráfico de drogas internacional, Rincón ficou 123 dias preso na sede da Polícia Federal em São Paulo, em 2007. O assunto repercutiu muito na época, porque ele teria sido laranja na compra de propriedades por um traficante. Após este tempo, o ex-jogador passou a responder em liberdade ao processo de extradição depois de decisão do ministro Ricardo Lewandowski, do STF. Em 2016, foi absolvido.

Reprodução

E mais brigas

A passagem pelo Cruzeiro em 2001 durou só quatro meses e foi marcada pela péssima relação de Rincón com o técnico Marco Aurélio. No "Resenha ESPN", o colombiano contou que estava afastado do time principal quando disputou um jogo-treino entre jogadores da base contra os titulares. Na atividade, deu uma entrada forte num companheiro, foi repreendido pelo treinador em campo e partiu para cima dele. "Não fossem os caras, eu teria sido preso."

Nós perdemos um pedaço. Na verdade, todo corintiano perdeu um pedaço do coração, porque ele é o capitão do nosso primeiro título mundial. Um gigante, um monstro, o craque da seleção da Colômbia em três Copas do Mundo, de 90, 94 e 98, o cracaço do meio de campo do Corinthians naquele quarteto mágico. Era Freddy, Vampeta, Ricardinho e Pé de Anjo, cara."

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Marcelinho Carioca, Ao UOL Esporte

Existe uma frase que resume tudo: um reino dividido não subsiste. Se fosse uma coisa maléfica não teríamos sido campeões. Nós jogamos juntos mais de três, quatro anos, e ganhamos tudo. Eram discussões árduas e assíduas ali nas quatro linhas, mas em prol do coletivo, nunca chegamos às vias de fato. Nossa relação era um olhar para o outro e falar: 'pô, você está me dando dor de cabeça, mas eu gosto de você'."

Sobre a relação com Rincón

Reprodução

Na Europa, dois clubes em crise e uma forte acusação de racismo

Ídolo no Brasil e na Colômbia, Rincón fez duas tentativas de brilhar no futebol europeu. A primeira foi no Napoli, emprestado pelo Palmeiras num acordo que envolvia ida futura para o Parma. A recepção no futebol italiano em 1994 foi boa. Em sua apresentação, os torcedores entoaram cantos que remetiam ao "dee do de de, dee do de de" da música "Living On My Own", do Queen. Era uma brincadeira com Freddie Mercury x Freddy Rincón.

Escalado como meia e atacante, ele viveu uma boa temporada do ponto de vista técnico. Foram sete gols marcados em 28 jogos, foi o vice-artilheiro do time na temporada. O Napoli é que não vinha bem, trocou de técnico e diretores no meio do caminho e ficou em sétimo no Italiano. Em 1995, Rincón foi vendido para o Real Madrid por 4 milhões de dólares.

O primeiro colombiano da história do clube espanhol foi um pedido do treinador argentino Jorge Valdano. O problema é que Valdano foi demitido no meio da temporada e o espanhol Arsenio Iglesias passou a não usar Rincón, que foi perdendo cada vez mais espaço e fechou 1995/1996 com 21 jogos — só 13 como titular — e um gol marcado. Em agosto, foi emprestado para o Palmeiras.

Anos depois, Rincón contou bastidores de sua passagem pelo Real Madrid que ajudam a explicar o ostracismo.

Me faltou ser branco [para dar certo no Real Madrid]. Não sofri racismo no dia a dia, mas para jogar dentro do Real Madrid, sim. Pressionavam o treinador."

Ele nunca se aprofundou sobre o tema, mas tocou brevemente em algumas entrevistas nos últimos anos: "O racismo é algo que aconteceu comigo e com muitos outros jogadores. Tentaram freá-lo, mas infelizmente ainda se escutam vozes dessa enfermidade. Para mim, foi um orgulho muito grande chegar ao Real Madrid, mas não tive as oportunidades que desejava."

Freddy chegou ao Real Madrid quando eu era treinador. Foi uma negociação relativamente fácil, porque a vontade dele era total. Eu estava muito atento ao trabalho revolucionário de Francisco Maturana na seleção colombiana e Freddy era um dos jogadores mais atrativos e desequilibrantes do time."

Jorge Valdano, técnico do Real Madrid em 1995/1996, ao "Às Colômbia"

O problema é que ele chegou em um momento de grande crise institucional e pagou o preço como jogador, como eu paguei como treinador. Fica um sentimento de frustração, porque o 'madridismo' não desfrutou de todo seu potencial. O futebol hoje é físico e esse é um território onde ele tinha vantagem."

Sobre a aventura europeia de Rincón

Almeida Rocha/Folha Imagem

Tentou ser técnico e assistente, mas não deu certo

Rincón já estava sem jogar há dois anos quando foi resgatado pelo Corinthians em 2004, aos 37. Jogou 21 partidas, a última delas uma goleada por 5 a 0 sofrida para o Athletico-PR no Pacaembu — Jadson, futuro ídolo corintiano, marcou três gols.

O colombiano pretendia encerrar a carreira em dezembro, mas teve o contrato rescindido em junho daquele ano depois de ser barrado do time titular pelo técnico Tite. Não voltou mais a atuar.

Aposentado, tentou a carreira de treinador. O primeiro desafio foi o Iraty-PR, em 2006. Depois, passou por São Bento e São José, em São Paulo. Em comum nos dois projetos, times com estrutura precária, pouco tempo de trabalho e resultados ruins. Em 2010, foi contratado como assistente de Vanderlei Luxemburgo no Atlético-MG, mas a experiência não chegou nem ao fim do ano.

Rincón também trabalhou na base do Corinthians antes e depois dessa ida para o Galo. Na segunda passagem, chegou a ser repassado para o parceiro Flamengo de Guarulhos, que jogava a Série A3 do Paulistão. Saiu detonando estrutura, dirigentes e até Tite, que segundo ele não usava jogadores da base no time profissional.

Depois de 2011, a carreira foi retomada só em 2019, quando foi assistente de Jorge Luis Pinto no Millonarios, da Colômbia. Foi a última experiência. No meio do caminho, chegou a ser comentarista da ESPN Brasil em algumas ocasiões.

Eu convivi com ele no Corinthians e no Cruzeiro, mais de três anos juntos. Ele tinha um jeitão alegre, aquele sorrisão. Era um jogador que não gostava de ver as coisas erradas, ele se cobrava muito e cobrava muito de todos nós jogadores, tanto que era o nosso líder e capitão. Às vezes tinha que saber brincar com ele, como chegar para conversar, de tão sistemático que ele era (risos). Mas tínhamos afinidade, a gente conversava muito, trocava ideias sobre futuro, vida, família e trabalho."

João Carlos, Ex-companheiro de Rincón, ao UOL Esporte

"Ele estava no Santos e foi para o Cruzeiro, onde eu jogava. Convidei ele para vir na minha casa e minha esposa fez uma suã com arroz para ele. Os paulistas não sabem o que é, né (risos)? É a bisteca, mas aqui em Minas eles não cortam fininho, chega bem mais grosso, aí cozinha inteira e mistura com arroz. Ele gostou demais e toda a vez que eu conversava com ele, ele sempre perguntava: 'João Carlos, João Carlos e aquela suã? Qualquer dia eu volto para comer aquela suã'. É uma das lembranças que tenho."

Sobre a amizade com o colombiano

Lucas Lacaz Ruiz/Folha Imagem

Legado eterno

A Fifa lançou no último dia 12 um serviço internacional de streaming que promete explorar grandes histórias e personagens do futebol e transmitir mais de 40 mil partidas ao vivo em 2022. Há conteúdos originais de esporte em formato de séries e filmes sobre astros como Ronaldinho Gaúcho, Daniel Alves, Sissi, Carli Lloyd, capitães de seleções e artilheiros de Copa do Mundo.

Uma das séries já disponíveis no FIFA+ se chama "Replay Remix", sobre 24 momentos icônicos do esporte. Um dos episódios leva o nome de "Contra o Relógio" e homenageia Rincón e seu gol marcado aos 47 minutos do segundo tempo contra a Alemanha, na Copa do Mundo de 1990.

Os outros personagens são Cruyff, Zidane, Iniesta, Pelé, Maradona, Neymar, Klose e Eusebio, entre outros. É nesta galeria para poucos que entra o nome agora eterno de Freddy Eusébio Gustavo Rincón Valencia.

Rincón também deixa legado em campo. Seu filho Sebastián Rincón tem 28 anos e joga atualmente no Barracas Central, um clube modesto da Argentina. Ele é atacante.

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