Ele não errava uma

Rui Chapéu ajudou a quebrar preconceitos, colocou a sinuca na TV aberta e virou lenda brasileira

Beatriz Cesarini e Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Wilson Melo/Folhapress

Ontem (29) morreu uma lenda. Em São Paulo, aos 79 anos, José Rui de Mattos Amorim não resistiu a um infarto. É mais fácil chamá-lo pelo apelido: Rui Chapéu, o jogador de sinuca mais conhecido do Brasil.

Ele foi profissional - e muito conceituado - de um esporte que para bastante gente é brincadeira de desocupado no bar. Pois, antes de o dono da boina branca brilhar por quase dez anos na TV aberta, essa marginalização era ainda maior.

Nascido na cidade baiana de Itabuna, de infância pobre e passado como caminhoneiro, começou a ganhar dinheiro com apostas nas mesas de bilhar. Aos 44 anos foi contratado pela Band para fazer apresentações, exibindo seu talento sobrenatural, e desafios com jogadores brasileiros e estrangeiros ao vivo no "Show do Esporte" de Luciano do Valle.

Foi daí para a história do esporte e da televisão do país. E também para os botecos, claro. Afinal, quem nunca evocou o nome de Rui Chapéu numa disputa de boa na sinuca? Caçapa!

Foi um cara simples, que ajudou muita gente. Ele mostrou o lado divertido da sinuca e, ao mesmo tempo, acabou desmistificando insinuações maldosas e tendenciosas sobre essa prática

Jota Júnior, Locutor esportivo, hoje no Grupo Globo

Vidal Cavalcante/Folhapress Vidal Cavalcante/Folhapress

Coisa de malandro?

Rui Chapéu nunca foi campeão brasileiro ou mundial de sinuca. Na verdade, ele nunca disputou quaisquer destes campeonatos porque, segundo ele, não pagavam prêmios - ao contrário dos jogos apostados em salões, clubes e na TV.

Esta desorganização das entidades foi só um dos fatores que deixaram a sinuca marginalizada por anos. Mesmo na posição de um dos jogos mais populares do Brasil, só foi reconhecida como um esporte pelo Ministério da Educação em 1988, no auge da carreira do baiano.

Ao vivo na TV, Rui Chapéu mostrou que a sinuca não era jogada só no boteco. E nem só por bebuns ou malandros em fim de noite. Era esporte, sim. "Para chegar a ser um jogador de sinuca, você tem que ter habilidade, visão perfeita e controle emocional. Pelo menos", disse, em entrevista de 2015.

Em 1999, a revista "Isto É" elegeu Rui Chapéu como um dos mil atletas mais importantes do século 20. E a sinuca triunfou.

"Eu vi como uma certa miopia do mercado na época. Depois do Rui Chapéu, o pessoal não tinha mais mesa, bola ou taco para vender, o universo de produtos ligados à sinuca se esgotou porque virou febre", conta Francisco Leal.

Rodrigo Capote/UOL

Sinuca ao vivo na TV: teve isso

Entre 1984 e 1992, a Band deu bons índices de audiência transmitindo campeonatos de sinuca aos domingos à tarde no "Show do Esporte". Acredita?

Tudo começou com Juarez Suares. Na época, o jornalista, que morreu em julho do ano passado, cantou nos ouvidos dos criadores do programa, Luciano do Valle e Quico Leal, a ideia de colocar o "jogo de botequim" na televisão. E não deu outra: o sucesso da atração "Bilhar de Sinuca" foi estrondoso e deixou legado, a exemplo do que ocorreu com Maguila no boxe. Ídolos improváveis de esportes (até então) pouco cultuados no país.

Ainda mais com a força do personagem de Rui Chapéu, que foi descoberto enquanto vencia quaisquer oponentes nos clubes e bares de São Paulo. O contrato com a Bandeirantes veio logo após uma competição em que ele bateu os 12 melhores jogadores do país.

Um dos criadores do "Show do Esporte", Francisco Leal lembra que o momento foi propício para experimentar com a programação. "Nós chegamos com uma carga horária muito grande e fomos um laboratório para ver o que funcionava ou não na TV. Na primeira metade dos anos 80 a sinuca era praticada em bares e tinha uma certa popularidade. Resolvemos botar isso na TV, levar esse clima de boteco para ver como ficava. Então descobrimos o Rui, que já era conhecido no meio da sinuca e se mostrou um espetáculo. Foi virando a principal atração e ficou bastante tempo no ar."

Rui Chapéu impressionava a todos com sua técnica afiada. Não foi à toa que ele conseguiu deixar a sinuca no ar por oito anos. O auge nas telinhas foi quando o jogador emplacou seu nome na história da modalidade ao vencer o inglês Steve Davis, conhecido como "Pelé da sinuca" e seis vezes campeão mundial, por 6 a 1 em um jogo de exibição em 1986.

"Ele veio várias vezes aqui e perdi mais do que ganhei. Mas ganhei uma vez de 6 a 1", recordou, orgulhoso.

A sinuca era um jogo de botequim, de apostador, e a partir do momento que a sinuca foi para a televisão virou uma revolução. Passou a ser um esporte, passou a ter outra visibilidade. Foi muito interessante essa chegada do Rui com a ideia do Luciano do Valle. Ele é o grande representante de toda essa geração da sinuca: com Roberto Carlos e tal. Os jogos ficaram marcados

Elia Júnior, Ex-apresentador do "Show do Esporte"

Transmitir sinuca era algo inusitado para a época. O Brasil parava para ver... Era muito diferente, porque não era um esporte dinâmico, e tinha uma audiência muito boa. Até chegamos a trazer jogadores estrangeiros, inclusive o atual campeão mundial da época, foi muito bacana. O Show do Esporte tirou a sinuca daquela marginalidade para uma elite

Simone Mello, Ex-apresentadora do "Show do Esporte"

Elena Vetorazzo/Folhapress Elena Vetorazzo/Folhapress
Evanir R. Silveira/Folhapress

Era Rui Chapéu, mas usava boina

A sinuca é um esporte de pessoas pobres. O cara que saiu 4h de casa para trabalhar e se estressou o dia todo chega para dormir no máximo às 22h. Mas ele tem na porta da sua casa um boteco. Então ele vai, toma sua cervejinha, joga sua sinuca e vai embora para começar tudo de novo no dia seguinte.

Rui Chapéu tentou traduzir no personagem que criou para a TV sua filosofia sobre o jogador de bilhar. Era uma espécie de malandro, vestido quase sempre com roupas brancas: sapato, calça, camisa e colete. Também não abandonava a boina, de mesma cor. Aliás, a boina branca sempre foi o único item indispensável.

No começo, quando ainda trabalhava como caminhoneiro e jogava sinuca só para se divertir, é que Rui usava chapéus. Aí o apelido pegou e não largou mais, mesmo quando a boina foi vista como uma solução mais prática para criar uma marca e - ao mesmo tempo - não atrapalhar a desenvoltura na mesa. É a marca registrada de um campeão e símbolo de sucesso.

História escrita a giz

Nascido na Bahia, o menino que viraria lenda foi abandonado pelo pai aos 7 anos. Criado pela mãe ao lado de cinco irmãos, precisou trabalhar cedo. Aos 12, começou num bar com salão de sinuca e jogava para brincar nas horas vagas ou momentos de clientela baixa. Além de mostrar raro talento, treinava muito, o que incentivou o dono do estabelecimento a fazer seus clientes desafiarem o funcionário. O resultado disso foi que aos 17 anos de idade não havia mais ninguém na Bahia que pudesse desafiá-lo.

Só que tinha um problema: sinuca nos anos 50 não dava dinheiro. Então, Rui, quando atingiu a maioridade, tirou habilitação para dirigir caminhões e largou o bar para ocupar a boleia. Foi como caminhoneiro que viveu todos os anos seguintes, até parte da família fixar residência em São Paulo e arrastá-lo, com mais de 30 anos. Com um dinheirinho guardado ao longo dos anos abriu uma espécie de mercearia. O negócio não vingou, mas proporcionou o reencontro com os tacos de sinuca.

Quando a mercearia precisou fechar, Rui já era Chapéu e ganhava dinheiro apostando em bares e salões. Ele começou a viver da sinuca já na década de 70, chegou à Band aos 44 anos, e o resto da história todo mundo sabe.

O que poucos sabem é que ele rejeitou pelo menos duas possibilidades de fazer mais dinheiro no esporte fora do país: Steve Davis, o tal inglês campeão mundial, tentou convencê-lo a treinar com ele na Inglaterra e jogar por lá, onde o "snooker" é também muito popular. A TV do Japão também quis fazer uma espécie de "Show do Esporte" local, mas Rui não quis deixar o Brasil. Ele seguiu por aqui jogando e ensinando.

Vidal Cavalcante/Folhapress Vidal Cavalcante/Folhapress

68 anos de sinuca

Os últimos anos foram de aparições mais raras de Rui Chapéu na mídia. Ou quase isso... Em 2019, ele foi uma das estrelas do programa "Tá Brincando", apresentado por Otaviano Costa na Globo. O ex-jogador de sinuca era um dos "Masters", idosos que desafiavam jovens em competições e desafios. Hortência, Reginaldo Leme, Sidney Magal e uma crossfiteira de 62 anos eram outras atrações do programa, que ficou no ar por três meses.

Rui Chapéu era patrocinado por uma empresa fabricante de mesas e objetos de sinuca e estrelava conteúdos comerciais ao lado de personalidades como Neymar, Lucas Moura e o ator Caio Castro. Isso além de eventos, entrevistas, cursos e um canal de vídeos na internet. Foram 68 anos jogando sinuca no Brasil e no mundo.

Hoje, mais de duas décadas após Rui Chapéu ajudar a torná-la esporte no Brasil, a sinuca tenta se organizar para ser incluída no programa olímpico em Paris-2024. Já há brasileiro campeão mundial e até o serviço DAZN transmite campeonatos via streaming.

Se um dia você assistir a uma partida de sinuca numa Olimpíada ou mesmo acertar aquela tacada inspirada no boteco, Rui Chapéu estará lá.

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