Os causos de Adhemar

Do trote de lenda da seleção ao russo que quase matou de susto, ex-São Caetano segue divertido aos 50 anos

Augusto Zaupa e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo Keiny Andrade/UOL

Ícone de um clube que surpreendeu e encantou a todos no início dos anos 2000, Adhemar pode dizer que leva consigo o São Caetano por onde passa. Irreverente e sincerão, o ex-atacante, hoje com 50 anos, acumulou causos ao longo de mais de 20 anos de carreira como jogador profissional.

Ao UOL, recordou quando xingou ao telefone um ídolo do Palmeiras e da seleção brasileira ao receber a oferta para jogar pelo São Caetano. Além disso, lembrou que foi descrente quando ouviu o projeto da diretoria do clube do ABC —que montava, naquele momento, o elenco que seria vice-campeão da Copa João Havelange (2000), Brasileirão (2001) e Libertadores (2002).

"O objetivo era chegar, em cinco anos, na Primeira Divisão do Paulista e do Brasileiro. Eu ri por dentro porque o time quase caiu pra Bezinha e o cara falou pra mim que queria jogar o Brasileiro. Era uma ousadia", comentou.

Orgulhoso por nunca ter atuado em um grande clube do Brasil, o maior artilheiro da história do Azulão também contou como convenceu Túlio Maravilha a voltar ao Botafogo para que ele, enfim, virasse titular no time de São Caetano do Sul.

A passagem pela Alemanha também rendeu risadas. Incluindo a saia justa ao ser confundido com um empresário pela sua estatura de "jogador de pebolim" e o dia em que uma das suas brincadeiras nas concentrações quase matou de susto uma promessa bielorrussa na concentração do Stuttgart. "O cara caiu no chão e começou a espumar a boca. Achei que tinha matado o russo."

Keiny Andrade/UOL

Só pode ser trote

O casamento entre Adhemar e São Caetano quase não foi selado. No fim de 1996, Adhemar já estava de férias e no interior do Estado de São Paulo com a família quando, por volta das 23h, tocou o telefone da sua residência. Do outro lado da linha era Luís Pereira, ex-zagueiro de Azulão, Palmeiras e seleção brasileira e que trabalhava como auxiliar no time do ABC. O objetivo daquela ligação era contratar o então atleta de 24 anos.

"Tocou o telefone em casa no interior. Pô, em 96 não tinha celular, era só telefone fixo. No interior, às 22h todo mundo dormindo, né! Eu já pensei: puta, morreu alguém ou foi acidente. Aí, uma vozona rouca do outro lado [imitando o interlocutor] disse: 'Boa noite, aqui é o Luís Pereira'. Eu, já puto, falei: 'Vai tomar no seu cu. O Luís Pereira que eu conheço é aquele zagueiro da perna torta, caralho'. Ele falou que era ele mesmo. Pedi desculpas. Ele estava com o falecido [técnico Antônio Carlos] Fedato [morto em 2000, vítima de enfarto agudo do miocárdio]. Eles montaram o time do São Caetano."

À época, o Azulão começava o planejamento que o colocaria na elite do futebol brasileiro. Bicho do mato, Adhemar quase não aceitou a proposta. "Estava com medo de ir pra São Paulo. Eu não vou, não vou, só tem bandido. O Luís Pereira falou: 'Vê aí o que o senhor gostaria de ganhar pra vir pra cá'. Eu pensei: 'Puta, cara, eu vou falar um salário meio exorbitante e aí eu fico de boa com o cara'. Falei que eu gostaria de ganhar dez vezes mais do que eu ganhava no São Bento. Nem teve negociação. Ele me falou para eu me apresentar amanhã cedo. Fodeu, pensei. Tive que acordar a minha mulher na madrugada e falar que tinha que ir embora cedo pra São Paulo. Ela disse que eu estava louco."

Jorge Araújo/Folhapress
Adhemar e o troféu do vice-campeonato brasileiro

Quando eu cheguei, o São Caetano tinha jogado a última partida pra não cair para a Bezinha [Quarta Divisão do Paulistão]. O diretor de futebol, o [empresário José Carlos] Molina, me falou que o nosso objetivo era chegar, em cinco anos, na Primeira Divisão do Paulista e do Brasileiro. Eu ri por dentro, porque o time quase caiu pra Bezinha e o cara falou pra mim que queria jogar o Brasileiro, era uma ousadia. [O time] Até antecipou, porque chegou na final da Libertadores em 2002, Série A do Brasileiro em 2000 e A1 do Paulista já tinha conseguido em 2000."

Keiny Andrade/UOL

O técnico "tripolar"

Adhemar penou para conseguir espaço no time titular no fim dos anos 1990. Antes de conseguir o lugar na "janelinha do trem", o atacante quase foi dispensado por Luiz Carlos Ferreira, apelidado de "Rei do Acesso" por conseguir diversos acessos em diferentes divisões.

"Em 97, fui o artilheiro da Série A3, mas nós não subimos. Em 98, chega o Luiz Carlos Ferreira. Pensei: 'Sou artilheiro e todo mundo ligando pra mim, me pedindo, serei o capitão e vou com a camisa 10'. Quando eu olho, ele [técnico] fez uma lista de dispensa e o meu nome era o primeiro. Vai entender, o futebol é louco", disse aos risos.

Passado o susto de quase perder o emprego, Adhemar acabou caindo nas graças de Luiz Carlos Ferreira. Até o ajudava a escalar o time antes dos jogos. Mas seguia no banco de reservas e chegou a ser emprestado para o Ponta Grossa, do Paraná, em 98.

"Ele era louco, bipolar. Aliás, bipolar não, tripolar. Ele tinha mais uma fase (risos). Que Deus o tenha [o treinador morreu em setembro de 2020 devido a um câncer de cabeça]. Eu escalava o time com ele no domingo de manhã. Sentava com ele no restaurante, no café da manhã. Ele falava: 'vamos escalar o time aqui, você viu quem treinou bem, quem não treinou, vamos escalar aqui comigo'. Quando chegava no atacante, ele falava: 'você está com medo de jogar hoje, eu vou te cortar'", conta Adhemar, aos risos.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

Fez Túlio voltar ao Botafogo e virou titular

Talvez poucos se lembrem, mas entre as dezenas de times, Túlio Maravilha defendeu o São Caetano. Depois de uma passagem apagada pelo Corinthians, em 1997, o goleador regressou a São Paulo para jogar no time do ABC e foi o artilheiro da Série A2 do Paulista de 2000. Porém, ainda naquela temporada, regressou ao Rio de Janeiro para vestir mais uma vez a camisa do Botafogo, graças a um conselho de Adhemar.

"A gente tinha muita amizade, até hoje a gente conversa. Ele falou assim: 'Adhemar, o Botafogo me falou que vai pagar tudo o que me deve, vai me dar um salário X e vai fazer em parcelas, vai me pagar'. Eu brincava com ele: 'Túlio, nem se troca [para o treino]. Eu vou te levar ali para Congonhas, você vai pro Rio de Janeiro'. Pô, ele era o titular (risos)."

Foi então que a chave virou para Adhemar. Depois de ser emprestado e amargar o banco de reservas, finalmente veio a vaga no time titular. Antes, houve uma conversa com Jair Picerni, treinador do Azulão à época.

O Túlio foi, voltou para o Botafogo. O Jair Picerni me chamou no canto. Ele me chamava de caipira: 'Ô, caipira. O Túlio não vai ficar para a João Havelange, a diretoria me ofereceu um monte de nome, até jogadores de nível de seleção brasileira'. O São Caetano tinha uma baita estrutura, pagava 100 paus pro Túlio na época. Ele [Jair] disse que estava vendo eu entrar nas partidas com vontade e que não iria contratar ninguém. 'Você vai dar conta do recado'. Foi um misto de responsabilidade com confiança. Aquilo me deixou multo feliz, eu não estava esperando."

Naquela temporada, o São Caetano terminou a Copa João Havelange na segunda colocação, perdendo título na polêmica final com o Vasco. Já o Botafogo de Túlio terminou o Módulo Azul na 16ª colocação. Túlio anotou quatro gols. Adhemar foi o artilheiro do torneio, com 22.

Eduardo Knapp/Folhapress

O "bostinha" era Ronaldinho Gaúcho

A Copa João Havelange reuniu 116 clubes de várias divisões em 2000, divididos em quatro módulos. Ronaldinho Gaúcho era um jovem buscando espaço no Grêmio quando o torneio começou. Quando terminou, foi eleito para a seleção pela Bola de Prata.

Para chegar à final, o São Caetano teve que superar o Tricolor gaúcho, e fez isso duas vezes. Primeiro, no extinto Parque Antarctica por 3 a 2, e depois no também aposentado estádio Olímpico por 3 a 1. No duelo da ex-casa palmeirense, que deu lugar ao moderno Allianz Parque, Adhemar teve um embate com Ronaldinho Gaúcho. Cada um marcou duas vezes.

Antes de a bola rolar, porém, o volante Adãozinho —que formava o trio AAA do São Caetano de 2000/2002 com Anaílson e Adhemar) — pediu para o atacante do Azulão jogar avançado. Assustado, Adhemar chamou a atenção para o forte time gremista.

"Ele falou assim: 'eu quero você pra frente da linha do meio campo, não quero você aqui atrás'. O Adão gostava dessa bola longa. Mas eu disse: 'Adão, você é louco cara? O Grêmio é um timão, tem Anderson Polga, Roger Machado...' Ele olhou de lado e disse: 'Se eu não aguentar marcar um bostinha desse aqui [apontando para o jogador do Grêmio], eu vou aguentar marcar quem, Adhemar?' Era o Ronaldinho Gaúcho, com 20 anos. O Ronaldinho 'estufou' o olho, eu estou fodido com este cara hoje. Mas ele ainda fez os dois gols' (risos)".

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

Zagueirada dava voadora até na placa de publicidade

Após ser goleador da Copa João Havelange, Adhemar despertou o interesse de clubes brasileiros e internacionais. Em janeiro de 2001, foi contratado por US$ 2 milhões pelo Stuttgart, que desistiu de Dodô, o artilheiro dos gols bonitos (então no Santos), para levar o atacante do Azulão. A adaptação ao futebol alemão, no entanto, não foi nada fácil.

"Dentro de campo eram escolas diferentes. Saí do Brasil, que é uma escola técnica, e fui para a Alemanha onde a zagueirada dava voadora até na placa de publicidade. Você tem que se adaptar ao sistema rápido de jogo, dois toques na bola, não pode ficar segurando muito a bola", recorda.

Antes de estrear pelo Stuttgart, Adhemar ainda passou por uma saia justa:

"Cheguei [no CT do Stuttgart] com o tradutor. Desci todo empolgado, de blazer e sapato bico fino. O diretor de futebol falou assim: 'o empresário do atacante chegou, cadê o atacante grandão que você falou que ia fazer gols pra nós?' O tradutor ficou até sem jeito para responder. 'Pô, fala que sou eu, caramba!' Quando ele olhou pra mim deve ter pensado, 'Vixi, contratamos gato por lebre' (risos). Quando eu joguei lá, tinha o atacante [tcheco] Jan Koller, do Borussia Dortmund, que tinha 2,02 metros. Com 1,69 m, eu era jogador de pebolim."

Em duas temporadas, foram 42 jogos e nove gols anotados pelo Stuttgart.

AFP/EPA/DPA/Bernd Weissbrod/bw-hh

"Em 2002, eu estava na Alemanha e o Brasil foi campeão. Esperei todo mundo descer para o café, às 7h da manhã. O Bordon, ex-zagueiro que jogava comigo lá, pegou a maquininha e cortou o meu cabelo, deixou o cascãozinho, igual ao do Ronaldo. Quando desci, dei 'good morning'. Os caras todos olharam para trás. Foi só palavrão em português. Os caras sabiam mais palavrão em português do que eu (risos)."

Eduardo Knapp / Folhapress

Recusou o São Paulo para ganhar em dólar na Alemanha

Ao longo de mais de 20 anos de carreira, Adhemar nunca defendeu a camisa de um clube de ponta no futebol brasileiro - o mais perto que chegou foram os aspirantes do Corinthians, em 1993. Porém, ficou muito próximo de assinar com o São Paulo no início da temporada 2001.

"Pensei, é óbvio, na minha família, foi a questão financeira. Eu ia ganhar no São Paulo o mesmo que eu iria ganhar no Stuttgart, porém lá era em dólar, só era fazer vezes quatro. Em um ano no Stuttgart equivaleria há quatro anos de São Paulo. Pensei na minha família. Na hora que eu parasse de jogar futebol, eu não ia chegar no mercado e falar: 'ô, me dá esse saco de arroz porque eu joguei no São Paulo. O cara [iria responder], 'paga aí 20 conto que você leva' (risos)".

Em outras entrevistas, Adhemar já revelou ter sido mal instruído: com as leis da Alemanha, 50% do seu salário foi retido por causa de impostos.

Maior artilheiro da história do São Caetano, com 68 gols, Adhemar bate no peito ao afirmar que não se arrepende de nunca ter assinado com um time de massa, como Corinthians ou Flamengo. "Se eu tivesse jogado no São Paulo, iam falar de Raí, Rogério Ceni e o meu nome não estaria lá. Mas em uma pesquisa dessa aí (SporTV), quando citaram o São Caetano, eu estou com 92% de indicação. Pra mim é gratificante."

O São Caetano era o top 5 do futebol brasileiro, ficou muito legal pra mim. Hoje, vou nos eventos e não tenho rivalidade com ninguém. Corintiano, palmeirense, santista, são-paulino... Todo mundo vem tirar foto. Se tivesse jogado no Corinthians, o palmeirense iria querer saber da minha cara?"

Adhemar

O São Caetano hoje está tentando se reerguer. É um clube que eu tenho certeza que ficou marcado no coração de todo o brasileiro da nossa geração, que conquistou um carinho muito grande e se tornou a maior torcida do país. Afinal, era o segundo time de todo o torcedor."

Adhemar

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

Quase matou um colega na concentração de susto

Ao longo da entrevista exclusiva ao UOL, ficou nítido o estilo brincalhão de Adhemar. Nas concentrações, era a mesma coisa: "Tinha um monte de jogador que era leão só era dentro do campo, porque fora, nossa, se mexia um matinho no escuro os caras já saiam correndo. Eu pegava lençol, deixava em cima das moitas, colocava vela ascendida nos cantos, arrancava todas as luzes do corredor..."

Em uma das peças aplicadas pelo ex-jogador, ele quase matou um colega de susto. Literalmente. O brasileiro dividia o quarto da concentração com Alexander Hleb, que passaria, depois, por Arsenal e Barcelona. Na época, porém, era apenas uma revelação bielorrussa de 19 anos.

"Liguei a televisão, desliguei a luz do quarto e fiquei escondido atrás da cortina com a máscara do Jason [personagem dos filmes Sexta-Feira 13]. Chega o Alexander Hleb e abre a porta do quarto. Eu só coloquei a cabecinha enroscada pelas duas cortinas e falei: 'good night'. O cara caiu no chão e começou a espumar a boca. Achei que tinha matado o russo. 'Puta, fodeu! Chamei o massagista. Ele foi lá começou a abanar, passou álcool e ele [Hleb] voltou. Ele me xingou em russo. Pensa num cara bravo em russo..."

"Ele era parceiro demais, gente boa demais. Eu não falava nada em russo. Ele, nada em português, mas a gente ficava conversando a noite inteira. Você imagina que diálogo lindo".

Keiny Andrade/UOL

Parceiro de Tom Brady no Tampa Bay Buccaneers?

Por ter um chute potente, Adhemar chegou a receber a alcunha de "Canhão do ABC". Foi então que, em 2006, recebeu um convite inusitado do Tampa Bay Buccaneers — time onde atua o quarterback Tom Brady (maior campeão da história da NFL, com sete títulos). A proposta para atuar como kicker foi recusada por questões burocráticas.

Mas como o azul corre em suas veias, Adhemar resolveu aceitar a oferta de defender o São Caetano Blue Birds. A aventura com a bola oval durou apenas uma partida —diante do Corinthians Steamrollers. O São Caetano perdeu por 33 a 3, mas teve um field goal do Canhão.

"Nosso time era muito ruim. O Corinthians estava enfiando 30 x 0. Eu estava lá trotando no campo e vem um cara do Corinthians e meteu o capacete do meu lado, me jogou na grama. Peguei e falei pra ele: 'você está fodido: a hora que você passar aqui eu vou dar um carrinho e vou quebrar as suas duas pernas'. Ele me reconheceu, mas disse que no futebol americano não pode dar carrinho, que eu iria tomar dez jardas [de punição]. Falei: 'Melhor que cartão vermelho, só 10 jardas. Você está fodido'."

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

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