Aviso de despejo

A luta de um clube centenário de São Paulo que pode perder seu terreno e acabar

Arthur Sandes Do UOL, em São Paulo Arthur Sandes/UOL

Todo dia, Francisco Ingegnere, de 67 anos, sai de casa e vai até o Santa Marina Atlético Clube ocupar a cabeça e cuidar dos afazeres de uma instituição centenária que pode estar com os dias contados. O terreno que o clube ocupa desde os Anos 40 está prestes a ser tomado por uma multinacional.

Francisco trabalhou durante quase 40 anos no mesmo quarteirão do bairro da Água Branca, em São Paulo, seguindo os passos do bisavô, do avô e do pai. Todos eles foram operários da Vidraria Santa Marina, famosa por fabricar itens domésticos como aquelas xícaras de cor caramelo que talvez estejam na sua cozinha.

Foi da vidraria que nasceu o Santa Marina AC, orgulho daquelas famílias operárias, em sua maioria italianas como a de Francisco, que trabalhavam, moravam e praticavam esportes no terreno que hoje provoca cobiça. Os bairros próximos se desenvolveram tanto em 100 anos, que o metro quadrado ali parece valer mais do que a própria história: a área foi avaliada em R$ 86 milhões.

O clube é o projeto de vida do presidente Francisco Ingegnere, que desde 1997 cuida para não deixar esta história desaparecer. Famoso na várzea e nas categorias de base, o Santa Marina ainda abriga aulas de futsal e jogos amadores, mas há décadas vem perdendo "pedaços" de seu terreno e pode acabar em menos de 60 dias.

Arthur Sandes/UOL
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Encolhimento já dura 50 anos

Do círculo central dá para ver a chaminé desativada da vidraria, onde o tempo já quase apagou o nome Santa Marina. O campo de várzea é a última área aberta que o clube ainda detém, espremido entre a rua e o vizinho que já não o quer mais ali. O aperto não é de hoje. Há décadas, o clube vem perdendo partes de seu terreno para a empresa.

A vidraria também já viveu encolhimento: há 50 anos, as construções da Marginal Tietê e da Avenida Ermano Marchetti tomaram parte do espaço, o que a fez demolir uma vila operária para atender a demanda crescente por espaços. Foi neste contexto que a empresa voltou os olhos para o clube vizinho e foi lhe confiscando um pedaço de cada vez. Em 1992, por exemplo, o antigo campo e arquibancadas foram demolidos de um dia para outro.

A disputa atual é entre o clube e a multinacional Saint-Gobain, que se associou à Vidraria Santa Marina em 1960 e é a dona de todo o terreno ao redor. O clube ocupa cerca de 9.600 m², menos da metade do que um dia teve, o que corresponde a 4% dos 232 mil m² que a empresa vizinha tem naquele quarteirão. Parte da vidraria é patrimônio histórico e está tombada pela Prefeitura de São Paulo desde 2009, mas o grupo francês ainda usa os amplos galpões do local.

Atualmente, a Santa Marina aguarda o julgamento de um recurso do pedido de reintegração de posse feito pela Saint-Gobain. É praticamente um tudo ou nada: se o clube vencer, ganha tempo para tentar adquirir o terreno via usucapião (por tempo de ocupação); se perder, deixa de existir.

Vidraria em mapa de 1905, quando toda a região ainda era um alagadiço

Reprodução Reprodução

O nascimento na fábrica; a briga com a multinacional

A Vidraria Santa Marina é um capítulo da história da própria cidade de São Paulo. Fundada ainda no século XIX, atraiu centenas de famílias de operários nas décadas seguintes e, assim, teve papel fundamental no desenvolvimento dos bairros Água Branca, Freguesia do Ó e Pompeia, que na época ainda eram áreas alagadiças. Foi desta comunidade que nasceu o Santa Marina Atlético Clube, em 1913.

A relação entre clube e empresa era umbilical, mais ou menos como o Juventus da Mooca ou o Bangu-RJ se relacionavam com a indústria têxtil. O esporte se tornou a expressão cultural dos operários, e não era à toa que tudo acontecia em um único lugar: a vidraria, o campo de futebol e a vila dos operários ocupavam o mesmo terreno, algo conveniente e bastante comum nas fábricas paulistanas.

No entanto, se há 100 anos, o Santa Marina AC e a Vidraria Santa Marina quase se confundiam, com o tempo, as duas instituições se distanciaram. Problemas financeiros e disputas internas enfraqueceram a empresa nos Anos 50, o que levou à associação com a Saint-Gobain, o encolhimento do terreno e, em resumo, à briga judicial que pode extinguir o clube neste ano.

Arthur Sandes/UOL

"Nós não invadimos nada"

"Se a gente morrer, isso aqui não continua", lamenta Francisco Ingegnere, ciente de que a disputa que trava é muito mais difícil do que ele gostaria. Cada dia que amanhece é um lembrete de que o clube de 107 anos pode estar prestes a desaparecer, como se o Santa Marina AC jogasse os minutos finais de uma prorrogação já quase perdida. "Mas a gente tem esperança".

O grande orgulho de Francisco é a abarrotada sala de troféus em que parece não caber mais nada. Ali, ele abre jornais e revistas antigos para apontar aqui e ali personagens que construíram o clube. Outro orgulho é a placa instalada pela Prefeitura, bem ao lado do portão de entrada, que trata o Santa Marina AC como patrimônio cultural da cidade.

Ele preside o clube com um braço direito, Rose, sua irmã, também ex-funcionária da vidraria e responsável por quase tudo que é administrativo por ali. Juntos, tentam afastar o pessimismo enquanto o calendário corre.

"Nós somos nascidos e criados aqui, não invadimos nada. Quando derrubaram a vila [operária], pagaram uma indenização para as famílias. Nós não queremos abandonar o clube com uma indenização, nós queremos é ficar. Se nos tirarem isso aqui..", diz Francisco, e as palavras subitamente lhe faltam. "Vamos perder tudo isso?"

Da tentativa de profissionalização a Lulinha e Morato

Já nas primeiras décadas, o Santa Marina AC despontou como força do esporte amador da capital. Além de um salão de festas para eventos, a sede social tinha espaço para prática de luta greco-romana, halterofilismo e boxe, e não é à toa que fotos de um jovem Éder Jofre —ex-campeão mundial da modalidade— até hoje decoram as paredes do clube.

O sucesso amador inspirou a tentativa de profissionalização no futebol, em 1960, mas a campanha na quarta divisão do Campeonato Paulista foi ruim. Só valeu mesmo para a história, como a primeira vitória "oficial" do clube, em 24 de julho daquele ano, sobre o EC São Bernardo —que disputou a última Série A2.

O protagonismo sempre esteve mesmo nas categorias de base e nas ligas amadoras de futebol. Os ex-corintianos Lulinha e Fininho já vestiram a camisa do clube, assim como Rodrigo Taddei (ídolo da Roma) e o atacante Morato (hoje no Vasco da Gama).

O Santa Marina nasceu do mesmo caldeirão cultural e esportivo que fundou outros clubes operários, como o Corinthians, e ainda hoje resiste a apenas 750 metros dos CTs de Palmeiras e São Paulo, mas as semelhanças terminam mais ou menos por aí. A final de campeonato do clube é pela própria sobrevivência.

Arthur Sandes/UOL
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Corrida contra o tempo na Justiça

O Santa Marina e a Saint-Gobain vivem disputa judicial desde 2007. O clube ocupava o terreno sem nenhuma documentação, com base no uso histórico da área, até assinar naquele ano um contrato de comodato com a empresa (uma espécie de empréstimo do terreno). A tensão aumentou há quatro anos, entre um pedido de usucapião pelo clube (a aquisição por tempo de uso) e um processo de reintegração de posse (a tomada do terreno pela multinacional).

"Querendo regularizar a situação, [em 2007] o clube se viu pressionado, coagido, e firmou um contrato de comodato com a Saint-Gobain que estabelecia um empréstimo do terreno por dez anos. E a empresa poderia, inclusive, requerer a retomada deste terreno", explica Caio Marcelo Dias, advogado do Santa Marina.

A partir daí, a situação ficou cada vez mais complexa. O clube entrou com um pedido de usucapião extraordinária (pois ocupa o terreno há mais de 15 anos), que ainda está sendo apreciado pela Justiça. A empresa pediu a reintegração de posse duas vezes: uma foi negada; na outra teve sucesso, e por isso, a 2ª Vara Cível do Fórum da Lapa estabeleceu 120 dias para a desocupação voluntária do terreno. O prazo termina em 7 de agosto.

O clube corre contra o tempo para evitar a reintegração e precisa de uma decisão favorável antes desta data. Há um recurso em vias de ser julgado, e a expectativa é que a decisão saia já na próxima semana para confirmar a reintegração de posse ou derrubar a decisão. Caso sofra nova derrota, o Santa Marina ainda poderia recorrer ao STJ, mas, neste caso, com chances muito menores.

O que diz a Saint-Gobain

Questionado pelo UOL Esporte sobre o que motivou o pedido de reintegração de posse, o Grupo Saint-Gobain afirma que o imóvel ocupado pelo clube "pertence ao grupo".

"A empresa não comenta processos judiciais que estão em curso, contudo, reitera que sempre esteve disponível para o diálogo com o Santa Marina Atlético Clube a fim de encontrarem, em comum acordo, a melhor solução para ambas as partes", diz em nota oficial.

Quanto aos planos para o terreno ocupado pelo clube, a multinacional "acrescenta que, considerando o desenvolvimento dos negócios e suas operações no Brasil, várias possibilidades sobre o futuro do imóvel estão sob análise e estudo".

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