Lei de Dracena

Santos perdeu quase R$ 350 milhões em dez jogadores que saíram do clube. Agora, Edu Dracena quer mudar isso

Eder Traskini e Lucas Musetti Do UOL, em Santos (SP) Ivan Storti/Santos FC

Se dizem que a água de Santos é diferente, o terno e gravata da cidade praiana também parecem ser. O Peixe que tanto revela jogadores em suas categorias de base parece perder joias na mesma velocidade diante de gestões atrapalhadas que permeiam os corredores da Vila Belmiro há anos.

Toda e qualquer renovação de contrato de jovens de potencial parece se tornar uma novela no CT Rei Pelé. As idas e vindas de reuniões por novos vínculos se tornaram tão corriqueiras que o torcedor santista chega a se espantar quando não ocorrem —ou quando uma transação é bem feita.

Parece um círculo vicioso. O time profissional, de orçamentos baixos nos últimos anos, perde algum jogador e o Peixe recorre à base para repor a ausência. O clube queima uma etapa para alçar aquele talento que pode ajudar no desempenho do time de cima e, em grande parte das vezes, tem a resposta técnica no gramado. Mas se esquece do extracampo.

Vê-se somente depois que aquele jovem que subiu ao time de cima e já começou atrair olhares cobiçosos de fora da Vila Belmiro tem pouco tempo de contrato —e pode sair a qualquer momento. Só nos últimos anos o Santos perdeu quase R$ 350 milhões* em jogadores assim.

É justamente isso que o novo executivo de futebol, o ex-jogador Edu Dracena, promete evitar. O "Capitão América", apelido que Dracena ganhou ao erguer a taça da Libertadores como jogador em 2011, pode não ser o Capitão Nascimento, icônico personagem do filme Tropa de Elite, mas com ele também não vai subir ninguém. Pelo menos sem contrato.

* Valor de mercado somado de dez atletas que saíram nos últimos anos do Santos, em avaliação do site Transfermarkt. Mais informações em lista abaixo.

Ivan Storti/Santos FC

A Lei de Dracena

Problema crônico

Estreias precoces de jovens talentos é uma tradição no Santos. Coutinho lidera a lista ao fazer seu primeiro jogo com apenas 14 anos e 11 meses em 1958. Ângelo, nova revelação do Peixe, é o segundo colocado: estreou com apenas 15 anos, 10 meses e quatro dias. Era 11 dias mais jovem que o Rei Pelé, o terceiro da lista.

O ponto é que estrear tão jovem não é coisa do Santos da década de 60 ou uma exeção. Gabigol, Sandry, Renyer, Yuri Alberto, Victor Andrade, Kaio Jorge, Rodrygo, Diego Ribas e Victor Yan são atletas deste século que fizeram seu primeiro jogo como profissional antes de completarem 17 anos.

Com as atrapalhadas gestões já citadas, muitos deles tinham contratos curtos e renovar tais vínculos se tornou uma novela. O exemplo malsucedido mais recente foi Kaio Jorge. O Peixe tentou renovar com o atacante, não conseguiu e, no fim, fez acordo com a Juventus para não perdê-lo de graça.

Antes disso, na ocasião de negociação de seu primeiro contrato profissional, a novela se arrastou tanto que a família de Kaio Jorge chegou a fazer uma carta se despedindo dos torcedores do Peixe. No fim, ele acabou ficando, mas o Santos não conseguiu a renovação posterior. Outros citados, como Sandry e Renyer, também viram suas renovações contratuais se tornarem novelas, mas acabaram ficando.

Para evitar tantos problemas, Dracena quer trabalhar com antecedência nos dois casos: antes de subir ao profissional, o jogador terá de assinar um contrato longo. E, assim que o atleta completar 18 anos, normalmente a um ano do fim contrato assinado aos 16, o clube já irá renovar o vínculo —pelo menos dos jogadores com maior potencial.

R$ 346 milhões perdidos para outras vilas

  • Caio Henrique

    Nem estreou no profissional. Sem acordo por renovação ainda na base, acertou com o Atletico de Madri (ESP). Valor de mercado (segundo o site Transfermarkt): 18 milhões de euros (R$ 108 milhões).

    Imagem: Juan Manuel Serrano Arce/Getty Images
  • Robson Bambu

    Subiu há menos de seis meses do fim do vínculo e com pré-contrato assinado com o Athletico-PR. Santos entrou na justiça e ganhou indenização de R$ 7 milhões. Furacão vendeu o defensor ao Nice (FRA) por R$ 47 milhões. Valor de mercado: 3 milhões de euros (R$ 18 milhões).

    Imagem: Divulgação
  • Gustavo Henrique

    Renovação do Menino da Vila virou novela, mas o atleta seguiu atuando até o fim do Brasileirão, mesmo com vínculo vencendo e podendo assinar pré-contrato. Deixou o clube de graça para o Flamengo. Valor de mercado: 3 milhões de euros (R$ 18 milhões).

    Imagem: Divulgação/Site oficial do Flamengo
  • Kaique Rocha

    Não estreou profissionalmente. A renovação travou ainda na base e, já podendo assinar um pré-contrato, o zagueiro foi vendido à Sampdoria (ITA) por 1,25 milhão de euros (R$ 5,7 milhões na época). Valor de mercado: 1 milhão de euros (R$ 6 milhões).

    Imagem: Divulgação/Sampdoria
  • Léo Cittadini

    O meia chegou ainda na base, foi campeão da Copinha em 2013 e ficou até 2018 no clube. Em seu último ano, jogou mesmo com vínculo vencendo, não acertou renovação e se transferiu de graça ao Athletico-PR. Valor de mercado: 2 milhões de euros (R$ 12 milhões).

    Imagem: Daniel Vorley/AGIF
  • André Anderson

    O meia-atacante era tido como uma das principais promessas da base santista, mas não chegou a um acordo e sairia de graça se o Peixe não tivesse feito um acordo com a Lazio (ITA) para receber 400 mil euros. Valor de mercado: 1,7 milhão de euros (R$ 10 milhões).

    Imagem: Divulgação/Site oficial da Lazio
  • Giovanni Manson

    O estafe do camisa 10 da aclamada geração 2002 santista alega que nunca foi chamado para negociar o primeiro contrato profissional do jogador. Giovanni -- que tem o nome em homenagem ao meia que jogou no Peixe e ficou conhecido como G10, o Messias -- saiu de graça e acertou com o Ajax. Valor de mercado: 850 mil euros (R$ 5 milhões).

    Imagem: Divulgação/Ajax
  • Yuri Alberto

    O parceiro de Rodrygo na base subiu ao profissional e foi desacreditado pelo clube, que viu seu contrato chegando ao fim e não fez grande esforço para renovar. Yuri Alberto saiu de graça, mas o Santos manteve 10% dos direitos em acordo com o Internacional. O centroavante acaba de ser vendido ao Zenit (RUS) por 25 milhões de euros (R$ 150 milhões). Valor de mercado: 12 milhões de euros (R$ 72 milhões).

    Imagem: GettyImages
  • Kaio Jorge

    Outro atacante que brilhou na base e seguiu jogando, e brilhando, no profissional até perto do fim do vínculo. Com a Europa de olho, o Santos não foi capaz de segurar o jogador, que acertou com a Juventus (ITA). O Peixe fez um acordo para não sair "de mãos abanando" e recebeu R$ 18,5 milhões, além de poder ganhar mais R$ 6 milhões por metas. Valor de mercado: 12 milhões de euros (R$ 72 milhões).

    Imagem: Divulgação
  • Danilo Pereira

    O próprio atacante já disse em entrevista que o Santos não quis renovar seu contrato. Assim, o Ajax aproveitou e levou o atleta de graça. Valor de mercado: 4,2 milhões de euros (R$ 25 milhões).

    Imagem: Soccrates Images/Getty Images
Ivan Storti/Santos FC

Treina, mas não joga

Com carta branca de Andres Rueda, Edu Dracena adotou uma regra radical no Santos: ninguém da base será promovido ao elenco profissional sem um contrato longo.

O atleta em questão pode até treinar com o técnico Fabio Carille, mas não será relacionado para jogos antes de renovar. Esse recado já foi dado a jogadores, familiares e empresários.

Dracena entende que, dessa forma, as renovações serão mais fáceis pelo fato de todo garoto querer estrear profissionalmente. Com salário compatível e multa rescisória alta, o Menino da Vila pode subir sem colocar o clube em risco no mercado.

A "Lei Edu Dracena" também foi conversada com Carille. Se tiver alguma demanda de última hora e a renovação não puder ser feita a tempo, ele precisará improvisar.

"A covid-19 deixa a gente exposto, mas o jogador só vai jogar com contrato longo. A gente improvisa, dá um jeito, mas não vai jogar. Marcos Leonardo foi o último", disse Edu.

Outra preocupação do executivo é a FIFA só permitir contrato de três anos com quem tem menos de 18. A ideia é sempre estar com uma temporada na frente, como ocorreu com Ângelo, que está com 17. O atacante fez 16 em 2020 e assinou até 2023. Edu Dracena já estendeu até dezembro de 2024.

Eu faço um contrato quando o jogador tem 16 anos e aí já pode assinar pré-contrato com a Europa quando tiver 18, se não renovar de novo. Então, se não posso fazer de cinco anos direto, faço até completar 18 e já aumento de ano em ano para estarmos na frente".

Edu Dracena, executivo de Futebol do Santos

O "B" da questão

O Santos se preocupa em melhorar os processos administrativos, mas nada adianta se a relação com os empresários for ruim. Principalmente se o agente em questão for Giuliano Bertolucci, um dos maiores do mundo.

Bertolucci emprestou R$ 6 milhões ao Peixe de Modesto Roma e não recebeu. Com José Carlos Peres, fez acordo e não viu um real sequer. Esse calote de quatro anos só foi resolvido por Andres Rueda em abril de 2021. Acrescida de multa e juros, a dívida chegou em R$ 12 milhões. E foi renegociada para pagamento em parcelas.

Mais do que se comprometer a quitar esse débito, Rueda conseguiu a confiança de Bertolucci. Cada um defende o seu lado, mas existe hoje uma relação profissional que pode evitar novas perdas de Meninos da Vila.

Em 2021, o Santos renovou com Gabriel Pirani e Sandry, diminuiu o prejuízo na saída de Kaio Jorge e está negociando um longo contrato para Kaiky, todos da Bertolucci Sports. No passado, dois atletas da empresa deixaram o clube sem estrear no profissional: André Anderson e Giovanni Manson.

Quando Andres Rueda assumiu o Santos, em dezembro de 2020, o tema Kaio Jorge já era praticamente irreversível. O contrato terminava em um ano e a família já estava convencida a sair. Dessa forma, o Peixe negociou com a Juventus (ITA) e ficou com 3 milhões de euros (R$ 18,5 mi), mais R$ 6,1 mi quando o atacante atingir um determinado número de jogos e 5% do que exceder de futura venda de mais de 3 milhões de euros.

Ivan Storti/Santos FC

Na prática

O grande exemplo da nova metodologia do Santos com Edu Dracena no departamento de futebol foi a renovação de Marcos Leonardo.

Edu chegou ao Peixe em outubro de 2021, quando a negociação com o atacante já durava 10 meses. Ao sentir que o acordo seria difícil, o executivo foi à imprensa e deu um recado: "Se ele não renovar, vai treinar separado e não jogará o Campeonato Paulista".

A declaração não pegou bem com a família e estafe do Menino da Vila, mas foi um recado para além de Marcos Leonardo. Publicamente, Dracena aproveitou a "novela" para dar um alerta a outros empresários. Em off, foi avançando pouco a pouco por um acordo.

Marcos tinha vínculo só até outubro de 2022 e renovou até dezembro de 2026. Para garantir a permanência do camisa 9, o Santos mais do que dobrou o salário, cedeu 20% dos direitos econômicos e ficou com 80% e fixou a multa rescisória em 60 milhões de euros (R$ 365 mi).

Outro exemplo recente foi o acerto com Weslley Patati, meia-atacante destaque da Copinha. Edu Dracena viu o bom desempenho do garoto nos primeiros jogos da competição e chamou para renovar antes da segunda fase. O contrato, antes até dezembro de 2022, foi estendido até dezembro de 2024, com reajuste salarial.

Se o acordo não saísse, Patati teria a participação ameaçada nas decisões do torneio. O Peixe foi até a final e perdeu para o Palmeiras. O jovem foi inscrito no Campeonato Paulista a pedido de Fabio Carille e deve treinar gradativamente no elenco profissional.

Ronny Santos/Folhapress

Não é só na base

O Santos perdeu outros jogadores de graça nos últimos anos, como Maikon Leite em 2011 e Lucas Lima em 2017, ambos para o rival Palmeiras.

Maikon estava emprestado pelo Peixe ao Athletico quando assinou um pré-contrato de cinco anos com o Verdão, mesma duração do acordo de Lucas com o clube alviverde.

A saída de Maikon Leite não foi tão sentida quanto a de Lucas Lima, que despertou a ira da torcida do Santos. Lucas recusou várias propostas do Peixe e jogou o Campeonato Brasileiro até o fim antes de subir a serra.

Caso semelhante ocorreu com Gustavo Henrique em 2019. Formado na base e no elenco profissional do Santos há seis anos, ele também negou as ofertas para ficar e foi para o Flamengo. Na ocasião, o zagueiro foi defendido pelo diretor Paulo Autuori e vestiu a faixa de capitão na reta final do Brasileirão.

Na última rodada, o Santos venceu justamente o campeão Flamengo por 4 a 0 na Vila Belmiro. Gustavo Henrique, já ciente de que deixaria o Peixe, foi titular.

A titularidade até o fim do contrato não aconteceria com Edu Dracena. E muito menos o fato de ser o capitão. Vale lembrar que Edu ergueu a taça da Libertadores da América em 2011 pelo Santos.

Ivan Storti/Santos FC Ivan Storti/Santos FC

Salário também fez perder

Edu Dracena falou ao UOL Esporte sobre o pior defeito do diretor ser perder a confiança do elenco. E isso não foi novidade no Santos nos últimos anos.

O Peixe perdeu vários jogadores por atraso de salários na Justiça do Trabalho nas gestões de Odílio Rodrigues, Modesto Roma e José Carlos Peres/Orlando Rollo. As promessas de pagamento não eram cumpridas e a saída dos atletas era acionar os advogados.

"Tudo que eu queria escutar como jogador eu farei como diretor. Se eu tiver condição, pagarei o salário no primeiro dia. Se eu não tiver, serei o primeiro a falar que estou com dificuldade. Se eu prometo, tenho que cumprir. Eu sei de todas essas malandragens de vestiário", disse Edu.

Entre quem buscou rescisão unilateral estão Arouca, Mena, Leandro Damião, Aranha, Zeca, Bryan Ruiz, Christan Cueva, Fernando Uribe, Eduardo Sasha e Everson. Com Sasha e Everson, o Santos fez acordo com o Atlético-MG para encerrar o litígio e conseguiu receber cerca de R$ 15 milhões.

O próprio Edu Dracena teve essa possibilidade de ir à Justiça no início de 2014, mas optou por fazer acordo com o Santos antes de ir para o Corinthians. Na época, funcionários estavam sem receber salários e o capitão deu cestas básicas para todos do CT Rei Pelé na despedida.

Durante a gestão de Andres Rueda, iniciada em dezembro de 2020, nenhum jogador do elenco acionou o Santos na Justiça do Trabalho para sair.

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