O eterno menino da Vila

Em 1963, Coutinho calou o Boca em Buenos Aires; hoje Kaio Jorge tenta fazer o mesmo

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Acervo Wesley Miranda e Fábio Lopes

Começa competição, termina campeonato e a tradição se mantém. Existe a certeza de que em alguns anos uma nova pedra preciosa vai surgir no gramado de Vila Belmiro. Tem sido assim através da história do futebol brasileiro: os meninos chegam e se consagram com a camisa santista. Quase sempre atacantes, quase sempre goleadores, normalmente foras de série. O menino da vez é Kaio Jorge, que hoje é esperança de gol contra o Boca Juniors, pelas semifinais da Copa Libertadores, no estádio de La Bombonera.

Ele é artilheiro da equipe no torneio com cinco gols e vem mantendo a escrita de diamantes surgidos na Vila. A lista é extensa, tem de Pelé ao jovem Rodrygo, que está no Real Madrid. Tem Neymar, tem Robinho, tem Juary, tem Pita, tem Gabigol.

Todos vestiram o uniforme branco quando eram ainda meninos sonhadores. Chegaram como crianças talentosas e se transformaram em craques de seleção brasileira. As histórias de todos têm muitos pontos em comum, mas nenhuma delas se compara a de Antônio Wilson Honório, o Toco de dona Antônia, o pequeno Cotoco, que era chamado de Cotinho, durante a infância em Piracicaba.

O garoto, que entrou para a história como Coutinho, estreou com a camisa branca com apenas 14 anos, 11 meses e seis dias — até hoje o mais jovem a jogar no profissional do clube. A partida foi contra o E.C. Sírio Libanês, no dia 17 de maio de 1958, em Goiânia. O jovem atacante entrou no segundo tempo, no lugar de Jair da Rosa Pinto, e fez o seu primeiro gol pela equipe profissional. Coutinho fez uma das maiores duplas de ataque da história com Pelé e é o terceiro maior artilheiro da história do Santos, atrás apenas do Rei e de Pepe, com quem também dividiu os gramados.

Acervo Wesley Miranda e Fábio Lopes
Reprodução

Contra o Boca, a maior partida de Coutinho

Coutinho fez sua maior partida justamente na final da Libertadores de 1963, contra o Boca Júniors (foto acima), adversário que o Santos do garoto Kaio Jorge enfrenta hoje, às 19h15, na capital argentina.

"A torcida lá em Buenos Aires é uma loucura. [Os torcedores] Chegam no estádio urrando, berram durante o jogo e depois do jogo também", recorda Lima, que jogou naquela equipe e ainda hoje continua na Vila Belmiro, trabalhando como integrante da comissão técnica da base, observando os garotos.

"O Boca Juniors saiu na frente, e a torcida chamava o tempo todo os jogadores santistas de macacos. O técnico Lula tentou acalmar a equipe no intervalo e então Pelé e Coutinho disseram: 'pode deixar que a gente resolve'. E resolveram mesmo", conta o jornalista Carlos Fernando, em seu livro "Coutinho, o gênio da área". "Coutinho fez o gol de empate, correu [para] atrás do gol e então, pela primeira vez, saltou e socou o ar. Ele que normalmente não vibrava tanto com seus gols. Depois foi Pelé quem marcou. O Santos venceu por 2 a 1 e ganhou o título dentro de La Bombonera".

Lima acha que os jogos contra Benfica (1962) e Milan (1963) nas decisões dos mundiais interclubes também tiveram a participação decisiva do grande parceiro do Rei Pelé. Para o jogo de hoje, no mesmo local, Lima vê como grande vantagem o fato da partida ser disputada sem público. "Mas é preciso muito cuidado, porque o Boca é um time muito perigoso. E o Santos não pode baixar a cabeça em momento nenhum". Quem sabe, esta noite o menino Kaio Jorge deixe de ser apenas um menino da Vila, para ganhar as divisas de grande jogador.

Acervo de Wesley Miranda e Fábio Lopes

Fuga de Piracicaba e chance no Santos

Coutinho chegou à Vila Belmiro depois de fugir de sua casa em Piracibaba, no interior de São Paulo. Ele havia sido elogiado por jogadores santistas durante uma partida preliminar do XV de Piracicaba contra o Santos, e não teve dúvidas: arrumou alguns trocados, conseguiu uma mala emprestada e foi atrás do seu sonho a 231 km da cidade natal.

"Ele estava vendo o treino do time principal à noite, quando o técnico Lula disse ao seu auxiliar China que estava faltando um jogador para completar a equipe reserva. E aí o menino Coutinho, que acompanhava tudo fascinado, no alambrado, foi chamado para completar o time. Recebeu uma chuteira maior que os seus pés, fez o único gol dos reservas, foi elogiado por Hélvio que o marcou e nunca mais deixou a Vila", conta o jornalista Carlos Fernando, biógrafo do atacante.

Quer dizer, quase deixou, porque no dia seguinte, o seu pai chegou desesperado de Piracicaba e foi buscá-lo para voltar para casa. O menino tinha 14 anos. Seu Waldemar Honório não quis saber de conversa e foi embora com seu filho para a rodoviária. Embarcou, mas a diretoria santista colocou um emissário seguindo o ônibus de carro. E, na primeira parada, ele convenceu o pai de Coutinho de que o futebol era um bom investimento no futuro.

E foi assim que Coutinho voltou à Vila, aos treinos. Uma história que daria um belíssimo filme, que ainda não foi feito. E que teria como recheio: 370 gols em 457 jogos, 20 títulos, incluindo dois mundiais interclubes e muita história. De alegria e de muita dor. Tem também o título mundial pela seleção brasileira em 1962, mas acreditem, Coutinho poderia ter ido muito mais longe.

"Não fosse a contusão no joelho, ele teria feito o dobro de gols", aposta Vera, a grande paixão do menino piracicabano. Ela morava ao lado da Vila Belmiro, e conheceu Coutinho, quando ambos tinham 15 anos, nos bailinhos do Salão Mármore do clube santista. Os dois casaram quatro anos depois, em uma cerimônia grandiosa, que contou com a presença da diretoria do Santos. O técnico Lula foi o padrinho no civil.

Arquivo pessoal

Parceria magistral com Pelé

"Pelé só é Pelé por conta do Coutinho. Ele foi o garçom do Pelé. Meu avô Mário brigava muito com ele. Mas meu pai não era fominha", diz Amanda, a filha caçula do craque.

E Coutinho não foi só parceiro de Pelé em campo — eles chegaram a morar juntos com Lima e Dorval na pensão da Dona Georgina. Além do mais, Pelé e Coutinho eram muitos parecidos fisicamente, e os narradores esportivos da época chegavam a confundir os dois.

"Nos jogos à noite, na Vila Belmiro, com aquela iluminação fraca, era comum atribuírem a Coutinho uma jogada ruim de Pelé. E uma jogada cinematográfica de Coutinho passava a ser narrada como se fosse de Pelé. Então, o Coutinho passou a arriar as meias e mesmo sem caneleira se arriscava a uma contusão grave, porque os zagueiros daqueles tempos não aliviavam, desciam a botina. E quando perguntavam para ele porque fazia isso, respondia que era para se diferenciar de Pelé", conta Pepe.

A semelhança era tanta que até os mais próximos confundiam. O jogador de vôlei Negrelli,que jogava no Santos, e era muito amigo dos craques do futebol alvinegro, estava nos 11 a 0 contra o Botafogo de Ribeirão Preto. "Estava chovendo, o campo enlameado, muito barro e então, até o final do jogo lá das arquibancadas eu não sabia que o Pelé tinha feito oito gols. Para mim, o Coutinho tinha feito pelo menos a metade. E olha que eu conhecia e vivia praticamente junto com toda a turma do futebol". Coutinho fez apenas um gol naquela noite, assim como Pepe.

Além de gols, fazia uma dupla com Pelé que era absurda. Tinham um entendimento inacreditável. Aí muita gente pergunta: eles treinavam muito as tabelinhas? E eu respondo: não. Pensavam jogadas, combinavam? E eu digo: não. Era tudo na hora?.

Lima, ex-jogador do Santos

Ele foi o jogador que mais entendeu o Pelé, embora o Pagão também fosse excepcional. O Pelé teve sorte de ter encontrado esses dois em seu caminho inicial. Claro que Pelé seria o Pelé de qualquer jeito, mas poderia demorar mais para explodir?.

Pepe, ex-jogador do Santos

ARQUIVO/Estadão Conteúdo ARQUIVO/Estadão Conteúdo
ARQUIVO/Estadão Conteúdo

Problema no joelho abreviou a carreira

"Ele parou a carreira muito jovem, aos 27 anos", relembra Vera. De suas lembranças não saem as imagens do doutor Ytalo chegando à sua casa para fazer infiltração no joelho de Coutinho, que ficava sentado na mesa. "Então ele ia a campo e arrebentava, só que quando voltava para casa dava murros de dor na parede".

Mas quando estreou no Santos, o menino não tinha problema nenhum de joelho, não tinha sido atingido pelo argentino Navarro em sua segunda partida pela seleção brasileira, no dia 12 de julho de 1960, no Maracanã. Foi um pesadelo que acompanhou Coutinho durante toda sua carreira, que foi magnífica, mas poderia ter sido ainda mais genial. Pela seleção foram apenas 15 jogos e 6 gols anotados.

"Meu pai falava muito para o Coutinho fazer mais gols, não passar tantas bolas para o Pelé, mas ele sempre dizia: 'O seu Mario, não importa quem faça os gols, importa a gente ganhar'. Mas meu pai insistia: 'faça seus gols', mas ele não mudava o comportamento", conta Vera.

Coutinho fez muitas vezes quatro gols e até 5 em uma única partida. Nos célebres 7 a 4 contra o Corinthians, em dezembro de 1964, no Pacaembu, foram quatro de Pelé e três dele.

Nunca deu um chutão, ele colocava a bola no gol. Não tinha chute forte. Só colocava mesmo a bola, desviando dos goleiros. Ele era de um nível futebolístico fantástico, tanto que deixou na reserva o Pagão, que acabou saindo para jogar no São Paulo".

Pepe, ex-jogador do Santos

O Coutinho tinha uma calma e uma visão incrível. Era super-inteligente, não chutava forte, apenas o suficiente para ultrapassar a linha do gol. O que era uma deficiência no chute, ele transformou em virtude. A gente brincava que o Pepe tinha um canhão nos pés e o Coutinho só uma injeção?

Lima, ex-jogador do Santos

Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC

Bronca com a imprensa

Lima lembra que, desde os tempos da pensão da Dona Georgina, Coutinho não gostava de dar entrevistas. "Eu não sei por quê. Mas ele não gostava. Tinha gente que dizia que ele tinha mágoa porque teria ciúmes do Pelé. Mas eu posso dizer que ele se dava maravilhosamente bem com o Pelé". Certo mesmo é que Coutinho evitava a imprensa.

O jeito rabugento com os repórteres, Coutinho manteve até o último dia de sua vida, em 11 de março de 2019. Sua filha Rosângela lembra que muitos repórteres a procuravam para falar com o santista. "E aí eu dizia a meu pai para dar a entrevista, porque o repórter era meu amigo. Só assim, ele falava. Era o jeito dele".

A esposa Vera diz que ele reclamava, sim, dos jornalistas. "Dizia: 'eu falo uma coisa e publicam outra'".

Outra coisa que irritava o craque era ver pela TV algum jogador recém-contratado beijando o distintivo do clube. "Ele ficava bravo e falava: 'Que descarado, beija a camisa, mas qualquer proposta... vai embora jogar em outro clube'. É que no tempo dele, não se pedia aumento. Quando o contrato acabava, o seu Modesto Roma [ex-dirigente santista] é que sugeria as novas bases. Outros tempos".

Diego Vara - Pool/Getty Images Diego Vara - Pool/Getty Images

Novos garotos da Vila

O coringa Lima, que chegou à Vila Belmiro aos 17 anos, jogou no grande Santos campeão mundial, e é um eterno descobridor de talentos, afirma categoricamente: "Para mim, depois do Pelé, o Coto foi o maior".

Para ele, a diferença entre o surgimento dos meninos nas décadas de 50 e 60 e agora está no trabalho desenvolvido nas categorias de base da atualidade. "Temos muita gente olhando a garotada, em todas as categorias, acompanhando, aconselhando, preparando. Quando a gente sente que um menino pode pular uma etapa, a gente dá uma acelerada no processo. Se o menino já tem condições de jogar numa categoria acima, qual é o problema de passar do infanto para o juvenil? Ele já é um jogador".

Ele diz que atualmente, há uma safra excepcional na equipe sub-16. "Quero dizer com isso, que novos meninos da Vila vão explodir logo, logo. Eles vêm com tudo. É uma molecada danada de boa. Vocês, jornalistas, podem se preparar, que tem outros craques chegando para manter essa tradição".

Tem novo Neymar? Lima apenas sorri, como a indicar que tem sim. Só não garante que exista um novo Coto no grupo. "Pra nós era Coto, para vocês foi o grande Coutinho, o incomparável Coutinho".

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