O menino e a bola

Luan superou a ausência do pai em casa e, com ajuda da mãe, amadureceu precocemente em campo

Brunno Carvalho Do UOL, em São Paulo Arte/UOL

Luan não tinha nem 3 anos quando ganhou da avó a primeira bola, daquelas que se encontra no mercadinho ou na banca de jornal. Para onde quer que ele fosse, a bola ia junto.

As ruas do bairro do Jardim Canaã, em São Paulo, eram seu próprio Morumbi. Nos dias de chuva, as paredes da garagem de casa se tornavam o alvo favorito de seus chutes.

Foi na bola em que ele se apoiou quando o pai abandonou a família para voltar para o interior da Bahia. Luan tinha apenas 5 anos e dava seus primeiros passos na escolinha de futebol de Marcelo Félix, irmão de igreja da mãe, dona Luzia, e que depois viraria a figura paterna que ele não teve.

Desde cedo, a cena tinha Luan, Luzia e a bola. Antes havia também Lucas, mas na adolescência o irmão decidiu passar três anos com o pai. Seguiram Luan, Luzia e a bola. Quando o menino deixou de ser menino e virou volante titular do São Paulo, teve o dia em que a bola morreu no fundo das redes do Palmeiras.

Agora já são Luan, Luzia, Lucas, a bola e o troféu de campeão paulista. E o jogador espera que o da Libertadores também possa entrar nessa foto.

Arte/UOL
Arquivo pessoal
Luan (à esquerda) e o irmão Lucas

Ficou um vazio

Luan nunca conseguiu ter com o pai Arlindo um sentimento familiar. "Eu falo que os dois não se bicam, porque eles não tiveram aquele contato de pai e filho", diz Luzia. Nas contas do irmão Lucas, Luan e Arlindo se viram apenas duas vezes desde que o pai voltou para a Bahia.

Uma delas aconteceu quando o volante estava perto de completar 10 anos. Os dois irmãos foram para o interior baiano passar 12 dias com o pai, mas ficaram apenas três na casa dele. "Ele viu meu irmão jogando, teve um pouco de conversa com a gente. Depois disso ele veio aqui uma vez e ficou uma semana aqui em casa, mas teve que voltar para lá para trabalhar", conta.

Luan sempre foi mais quieto que Lucas. Como não externava o que estava sentindo, era difícil saber se a ausência do pai havia deixado marcas. "Na época eu achava que ele não sentia falta, mas hoje vejo diferente. Ele tem muita coisa guardada dentro dele. Não chegou a criar um sentimento de revolta, mas ficou um vazio. Você na festa da escola, os outros pais sempre estavam lá e o seu, não", diz o irmão.

Lucas tinha quase 10 anos quando Arlindo foi embora. Ter vivido quase a infância toda com o pai fez com que ele desenvolvesse uma relação diferente à de Luan. Para o volante, o papel paterno sempre foi desempenhado por Luzia, que ficou responsável por sustentar os dois filhos em um bairro humilde da zona noroeste paulistana.

"O Luan falou em uma reportagem que eu era a mãe e o pai dele, porque eu criei ele sozinha. O pai chegou a ajudar, mas era quando ele podia, R$ 200, 300, ele também não tinha condições. As pessoas falavam para eu colocar ele na Justiça. Como é que eu vou pôr o pai dos meus filhos na Justiça? Não, não quero. Eu nunca quis colocar meus filhos contra o pai deles", afirma a mãe.

No último Dia dos Pais, o volante postou em seu Instagram um vídeo da série "Um Maluco no Pedaço". Nele, o personagem Will, que também fora criado apenas pela mãe, diz que não precisou do pai para virar a pessoa que virou.

Arquivo pessoal
Luan e a mãe Luzia, em uma de suas festas de aniversário

Em tudo eu via nós

Não ter o pai acompanhando seu crescimento fez com que Luan criasse uma relação ainda mais forte com a mãe. O sentimento fica evidente a cada pergunta que o volante responde sobre Luzia.

"Ela sempre foi e sempre será o meu porto seguro, até pela história que a gente viveu, né? As dificuldades no meu bairro, meu pai saindo de casa cedo, e ela tendo que criar eu e meu irmão. Ela representa tudo praticamente na minha vida", diz Luan.

Luzia sustentava a casa sozinha com o serviço de executiva de vendas. Ainda assim, conseguiu que os dois filhos estudassem em escola particular e os colocou na natação. Dentro da água, ela diz, Luan se destacava mesmo contra meninos mais velhos. Mas quando precisou escolher, ele preferiu a bola.

Toda vez que o volante entra em campo com o São Paulo, uma lembrança de Luzia entra junto, como no single de Emicida ("Mãe", de 2016). O número 13 que ele escolheu para sua camisa, inclusive, faz referência ao dia em que ela nasceu. "A gente brinca que tudo tem que ser 13 agora. Ele se vacinou [contra a covid-19] no mesmo dia que eu. E era um dia 13!", conta a mãe.

Desde que Luan virou profissional, Luzia vai sempre ao estádio ver os jogos do filho. A única vez que ela quase perdeu foi justamente a estreia, em 2018, contra o Corinthians. A família acompanharia a partida em um dos camarotes do Morumbi, mas Luzia perdeu parte do ingresso. Na hora de passar pela segurança, bateu o desespero.

"A segurança achou que eu tinha pegado o ingresso do chão. Eu já estava desesperada, com as lágrimas descendo, falando que eu não tinha pegado o papel do chão. Aí uma moça muito legal veio ver o que estava acontecendo e me deixou entrar. Até hoje quando eu vou lá no camarote ela me dá um abraço", relembra.

Minha mãe sempre me acompanhou, ia em todos os meus treinos, em todos os meus jogos. Se eu chegar na arquibancada e ela não estiver lá, já fico preocupado. Ela tem que estar em todos os jogos, porque quando eu era pequeno e acordava 6h da manhã para pegar ônibus e treinar, era ela quem estava junto comigo.

Luan, Sobre tempos sem pandemia, claro

Arquivo pessoal
Luan com a família de Marcelo Félix

O segundo pai

Luan ralou muito para chegar ao profissional. A vaga na primeira escolinha de futebol em que treinou surgiu por causa de um torneio de "Dia das Crianças" organizado pela igreja onde a família frequentava. Naquele ano, o ex-zagueiro Marcelo Félix, que teve passagem pelo Palmeiras, foi convidado para treinar a garotada na brincadeira. Antes de começar, ele ouviu um pedido da pastora Elaine para ficar de olho em um menino de cinco anos.

"Eu falei que via futuro no Luan e perguntei se tinha como o Félix dar uma bolsa para ele treinar na escolinha de futebol que ele tinha", relembra Elaine. O pedido foi atendido, e Luan e outros dois meninos passaram a treinar de graça com o ex-zagueiro.

Os seis anos que passou indo todo sábado aos treinos na escolinha fizeram com que desenvolvesse uma relação familiar com Marcelo Félix, que viraria seu empresário. Depois do treino, o volante passava o fim de semana com a família do professor.

"Eles me acolheram como se fosse parte da família, como se ele fosse meu pai. Eu não tinha videogame em casa, então ia lá jogar com os filhos dele, frequentava a igreja juntos, passava férias", diz Luan.

A relação com Félix ficou ainda mais estreita quando o garoto foi aprovado aos 12 anos em um teste no São Paulo. O trajeto do Jardim Canaã, na zona noroeste, até o CT da base era longo e precisava da colaboração de todos.

Assim que ele saía da escola, Félix o pegava no bairro onde morava e encontrava Luzia no meio do caminho para receber a marmita que Luan comeria antes de chegar ao treino. De lá, iam até a rodovia Raposo Tavares, onde o menino pegaria o ônibus fretado do São Paulo rumo a Cotia. Quando a atividade acabava, eram mais duas horas para voltar para casa. O volante reencontrava a mãe por volta de 21h e se preparava para começar tudo de novo no dia seguinte.

Se não fosse o Félix, meu filho não tinha seguido carreira. Era ele que pagava os torneios, que levava para o treino. Ele nunca me cobrou um real de gasolina para levar esse menino em Cotia

Luzia

Arquivo pessoal
Luan (à direita) e Igor Gomes (à esquerda), na época da base

Eu preciso alojar

A rotina pesada exigia muito de Luan. Comer rápido dentro de um carro, por vezes, fazia com que ele passasse mal durante os treinos. Em casa, Lucas havia ido morar com o pai na Bahia, e o volante assumia a responsabilidade de cuidar da mãe. O período difícil resultou em um amadurecimento precoce.

Luan sentia que precisava ralar três vezes mais para alcançar o nível dos destaques. O zagueiro Walce e o meia Igor Gomes, que também viraram profissionais, eram do mesmo ano dele, mas estavam alojados no CT de Cotia. O volante ainda não tinha conseguido um lugar nos dormitórios e sonhava com o momento que o trajeto de duas horas e meia ficaria para trás.

Enquanto eu fazia todo esse percurso, o pessoal que era alojado já tinha almoçado, tirado soneca. Estavam um passo na frente. E aí eu chegava e tinha que treinar no mesmo nível. A comissão técnica brigou muito para que eu conseguisse alojar."

A luta se estendeu por quatro anos. Luan foi morar no CT de Cotia quando completou 16. "Eu fiquei muito feliz quando dei esse passo. Tinha mais tempo para descansar, conseguia me alimentar melhor. Eu sentia saudade da minha família, mas conseguia superar. A correria que passei... Tudo isso eu levava comigo".

Luan teve uma ascensão rápida dentro do São Paulo. Quando tinha 17 anos já disputava partidas pelo sub-20 do time paulista. Em 2018, aos 19 anos, foi alçado por Diego Aguirre ao time profissional.

Marcello Zambrana/AGIF Marcello Zambrana/AGIF

A bola segue amiga

A mudança de jogar com meninos para enfrentar homens no profissional não assustou Luan. Entre 2019 e 2020, ele atuou 77 vezes pelo São Paulo, sendo 65 como titular. Pouco depois de completar 20 anos, o volante já era considerado uma peça fundamental para o equilíbrio defensivo do São Paulo.

O papel na marcação chamava atenção, mas foi o que ele fez no ataque que entrou para história. Aos 36 minutos da etapa inicial do segundo jogo da decisão contra o Palmeiras, no Paulistão deste ano, Luan matou a bola no peito duas vezes e chutou de fora da área.

A ousadia de um volante em arriscar um chute tão distante foi premiada pela sorte. A bola desviou em Felipe Melo e enganou completamente o goleiro Weverton. Era o primeiro passo para o fim da fila de oito anos do São Paulo sem títulos.

A comemoração imitando uma metralhadora com a mão e dando tapas na câmera virou a grande imagem do documentário feito pelo clube para comemorar a conquista. A bola que morreu no fundo das redes do Palmeiras virou o passo definitivo da afirmação de uma parceria que vem de anos.

Luan e a bola seguem juntos. No jogo de ida das quartas de final da Libertadores, eles se reencontraram com o mesmo Palmeiras. Foi do volante o gol são-paulino no empate por 1 a 1. Agora eles aguaram o capítulo decisivo desta terça-feira (17), às 21h30 (de Brasília).

Rubens Chiri/São Paulo FC Rubens Chiri/São Paulo FC

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