Uma seleção longe da torcida

CBF vê estádio vazio e silencioso em novo amistoso: cena que resume o fim de ano para seu principal produto

Bruno Grossi e Pedro Lopes Do UOL, em São Paulo Pedro Martins/MoWA Press
07.jul.2019 - Ricardo Botelho/Brazil Photo Press/Folhapress

Lua de mel desperdiçada

A Copa América de 2019 deu sinais de que era possível uma reaproximação entre a seleção brasileira e sua torcida. O início foi conturbado, com vaias na abertura, no Morumbi. Baiano, Daniel Alves profetizou que a reconciliação viria na segunda partida, diante da Venezuela, na Fonte Nova, mas o 0 a 0 manteve a insatisfação. Foi a partir do terceiro jogo, com a goleada por 5 a 0 sobre o Peru, que o Brasil engrenou e iniciou a caminhada rumo ao título.

Do sonoro apoio a Neymar na frente do hotel brasileiro em Brasília durante a preparação - o atacante se defendia da acusação de estupro da modelo Nájila Trindade - passando pela vitória sobre a Argentina no Mineirão, nas semifinais, culminando com a consagração de Everton Cebolinha como xodó. A Copa América terminou com título em solo brasileiro, vaias exorcizadas e amor com o torcedor.

Os meses que se seguiram, entretanto, tiveram a seleção de volta a uma rotina já conhecida: fria e distante. Foram amistosos distantes em países de pouca expressão no futebol, estádios vazios, em jogos pouco empolgantes. Para piorar, segundo avaliação da própria cúpula da CBF, testes e experiências fizeram com que o futebol apresentado fosse bem abaixo daquele apresentado nos momentos decisivos da Copa América.

Com isso, o Brasil termina 2019 de mal com a torcida. A oportunidade de utilizar um título conquistado em casa com vitória sobre a Argentina de Messi como impulso para recuperar o interesse e carinho pelo time brasileiro parece desperdiçada. Ao invés disso, o ano termina com uma sensação de indiferença por parte dos torcedores. E aqueles que não são indiferentes têm pendido para críticos. Precisamos, então, voltar a falar sobre a seleção e seus problemas.

A seleção irritando muita gente

Desde a Copa América, a equipe nacional disputou amistosos nos Estados Unidos, em Cingapura, nos Emirados Árabes e na Arábia Saudita. Em estádios com até menos da metade de sua capacidade ocupada, enfrentou Colômbia, Peru, Senegal, Nigéria, Argentina e Coreia do Sul. Acumulou, aí, três empates, duas derrotas e só um triunfo, contra os sul-coreanos, na despedida do ano. No primeiro semestre, antes da competição continental, teve amistosos contra Panamá, República Tcheca.

Vamos lá: não é a lista mais vibrante do mundo, a despeito da presença de um arquirrival sul-americano. Neste grupo, porém, estão inseridos quatro times do top 20 no ranking da Fifa. Agora, nem isso foi o suficiente para que, não importando o continente, esses confrontos tivessem estádio plenamente lotados, em países-sede de pouca tradição futebolística. E aí temos um problema, pois também se combinam horários inconvenientes no Brasil para formar um produto sonolento.

A esse cenário, soma-se a incapacidade da CBF em conciliar o calendário nacional de clubes com os compromissos da seleção. Dar oportunidade a atletas em atividade no país significaria dar exposição a talentos e marcas nacionais. No fim, pesou mais o ato de desfalcar equipes em momentos importantes do Campeonato Brasileiro, alimentando críticas de torcedores, treinadores e dirigentes.

Pedro Martins / MowaPress Pedro Martins / MowaPress

Longe de casa, e a casa vazia

Se a relação com os torcedores no Brasil tem sido fria, a seleção também não tem empolgado a população local nos palcos de seus amistosos. Jogar para arquibancadas vazias tem sido uma cena comum, com arenas que chegam a ter menos da metade dos seus lugares ocupada.

Os amistosos do Brasil pós Copa América tem, em média, 54% dos estádios ocupados. O único confronto que teve arena perto da lotação foi o empate diante da Colômbia em Miami, em setembro - foram 65 mil pessoas. Para os confrontos diante de Nigéria e Senegal, em outubro, o Estádio Nacional de Cingapura sequer atingiu metade de sua capacidade, com pouco mais de 20 mil pessoas presentes no palco com capacidade para 55 mil.

Os jogos diante da Argentina, na Arábia Saudita, e da Coreia do Sul, nos Emirados Árabes, não tiveram os públicos divulgados, mas era visível que estavam bem abaixo da metade da capacidade estipulada. A atmosfera chegou a incomodar Tite. Nem assim o estádio pulsou. "Gostaria de ter mais (público) e imaginei que pudesse ter mais, mas é uma variável que foge. Poderia dar uma atmosfera melhor", afirmou Tite após a vitória por 3 a 0.

No centro dessas discussões está a Pitch International, empresa que organiza e negocia os amistosos do Brasil. O ano de 2019 termina com crescente insatisfação de diversos setores da seleção brasileira e as críticas públicas à logística montada pela parceira, que tem mais três anos de contrato.

Em Cingapura

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Dividindo a conta: quem é a Pitch?

A Pitch International foi constituída na Inglaterra em 2004, sob o comando do então presidente Trevor East. Em 2009, 75% da empresa foi adquirida por um investidor que até hoje não foi identificado. Atualmente, ela pertence a outra empresa, chamada Homer Newco, que já teve como diretor um advogado que participou da compra do PSG pelo fundo Qatar Sports Investments.

Desde essa aquisição, a empresa vem crescendo: no último ano fiscal, encerrado em março de 2019, teve lucros de R$ 123 milhões a serem distribuídos a acionistas. A Pitch detém os direitos de transmissão internacionais de diversas ligas e seleções, e tem dentre seus clientes de peso a Federação Inglesa de Futebol. Seu faturamento, no último ano, foi de R$ 870 milhões, com as operações nas Américas respondendo por R$ 145 milhões.

A maior parte das receitas vem de operações no Oriente Médio e na Ásia: R$ 436 milhões, metade do total. A região é bastante explorada e foi palco dos últimos quatro amistosos do Brasil.

Com a CBF, firmou em 2012, na gestão de Ricardo Teixeira, um contrato de dez anos, que termina em 2022. Pelo acordo, a Pitch detém os direitos de amistosos da seleção: é responsável por organizá-los e negociá-los no exterior. Não há previsão de rescisão antes do final.

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Em Abu Dhabi

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Onde joga a seleção?

Desde o título mundial em 2002, a seleção brasileira disputou 129 amistosos, marcados pela ISL e, depois, pela Pitch. O Brasil, acreditem, é o segundo do ranking de países que mais receberam esses amistosos, com 20 jogos. Fica atrás da Inglaterra (24 partidas) e empata com os Estados Unidos. Se levados em consideração apenas os amistosos "livres", ou seja, excluindo aqueles que serviram de preparação para os torneios disputados no país e estavam "colados" a estes eventos (Copa das Confederações, Copa do Mundo e Copa América), o número cai para 14 jogos.

Por outro lado, claro, se as partidas competitivas forem computadas, o que envolve também as Eliminatórias de Copa do Mundo, o Brasil passa a liderar o ranking de jogos desde 2002 com 64 confrontos sediados. A Inglaterra, só com amistosos, seguiria com 24, mas no segundo lugar. E os Estados Unidos, que sediaram uma Copa América no período, fechariam o pódio com 23 partidas.

Top 3 de amistosos por país

  • Inglaterra - 24

    Imagem: Xinhua/Han Yan
  • Brasil - 20

    Imagem: AFP PHOTO/AGIF/Heuler Andrey
  • Estados Unidos - 20

    Imagem: Michael Reaves/Getty Images/AFP

Top 3 de jogos por cidade

  • Londres (ING) - 14

    Imagem: shutterstock
  • São Paulo - 12

  • Rio, Belo Horizonte e Porto Alegre - 7

    Imagem: Alessandro Buzas/Futura Press/Estadão Conteúdo

Em Los Angeles

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Contra quem a seleção joga?

Os 249 jogos disputados desde o Mundial de 2002 podem ser subdivididos de duas formas: tipos de partida e tipos de adversário. No primeiro quesito, foram 129 amistosos, 68 jogos de competição e 52 compromissos de Eliminatórias de Copa. No segundo, são computados jogos contra campeões do mundo, campeões europeus, seleções sul-americanas e outros.

O rendimento em cada cenário está apresentado abaixo. Foram 50 jogos contra campeões do mundo no período, mas 32 contra os sul-americanos Argentina e Uruguai e apenas 18 contra os europeus. Desde os 7 a 1 para a Alemanha, por exemplo, foram apenas três empates contra europeus campeões mundiais: empate com Inglaterra e vitória contra a Alemanha, sob o comando de Tite, e triunfo sobre a França com Dunga no banco de reservas.

Desempenho contra:

  • Campeões do mundo: 50 jogos - 25 vitórias, 15 empates, 10 derrotas
  • Campeões europeus (sem campeões mundiais): 10 jogos - 4 vitórias, 2 empates, 4 derrotas
  • Sul-americanos: 109 jogos - 60 vitórias, 34 empates, 15 derrotas
  • Outros: 110 jogos - 90 vitórias, 14 empates, 6 derrotas

Desempenho em:

  • Jogos por torneios: 68 jogos - 43 vitórias,16 empates, 9 derrotas
  • Eliminatórias: 52 jogos - 29 vitórias, 18 empates, 5 derrotas
  • Amistosos: 129 jogos - 91 vitórias, 22 empates, 6 derrotas

Logística dos amistosos incomoda até a seleção

A circunstância é um pouco difícil, estamos com fuso de 11 horas atrás, calor imensurável. Não é desculpa, mas você paga o preço. Acredito que temos que dar continuidade ao trabalho. Nunca é fácil ganhar

Daniel Alves, após empate com Senegal, em Cingapura

O que mais eu tenho certeza que atrapalha é qualidade do gramado. Depois, o fuso horário. Os outros são detalhes. Teve viagem que eu tive que tomar café toda hora pra conseguir elevar o nivel de concentração

Tite, sobre as longas viagens e gramados encontrados pela seleção

O que mais me deixou chateado foi a falta de respeito (da Pitch) com a seleção. Ela não nos proporcionou trabalhar no campo de jogo. Isso me deixou descontente. Atletas de alto nível merecem a chance de treinar nele

Tite, sobre a impossibildiade de treinar no Estádio Nacional, em Cingapura

Eurasia Sport Images/Getty Images  Eurasia Sport Images/Getty Images

Sobrou para ele

Além das questões logísticas, os constantes conflitos entre jogos da seleção brasileira e campeonatos em andamento no Brasil geram desfalques nos grandes clubes. Nas datas Fifa de outubro foram oito atletas "nacionais" convocados por Tite para encarar Senegal e Nigéria - dentre eles, Weverton, do Palmeiras, Rodrigo Caio e Gabigol, do Flamengo, que brigavam pelo título brasileiro.

"Quando a seleção joga, não tinha que ter jogo de time. Continuo convicto. Isso, para mim, não vai mudar ao longo do tempo. Eu faço as convocações e faço com bastante pesar. Porque eu não queria. Continuo com a mesma opinião. Eu sei que o Manoel Flores [diretor de competições da CBF] está tentando ajustar. Mas vocês sabem mais que eu e eu não quero entrar nestes aspectos. Mas esse problema aconteceu com todos os clubes, quase todos os clubes. Eu tenho isso claro e continua igual", disse o treinador brasileiro, na ocasião.

Pelo cargo que ocupa, Tite frequentemente concede entrevistas e faz aparições públicas — cotidiano diferente dos dirigentes da CBF. Em virtude disso, é o ponto focal das críticas e questionamentos sobre o conflito de datas entre clubes e seleção brasileira que esvazia as competições nacionais de seus astros em momentos importantes. Isso gera incômodo - o comandante fica exposto, e acaba carregando nas costas a responsabilidade por uma cultura que já dura décadas no futebol brasileiro.

Nos últimos dois amistosos, diante da Argentina e da Coreia do Sul, a comissão técnica evitou a polêmica, e só convocou um atleta em atividade no Brasil: o goleiro Santos, do Athletico, somente após o corte de Ederson, do Manchester City.

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"Quando a seleção joga, não tinha que ter jogo de time. Continuo convicto. Isso, para mim, não vai mudar ao longo do tempo. Eu faço as convocações e faço com bastante pesar. Porque eu não queria

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Tite, tentando se defender como podia em meio a saraivada de críticas ao desfalcar os líderes do Brasileirão

João Vitor Rezende Borba/Agif

O efeito Jesus, também para Tite

A ascensão do Flamengo jogando um futebol ofensivo sob o comando de um técnico estrangeiro também aumentou o "mau humor" com uma seleção que teve dificuldades para apresentar um bom futebol no pós-Copa América. Tite chegou a ser bombardeado com questões sobre o clube rubro-negro e comparações com Jorge Jesus em entrevista coletiva antes dos amistosos diante da Nigéria e Senegal.

"Parabenizar o Jorge Jesus pelo trabalho que vem desenvolvendo em um país diferente, com essa naturalidade. É um momento mágico, você vê a torcida na rua e no estádio, vê como a atmosfera ferve e fica forte. Com atletas de alto nível, isso tudo se junta e gera a campanha que estão fazendo. Curtam, é um momento muito especial e bonito", disse, evitando a comparação.

Desde o título da Copa América foram três empates a duas derrotas - uma delas para a Argentina, tradicional rival. A seleção só reagiu e voltou a ter uma boa performance no último amistoso do ano, quando derrotou a Coreia do Sul por 3 a 0 nos Emirados Árabes.

Não dá para comparar com seleção. Se for para desenvolver toda uma abordagem maior, vai ver que são realidades diferentes, com momentos e competições diferentes, mas com mais tempo é possível fazer uma discussão mais aprofundada

Tite, evitando polêmica maior com flamenguistas

Pedro Martins/Mowa Press

Problema (ainda) agendado

A cúpula da CBF está ciente das críticas à Pitch, mas a rescisão do contrato não está em pauta. Com o início das eliminatórias no ano que vem, o caminho até 2022, quando termina o acordo, não terá muitas possibilidades de amistosos, o que fará com que naturalmente a discussão em torno da logística dos jogos saia de pauta. É essa a aposta.

Para depois de 2022, não há ainda um plano definido. Parte da diretoria da entidade defende que a CBF passe a organizar e negociar diretamente seus compromissos, mas o plano de ação será elaborado mais perto da data final do contrato.

Rogério Caboclo assumiu a presidência da CBF em abril tendo no fim dos conflitos entre datas Fifa e clubes sua principal bandeira. "A partir de 2020 não haverá jogos no Brasil nessas datas", disse, no momento da posse. A promessa foi cumprida sem resolver o problema: apesar de não haver jogos especificamente nas datas, há uma série de conflitos graves que podem atingir até 18 datas de clubes.

A Copa América do ano que vem, na Argentina e na Colômbia, acontecerá simultaneamente ao Campeonato Brasileiro. Se tudo correr normalmente, é inevitável que o debate sobre calendário volte a tomar conta do ambiente da seleção.

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